Novo Ensino Médio: como evitar armadilhas?
Como é de nosso
conhecimento, no último dia 31 de julho o presidente Lula sancionou a Lei n.
15.945/2024 que estabelece a Política Nacional de Ensino Médio, que entrará em
vigor no ano de 2025, revogando parcialmente a reforma do Novo Ensino Médio
(NEM) no Brasil. Em termos curriculares, merece destaque a ampliação da carga
horária da Formação Geral Básica (FGB), comum a todos os estudantes,
restabelecendo a obrigatoriedade de componentes curriculares como Biologia,
Química, História, Filosofia, Artes, dentre outros, ao longo dos três anos
constituintes desta etapa da escolarização. À medida em que este tempo
formativo foi ampliado, a carga horária dos Itinerários Formativos foi reduzida
para 600 horas (em média, 200 horas-anuais). Os itinerários, sob esta
configuração, tendem a ocupar um espaço de complementação e de aprofundamento
nos conhecimentos das áreas de interesse dos estudantes.
De certa forma, um
conjunto representativo de entidades aguardava pela revogação total da política
do Novo Ensino Médio; o que, aparentemente, não foi indicado como
possibilidade. Com este outro direcionamento em curso, também merece destaque
que algumas questões curriculares precisam ser discutidas novamente neste
momento, abrindo espaço para outras compreensões e para que as escolas – seus
profissionais e estudantes – possam ingressar na luta política pelos conceitos
estruturantes de seus currículos. Com algum otimismo, creio (e defendo) que as
escolas são capazes de recontextualizar as suas expectativas e propósitos
formativos.
Na condição de
pesquisador interessado nesta temática, há quase duas décadas, tenho
argumentado que novas diretrizes curriculares são necessárias, na medida em que
possam refletir sobre as lacunas, as incompreensões e os excessos que a
política do NEM tratou de disseminar nos sistemas de ensino, desde o ano de
2016. Na continuidade deste texto, em formato de tópicos, passo a elencar
algumas contribuições para a elaboração dos novos documentos. Tais
contribuições têm origem em resultados de pesquisa e, principalmente, nos
diálogos que tenho realizado com professores e professoras e gestores e
gestoras da área da Educação.
- 1. A definição do que conta como conhecimento escolar
Para a reorganização
desta política curricular para o Ensino Médio parece-me que seu desafio mais
imediato é a definição dos conhecimentos escolares que serão ensinados,
particularmente no âmbito dos itinerários formativos. Quando um sistema de
ensino oferece um itinerário em “Relações interpessoais” ou ministra aulas de
“brigadeiro gourmet” deixa exposta uma política – em que poderíamos acrescentar
boa parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) do Ensino Médio – que não se
dedica a explicitar os critérios para selecionar o que os estudantes tomarão
como objeto de conhecimento. Aliás, acompanhando documentos importantes – como
o “Reimaginar nosso futuro juntos”, da Unesco – estamos em um momento oportuno
para retomar o debate sobre o conhecimento. Apregoa o documento mencionado a
respeito da necessária “criação coletiva de novos conhecimentos e novos
mundos”. O conceito de competência, após longas três décadas de uso
indiscriminado, conduziu-nos a currículos utilitários que nem mesmo para
avaliações externas têm se mostrado relevante.
- 2. A oferta e a organização dos itinerários formativos
Com relação aos
itinerários formativos merece destaque que sua implementação ocorreu a partir
de um conjunto variado de modos de seleção dos conhecimentos. A proposta
inicial era que os itinerários estivessem vinculados às áreas do conhecimento;
todavia, percorreu caminhos heterogêneos:
- Itinerários formativos vinculados estritamente às áreas do
conhecimento, funcionando como complementação formativa;
- Itinerários baseados nos eixos estruturantes previstos no
documento da reforma: empreendedorismo, produção cultural, iniciação
científica, etc.
- Itinerários que combinavam duas ou mais áreas do
conhecimento: Linguagens e Humanidades, Ciências e Matemática, dentre
outros.
- Uma distinção recorrente entre itinerários propedêuticos e
profissionais (com estes nomes!), que acentuavam a distância entre a FGB
(Formação Geral Básica) e os itinerários;
- Itinerários temáticos, com ênfase em temáticas “do século
XXI”, predominando propostas nas áreas de cultura digital e de
sustentabilidade.
