segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Novo Ensino Médio: como evitar armadilhas?

Como é de nosso conhecimento, no último dia 31 de julho o presidente Lula sancionou a Lei n. 15.945/2024 que estabelece a Política Nacional de Ensino Médio, que entrará em vigor no ano de 2025, revogando parcialmente a reforma do Novo Ensino Médio (NEM) no Brasil. Em termos curriculares, merece destaque a ampliação da carga horária da Formação Geral Básica (FGB), comum a todos os estudantes, restabelecendo a obrigatoriedade de componentes curriculares como Biologia, Química, História, Filosofia, Artes, dentre outros, ao longo dos três anos constituintes desta etapa da escolarização. À medida em que este tempo formativo foi ampliado, a carga horária dos Itinerários Formativos foi reduzida para 600 horas (em média, 200 horas-anuais). Os itinerários, sob esta configuração, tendem a ocupar um espaço de complementação e de aprofundamento nos conhecimentos das áreas de interesse dos estudantes.

De certa forma, um conjunto representativo de entidades aguardava pela revogação total da política do Novo Ensino Médio; o que, aparentemente, não foi indicado como possibilidade. Com este outro direcionamento em curso, também merece destaque que algumas questões curriculares precisam ser discutidas novamente neste momento, abrindo espaço para outras compreensões e para que as escolas – seus profissionais e estudantes – possam ingressar na luta política pelos conceitos estruturantes de seus currículos. Com algum otimismo, creio (e defendo) que as escolas são capazes de recontextualizar as suas expectativas e propósitos formativos.

Na condição de pesquisador interessado nesta temática, há quase duas décadas, tenho argumentado que novas diretrizes curriculares são necessárias, na medida em que possam refletir sobre as lacunas, as incompreensões e os excessos que a política do NEM tratou de disseminar nos sistemas de ensino, desde o ano de 2016. Na continuidade deste texto, em formato de tópicos, passo a elencar algumas contribuições para a elaboração dos novos documentos. Tais contribuições têm origem em resultados de pesquisa e, principalmente, nos diálogos que tenho realizado com professores e professoras e gestores e gestoras da área da Educação.

  • 1. A definição do que conta como conhecimento escolar

Para a reorganização desta política curricular para o Ensino Médio parece-me que seu desafio mais imediato é a definição dos conhecimentos escolares que serão ensinados, particularmente no âmbito dos itinerários formativos. Quando um sistema de ensino oferece um itinerário em “Relações interpessoais” ou ministra aulas de “brigadeiro gourmet” deixa exposta uma política – em que poderíamos acrescentar boa parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) do Ensino Médio – que não se dedica a explicitar os critérios para selecionar o que os estudantes tomarão como objeto de conhecimento. Aliás, acompanhando documentos importantes – como o “Reimaginar nosso futuro juntos”, da Unesco – estamos em um momento oportuno para retomar o debate sobre o conhecimento. Apregoa o documento mencionado a respeito da necessária “criação coletiva de novos conhecimentos e novos mundos”. O conceito de competência, após longas três décadas de uso indiscriminado, conduziu-nos a currículos utilitários que nem mesmo para avaliações externas têm se mostrado relevante.

  • 2. A oferta e a organização dos itinerários formativos

Com relação aos itinerários formativos merece destaque que sua implementação ocorreu a partir de um conjunto variado de modos de seleção dos conhecimentos. A proposta inicial era que os itinerários estivessem vinculados às áreas do conhecimento; todavia, percorreu caminhos heterogêneos:

  1. Itinerários formativos vinculados estritamente às áreas do conhecimento, funcionando como complementação formativa;
  2. Itinerários baseados nos eixos estruturantes previstos no documento da reforma: empreendedorismo, produção cultural, iniciação científica, etc.
  3. Itinerários que combinavam duas ou mais áreas do conhecimento: Linguagens e Humanidades, Ciências e Matemática, dentre outros.
  4. Uma distinção recorrente entre itinerários propedêuticos e profissionais (com estes nomes!), que acentuavam a distância entre a FGB (Formação Geral Básica) e os itinerários;
  5. Itinerários temáticos, com ênfase em temáticas “do século XXI”, predominando propostas nas áreas de cultura digital e de sustentabilidade.