Ainda merece destaque
uma recorrente diferenciação entre itinerários formativos de tempo parcial e
itinerários de tempo integral. Ao revisar os currículos estaduais também chamou
a nossa atenção o pouco espaço designado para as regionalidades (pouco menos de
10% das propostas referem-se a isso). Entretanto, precisa ser feita uma
ressalva: ainda que os critérios para a seleção dos saberes sejam heterogêneos,
os modelos de organização (a nomeada “arquitetura curricular”) foram bastante
padronizados. De modo geral, os tempos curriculares de um itinerário formativo
foram distribuídos da seguinte forma:
|
Projeto de vida
Unidades curriculares (UC) obrigatórias Unidades curriculares (UC) eletivas 1a e/ou
2a língua estrangeira |
Essa padronização
também é visualizada na forma de nomear os percursos escolhidos pelos
estudantes: trilhas. A noção de “trilhas” (de estudo, de aprendizagem, de
formação, de aprofundamento, etc.) está presente em quase 80% das propostas
curriculares estaduais. Após o nosso processo investigativo, fomos nos
aproximando da hipótese de que a dispersão temática dos itinerários formativos
veio acompanhada pela padronização dos seus regimes de oferta. A flexibilidade
curricular prometida pelo Novo Ensino Médio acarretou uma pulverização de
unidades curriculares atomizadas, organizadas em um modelo pré-fixado para sua
oferta. Esta padronização pode ser revelada nos dados abaixo elencados, todos
derivados de nossa compilação das 27 propostas curriculares dos sistemas
estaduais de ensino (incluindo o Distrito Federal).
81,4% dos sistemas
estaduais de ensino traduziu os itinerários formativos em trilhas. |
100% tornou os projetos de vida uma unidade
curricular obrigatória nos itinerários formativos. |
74% planejou a
língua estrangeira obrigatória no interior dos itinerários formativos. |
85,1% distribuiu a carga horária com crescimento
gradual do 1o ao 3o ano do Ensino Médio. |
81,4% desenvolveu um
catálogo de unidades curriculares obrigatórias, associado a uma quadro de
eletivas (presenciais e não-presenciais). |
- 3. O protagonismo juvenil como ponto de partida
Associado a esta
flexibilidade de baixa intensidade, também gostaria de problematizar os modos
pelos quais a noção de protagonismo juvenil é posicionada como um imperativo
curricular na proposta do Novo Ensino Médio. Não resta dúvidas de que seja
absolutamente necessária a construção de propostas curriculares capazes de
dialogar com as demandas juvenis. Entretanto, o NEM aposta no protagonismo
juvenil como ponto de partida, reduzindo-o à capacidade de escolha. Essa
redução conceitual pode ocasionar uma responsabilização dos jovens brasileiros
pelas suas próprias escolhas. Assim sendo, não pretendo – em minha análise –
desprezar o conceito de protagonismo juvenil, uma vez que se trata de um
conceito importante no campo dos Estudos Curriculares críticos. O protagonismo
dos estudantes é derivado de um processo formativo que precisa ser
pedagogicamente construído e referenciado em um quadro valorativo comum.
- 4. Projetos de vida e sua retórica emocional e moral
Outro tópico
importante que também constitui a gramática curricular constituída em torno do
Novo Ensino Médio é a questão dos projetos de vida. De forma preliminar,
precisamos reiterar que se trata de um conceito constituído no campo
progressista, tanto nas lutas dos movimentos estudantis, quanto na produção
acadêmica crítica. Articular a escola com as vidas dos estudantes é uma demanda
histórica dos movimentos juvenis. Projeto de vida pode se constituir como um
princípio curricular no Ensino Médio, uma vez que a educação de adolescentes e
jovens carece de maior aproximação, construção de vínculos ou mesmo de
iniciativas voltadas a dialogar sobre as incertezas ligadas ao futuro, em
especial aquelas concernentes ao mundo do trabalho.
Todavia, o caminho
trilhado no processo de implementação do Novo Ensino Médio – ofertado pelos
sistemas de ensino como uma unidade curricular obrigatória e com material
didático padronizado – está sendo bastante preocupante. Educar para a
construção de projetos de vida, na lógica que tem predominado, implica em um
modelo de desenvolvimento humano centrado no gerenciamento das emoções;
assumindo, inúmeras vezes, uma forte regulação moral.
Para exemplificar este
argumento, no quadro abaixo elenco três questões orientadoras de uma atividade
pedagógica proposta por um material de apoio para as atividades de Projeto de
Vida na rede estadual de São Paulo. A atividade intitula-se “Capacidade de
adaptação: eu e o mundo em transformação” e tem como foco três aspectos, quais
sejam: “tolerância à frustração, foco e determinação”. Após conversarem sobre o
que significa sair da “zona de conforto”, os estudantes deveriam responder, de
acordo com o referido material de apoio, as seguintes perguntas:
Você acha que, em
algum momento, desperdiçou energia atribuindo a culpa a alguém? Por que acha
que isso aconteceu? |
Quais as atitudes, escolhas ou posturas que você
pode enumerar para encarar a situação de forma propositiva e criativa
(buscando solucionar problemas)? |
Para você, qual a
relação existente entre a capacidade de adaptação e a tolerância à
frustração? |
Este é somente um
exemplar do conjunto amplo de atividades e de roteiros de estudo de Projeto de
Vida que encontramos nas propostas curriculares estaduais. Não resta dúvidas de
que estamos diante de uma fusão entre argumentos psicológicos e econômicos, articulados
a um cenário de regulação subjetiva. Ensinar os estudantes a saírem da ‘zona de
conforto’, aos 14 ou 15 anos, revela uma preocupação demasiada com a preparação
de subjetividades autogerenciáveis e, ao mesmo tempo, um desconhecimento
absoluto da constituição subjetiva da adolescência. Há um apelo à
individualização no contexto didático de uma roteirização do desenvolvimento de
projetos de vida como um componente obrigatório (no interior dos itinerários
formativos). Como ensina o conhecido texto de Hannah Arendt, a escola sem
conteúdos torna-se, facilmente, um espaço marcado pela retórica emocional e
moral.
- 5. Ausência de referentes conceituais para pensar a
adolescência
Ainda preciso
mencionar um aspecto que considero como a principal debilidade técnica das
propostas curriculares do Novo Ensino Médio: a ausência de uma reflexão
consistente sobre a aprendizagem e o desenvolvimento humano de adolescentes e
jovens. As apostas curriculares que perfazem a composição das diferentes
arquiteturas organizativas do NEM evidenciam um amplo distanciamento das
tendências contemporâneas na pesquisa sobre a adolescência. Mais que isso, a
justaposição entre educação integral e currículo por meio de competências
(cognitivas e socioemocionais) é apresentada sem o devido cotejamento técnico
(requerido para o tamanho desta política curricular), assemelhando-se muito
mais a uma profissão de fé de seus proponentes.
<><>
Uma pequena síntese
Enfim, no decorrer
deste breve texto procurei elencar um conjunto de reflexões direcionadas para a
recomposição das diretrizes curriculares no Ensino Médio em nosso país. À
medida em que reconhecemos os limites da proposta do NEM (que nos levou,
inclusive, a defender a sua revogação), assim como não desejamos um retorno aos
modelos anteriores, é momento de contribuir com novos apontamentos e ingressar
na luta política pelos seus significados. Vale a pena retomar as cinco
contribuições aqui elencadas, cada uma delas derivada de um amplo período de
investigação: a) é fundamental qualificar o detalhamento daquilo que conta como
conhecimento escolar, particularmente no âmbito dos itinerários formativos; b)
faz-se necessário um reposicionamento pedagógico do conceito de protagonismo
juvenil, evitando reduzi-lo à capacidade de escolha; c) os projetos de vida são
uma demanda histórica dos movimentos estudantis e juvenis e não deveriam ser
enquadrados em práticas roteirizadas e padronizadas; d) no âmbito da política curricular,
é momento de reequilibrar o debate entre o universal e o particular, com vistas
a construir uma escola mais justa; e) é importante enfrentar a questão da
aprendizagem e do desenvolvimento humano de adolescentes e jovens na escola.
Desejo que tais
contribuições possam se constituir como um ponto de partida para um diálogo
profícuo com os sistemas de ensino visando a construção compartilhada de uma
nova sensibilidade pedagógica para a escola de adolescentes e jovens no Brasil.
Fonte: Por Roberto
Rafael Dias da Silva, em Outras Palavras
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