Ainda merece destaque uma recorrente diferenciação entre itinerários formativos de tempo parcial e itinerários de tempo integral. Ao revisar os currículos estaduais também chamou a nossa atenção o pouco espaço designado para as regionalidades (pouco menos de 10% das propostas referem-se a isso). Entretanto, precisa ser feita uma ressalva: ainda que os critérios para a seleção dos saberes sejam heterogêneos, os modelos de organização (a nomeada “arquitetura curricular”) foram bastante padronizados. De modo geral, os tempos curriculares de um itinerário formativo foram distribuídos da seguinte forma:



Itinerário formativo

Projeto de vida Unidades curriculares (UC) obrigatórias Unidades curriculares (UC) eletivas 1a e/ou 2a língua estrangeira

Essa padronização também é visualizada na forma de nomear os percursos escolhidos pelos estudantes: trilhas. A noção de “trilhas” (de estudo, de aprendizagem, de formação, de aprofundamento, etc.) está presente em quase 80% das propostas curriculares estaduais. Após o nosso processo investigativo, fomos nos aproximando da hipótese de que a dispersão temática dos itinerários formativos veio acompanhada pela padronização dos seus regimes de oferta. A flexibilidade curricular prometida pelo Novo Ensino Médio acarretou uma pulverização de unidades curriculares atomizadas, organizadas em um modelo pré-fixado para sua oferta. Esta padronização pode ser revelada nos dados abaixo elencados, todos derivados de nossa compilação das 27 propostas curriculares dos sistemas estaduais de ensino (incluindo o Distrito Federal).

81,4% dos sistemas estaduais de ensino traduziu os itinerários formativos em trilhas.

100% tornou os projetos de vida uma unidade curricular obrigatória nos itinerários formativos.

74% planejou a língua estrangeira obrigatória no interior dos itinerários formativos.

85,1% distribuiu a carga horária com crescimento gradual do 1o ao 3o ano do Ensino Médio.

81,4% desenvolveu um catálogo de unidades curriculares obrigatórias, associado a uma quadro de eletivas (presenciais e não-presenciais).

 

  • 3. O protagonismo juvenil como ponto de partida

Associado a esta flexibilidade de baixa intensidade, também gostaria de problematizar os modos pelos quais a noção de protagonismo juvenil é posicionada como um imperativo curricular na proposta do Novo Ensino Médio. Não resta dúvidas de que seja absolutamente necessária a construção de propostas curriculares capazes de dialogar com as demandas juvenis. Entretanto, o NEM aposta no protagonismo juvenil como ponto de partida, reduzindo-o à capacidade de escolha. Essa redução conceitual pode ocasionar uma responsabilização dos jovens brasileiros pelas suas próprias escolhas. Assim sendo, não pretendo – em minha análise – desprezar o conceito de protagonismo juvenil, uma vez que se trata de um conceito importante no campo dos Estudos Curriculares críticos. O protagonismo dos estudantes é derivado de um processo formativo que precisa ser pedagogicamente construído e referenciado em um quadro valorativo comum.

  • 4. Projetos de vida e sua retórica emocional e moral

Outro tópico importante que também constitui a gramática curricular constituída em torno do Novo Ensino Médio é a questão dos projetos de vida. De forma preliminar, precisamos reiterar que se trata de um conceito constituído no campo progressista, tanto nas lutas dos movimentos estudantis, quanto na produção acadêmica crítica. Articular a escola com as vidas dos estudantes é uma demanda histórica dos movimentos juvenis. Projeto de vida pode se constituir como um princípio curricular no Ensino Médio, uma vez que a educação de adolescentes e jovens carece de maior aproximação, construção de vínculos ou mesmo de iniciativas voltadas a dialogar sobre as incertezas ligadas ao futuro, em especial aquelas concernentes ao mundo do trabalho.

Todavia, o caminho trilhado no processo de implementação do Novo Ensino Médio – ofertado pelos sistemas de ensino como uma unidade curricular obrigatória e com material didático padronizado – está sendo bastante preocupante. Educar para a construção de projetos de vida, na lógica que tem predominado, implica em um modelo de desenvolvimento humano centrado no gerenciamento das emoções; assumindo, inúmeras vezes, uma forte regulação moral.

Para exemplificar este argumento, no quadro abaixo elenco três questões orientadoras de uma atividade pedagógica proposta por um material de apoio para as atividades de Projeto de Vida na rede estadual de São Paulo. A atividade intitula-se “Capacidade de adaptação: eu e o mundo em transformação” e tem como foco três aspectos, quais sejam: “tolerância à frustração, foco e determinação”. Após conversarem sobre o que significa sair da “zona de conforto”, os estudantes deveriam responder, de acordo com o referido material de apoio, as seguintes perguntas:

Você acha que, em algum momento, desperdiçou energia atribuindo a culpa a alguém? Por que acha que isso aconteceu?

Quais as atitudes, escolhas ou posturas que você pode enumerar para encarar a situação de forma propositiva e criativa (buscando solucionar problemas)?

Para você, qual a relação existente entre a capacidade de adaptação e a tolerância à frustração?

Este é somente um exemplar do conjunto amplo de atividades e de roteiros de estudo de Projeto de Vida que encontramos nas propostas curriculares estaduais. Não resta dúvidas de que estamos diante de uma fusão entre argumentos psicológicos e econômicos, articulados a um cenário de regulação subjetiva. Ensinar os estudantes a saírem da ‘zona de conforto’, aos 14 ou 15 anos, revela uma preocupação demasiada com a preparação de subjetividades autogerenciáveis e, ao mesmo tempo, um desconhecimento absoluto da constituição subjetiva da adolescência. Há um apelo à individualização no contexto didático de uma roteirização do desenvolvimento de projetos de vida como um componente obrigatório (no interior dos itinerários formativos). Como ensina o conhecido texto de Hannah Arendt, a escola sem conteúdos torna-se, facilmente, um espaço marcado pela retórica emocional e moral.

  • 5. Ausência de referentes conceituais para pensar a adolescência

Ainda preciso mencionar um aspecto que considero como a principal debilidade técnica das propostas curriculares do Novo Ensino Médio: a ausência de uma reflexão consistente sobre a aprendizagem e o desenvolvimento humano de adolescentes e jovens. As apostas curriculares que perfazem a composição das diferentes arquiteturas organizativas do NEM evidenciam um amplo distanciamento das tendências contemporâneas na pesquisa sobre a adolescência. Mais que isso, a justaposição entre educação integral e currículo por meio de competências (cognitivas e socioemocionais) é apresentada sem o devido cotejamento técnico (requerido para o tamanho desta política curricular), assemelhando-se muito mais a uma profissão de fé de seus proponentes.

<><> Uma pequena síntese

Enfim, no decorrer deste breve texto procurei elencar um conjunto de reflexões direcionadas para a recomposição das diretrizes curriculares no Ensino Médio em nosso país. À medida em que reconhecemos os limites da proposta do NEM (que nos levou, inclusive, a defender a sua revogação), assim como não desejamos um retorno aos modelos anteriores, é momento de contribuir com novos apontamentos e ingressar na luta política pelos seus significados. Vale a pena retomar as cinco contribuições aqui elencadas, cada uma delas derivada de um amplo período de investigação: a) é fundamental qualificar o detalhamento daquilo que conta como conhecimento escolar, particularmente no âmbito dos itinerários formativos; b) faz-se necessário um reposicionamento pedagógico do conceito de protagonismo juvenil, evitando reduzi-lo à capacidade de escolha; c) os projetos de vida são uma demanda histórica dos movimentos estudantis e juvenis e não deveriam ser enquadrados em práticas roteirizadas e padronizadas; d) no âmbito da política curricular, é momento de reequilibrar o debate entre o universal e o particular, com vistas a construir uma escola mais justa; e) é importante enfrentar a questão da aprendizagem e do desenvolvimento humano de adolescentes e jovens na escola.

Desejo que tais contribuições possam se constituir como um ponto de partida para um diálogo profícuo com os sistemas de ensino visando a construção compartilhada de uma nova sensibilidade pedagógica para a escola de adolescentes e jovens no Brasil.

 

Fonte: Por Roberto Rafael Dias da Silva, em Outras Palavras

 

Nenhum comentário: