‘Um
rebanho de cegos?’ - Os erros de estratégia da esquerda no combate à extrema
direita e ao fascismo
Talvez eu seja duro
nessa minha análise crítica sobre como as esquerdas latino-americanas têm se comportado
diante das escolhas políticas que precisaram encarar, claro, com o nosso caso
brasileiro especificamente.
Para saber como vamos
lidar com esse crescimento da influência, principalmente entre as massas
populares, da extrema direita, é preciso saber como e porque chegamos até esse
ponto.
Alguma resposta
precisa ser dada. Não adianta ficar nos indignando com as escolhas que o povo
faz, ou como boa parte desse povo tem incorporado esse discurso fascista ou
neofascista ou neonazista. Afinal, vamos culpar aqueles que assimilaram o
discurso da extrema direita apenas tratando-os como ignorantes e alienados? Um
rebanho de cegos seguidores de “mitos”, personagens ridículos de uma nova forma
de fazer política? Como os apelidaram os cientistas políticos: os outsiders.
É essa a explicação para todo esse turbilhão de alterações conjunturais em
sociedades radicalizadas politicamente?
Aprendi ao longo de
minha formação política, desde quando entrei na universidade como estudante, no
começo dos anos 1980, que a metodologia mais importante para a compreensão da
realidade é a dialética, criada por filósofos na antiguidade, e aperfeiçoada no
século XIX por Hegel e depois por Marx e Engels. Por essa metodologia, e por
sua dimensão filosófica, compreendemos o quanto é fundamental entendermos as
contradições que governam nossas vidas, na natureza e na sociedade.
As contradições, o seu
choque a partir das lutas dos contrários, o conhecimento da realidade objetiva,
compreendendo as causas geradoras dos fatos, seus efeitos e as consequências,
nos possibilitam ter a dimensão da realidade objetiva e concreta.
Assim, podemos dizer
que não existe nenhum fato que não possa ser explicado a partir de suas causas
geradoras. Ele, esse fato, tem uma razão de existir. Não surge do nada, nem
podemos conceder ao acaso a condução do processo histórico. O que precisamos é
saber fazer uma análise concreta da realidade objetiva. Ponto!
Quero ser enfático em
uma questão, pois acredito que é consensual entre os que possuem ligações com a
esquerda: desde a virada dos anos 2000, mais especificamente a partir do ataque
às torres gêmeas, chegando ao ápice com a crise dos chamado “subprimes”
e da especulação imobiliária nos EUA em 2008, como consequência da ganância que
é o motor do capitalismo, o mundo entrou em uma crise econômica sistêmica da
qual não se recuperou.
De lá para cá o que
vemos no planeta é uma forte disputa geopolítica pelo controle da economia, com
a disputa pela hegemonia entre grandes potências, principalmente EUA e China. A
globalização mudou de lado, foi demonizada por Donald Trump e defendida por Xi
Jinping.
Ora, como a esquerda
se comportou desde a queda da União Soviética e da crise do chamado “socialismo
real”? Substituímos um discurso revolucionário, de questionamento das
estruturas do sistema capitalista, como altamente perversa a impulsionar uma
vergonhosa desigualdade social, pela disputa eleitoral através dos caminhos da
chamada “democracia ocidental”. A fim de atingir o poder político, assumir o
controle político e comandar os destinos do nosso país. Assim como também
passou a acontecer em outros países.
E deu certo, no
aspecto político. Houve uma onda de eleições de lideranças de esquerda
assumindo governos na América Latina e em outras partes do mundo. Até mesmo
Barack Obama entrou nessa conta. Embora muito do que ele prometeu não foi
cumprido. Mas ele foi importante, como os demais governos de esquerda em um
aspecto: fez despertar com bastante força a luta identitária, antirracista e do
empoderamento das mulheres. Questões importantes, a reforçar a necessária luta
dos direitos humanos.
Acontece que o
capitalismo não se movimenta por esses caminhos. O que determina a sua essência
são as questões econômicas, a base, ou a infraestrutura que constrói todo o
arcabouço do sistema. Inclusive no aspecto do sucesso ou fracasso de um
determinado governo, seja à direita ou à esquerda.
Então precisamos
separar três aspectos. O econômico, o político e o social. Quando é possível a
um grupo político alcançar sucesso na democracia? Quando há um fracasso
econômico no comando do Estado, levando a que a população passe a ter
descrédito por aquele grupo partidário ou ideológico que está à frente do
governo. Assim aconteceu por muito tempo, quando levantamos a bandeira
anticapitalista, em defesa de um sistema mais justo socialmente, e contra as
estruturas construídas dentro da lógica sistêmica capitalista.
Bem como no ataque
forte e ideológico contra as classes que comandavam, e comandam, o poder
econômico seja com as grandes corporações, bancos e indústrias, a burguesia
urbana; e contra o grande latifúndio, produtor de monocultura para exportação,
perfidamente concentracionista. Passamos a combater cada vez mais o rentismo e
o latifúndio. E a esquerda cresceu, à medida em que a crise econômica
capitalista se intensificava.
Ora, com o poder
político na mão, e o controle do governo seja na federação ou em estados
importantes, o que coube a esquerda fazer? Aí podemos usar de forma ilustrativa
a metáfora do cachorro que corre atrás dos carros exibindo os dentes para os
pneus. Mas o que fazer quando esses veículos param? Não tem o que fazer. Ou
pouco há para fazer.
Talvez eu esteja sendo
bastante duro, até mesmo nessa comparação. Tudo bem. Mantenho o meu raciocínio.
Vamos debater a questão, caso alguém se disponha. Por muito tempo esbravejamos
contra o caráter desigual, perverso e concentrador de riquezas do capitalismo,
e por isso a esquerda angariou um número cada vez maior de simpatizantes,
socialistas ou não. Essas pessoas, através do discurso da esquerda,
compreendiam a perversão na lógica sistêmica capitalista.
No entanto, o que se
ofereceu para essa massa? O discurso do social, dos direitos humanos, de gênero
e do antirracismo. Todas as questões absolutamente importantes numa sociedade
desigual e preconceituosa. Mas e quanto às críticas feitas ao caráter perverso,
desigual e concentrador do capitalismo? Ou às mudanças na economia que
possibilitaria uma melhoria nas condições de vida das pessoas, que veriam não
mais o paraíso nos céus, mas a garantia de vida digna na terra?
Deixou-se de lado o
discurso antissistema e se passou à absoluta ineficaz tarefa de salvar o
capitalismo, ou de pelo menos tentar moderar suas perversões. E, no controle do
Estado, a difícil tarefa de lidar com contradições que impunham a necessária
subserviência de seus governos aos poderes dos senhores locais, personagens
corruptos que por décadas dominam a política passando a herança de suas
riquezas e de suas influências políticas para filhos e filhas.
As oligarquias
agrárias regionais só se fortaleceram. E passamos a mudar a nomenclatura da
luta contra esses segmentos. Deixamos de nominá-los de latifundiários para nos
referirmos a agronegócio. Isso é como deixar de classificar os venenos que se
espalham pelas produções como agrotóxicos e passar a chamá-los de “defensivos
agrícolas”. Esse foi um dos erros, porque o “agro virou pop”, e se tornou a
alavanca do PIB nacional. E os fazendeiros latifundiários prosseguiram
ampliando seu poder e grilando cada vez mais terras.
Amenizamos as críticas
aos bancos, porque eles passaram a ser parceiros importantes em muitos
programas e políticas de governos. E se adequaram bem ao discurso de
“investimento no social”. A burguesia migrou fortemente para o rentismo e a
indústria brasileira foi indo ladeira abaixo, escorada no investimento
estrangeiro em novas fontes de tecnologias que, por óbvio, expulsou milhões de
pessoas de seus empregos. E lá se vai aumento na concentração de riquezas e de
renda.
Fomos perdendo
gradativamente nossos discursos revolucionário, à medida em que se percebia a
possibilidade de ascensão ao poder, mediante a participação no processo
eleitoral. E isso aconteceu, e foi se espalhando.
Mas sem nenhuma
mudança no caráter desigual da estrutura do sistema, já em meio a uma crise
forte, oriunda de uma globalização fracassada. Os Estados se fragilizaram
salvando corporações financeiras, e até mesmo grandes fábricas
automobilísticas, e o desemprego foi se espalhando cada vez mais. Ao mesmo
tempo, o parlamento majoritariamente conservador insistia em cortar direitos
dos trabalhadores, seja no tocante ao trabalho, como na questão previdenciária.
E a esquerda no Poder.
Em meio à crise econômica e tentando geri-la. Pois, claro, é papel de quem está
no governo. Sendo assim, de pedra nos tornamos vidraças. As pessoas, que
acreditaram no discurso da construção de uma nova sociedade, de redução das desigualdades,
tornaram-se revoltadas, ressentidas, desesperançadas e fragilizadas em suas
condições sociais. Frustradas em suas melhores expectativas de passarem a viver
com dignidade.
Isso aconteceu por um
tempo, para boa parte da população, por meio de programas sociais importantes,
que amenizaram as condições péssimas de vida de dezenas de milhões de pessoas.
Mas isso não foi sustentável. Simplesmente porque não é somente sair da miséria
para a pobreza que contenta as pessoas no capitalismo. Pior ainda é uma classe
média não ser saciada em sua expectativa de chegar ao topo da pirâmide social.
Naturalmente ela se radicaliza e joga por terra todo o apoio concedido, se suas
expectativas não são atendias.
O que temos assistido
neste século é um fracasso econômico dos estados na tentativa de salvar um
sistema moribundo, mas que mantém as classes dominantes cada vez mais ricas, no
limite de suas vergonhosas contradições, pois isso se dá com um aumento crescente
do endividamento da maioria da população. Diante disso, e da impossibilidade de
apresentar aquilo que foi oferecido por décadas, de a esquerda assumir o poder
para combater a desigualdade que o capitalismo impunha, o que restou aos
governos progressistas foi elevar o tom na defesa de questões sociais,
radicalizando na defesa de legislações e políticas que pelo menos amenizasse o
sofrimento de boa parte da população, sujeita a preconceitos os mais perversos
possíveis.
Só que isso despertou,
por outro lado, uma extrema direita que vivia nos porões da política, sem até
então nenhum tipo de protagonismo que a colocasse como alternativa ao poder,
sempre disputado entre a esquerda, centro e centro-esquerda no espectro político
brasileiro, desde a redemocratização do país. Aliou-se ao fundamentalismo
evangélico e ao movimento conservador católico carismático, alguns pastores se
tornaram parlamentares e construíram um forte movimento dentro e fora do
Congresso Nacional, passando a influenciar os rumos da política institucional e
a liderar uma malta de pessoas desiludidas, fracassadas e assustadas com a
falta de perspectiva e insegurança crescente.
Foi fácil arrastar
essa turba para engrossar a pauta da extrema direita, juntando a alta
burguesia, os latifundiários e os movimentos religiosos conservadores.
Por outro lado, foi
instrumentalizado todo um aparato midiático tradicional e oficial, na defesa
dos interesses das camadas dominantes, e uma onda de influenciadores religiosos
e outros personagens oportunistas, a fim de desconstruir todo o discurso da esquerda
na defesa de um sistema alternativo ao capitalismo. E, mediante a acusação de
corrupção (sempre um risco para quem controla o estado) e de usar as
instituições para o interesse ideológico, construindo uma falsa narrativa de
guerra cultural, disseminando entre a população dúvida e raiva.
A partir de todo esse
movimento, e enquanto a esquerda se enrolava tentando gerenciar a crise do
estado capitalista, a extrema-direita ergueu o discurso de “antissistema”. Numa
postura absolutamente hipócrita, porque esse segmento se coloca contra as estruturas
políticas e a democracia (embora defensores do autoritarismo e das ditaduras),
não contra o sistema capitalista. Mas é uma dubiedade que confunde pessoas que
não possuem discernimento suficiente para compreender a dimensão de cada
significado desses objetivos. E o discurso “antissistêmico” da extrema direita
passou a envolver principalmente quem por muito tempo era os pilares dos
discursos revolucionários: a juventude. Isso foi muito marcante na Argentina,
mas também aqui no Brasil.
Mesclando o discurso
forte, antissistema, com a pauta conservadora dos costumes, na contraposição às
lutas encampadas pela esquerda, e tornada praticamente a principal bandeira de
suas ações, a extrema direita passou a se fortalecer, e, a construir um forte
discurso reacionário, na defesa de questões que se imaginava estarem
resolvidas, a ponto de surgirem personagens defendendo a aberrações de governos
ditatoriais militares. E isso sendo aceito e disseminado na sociedade, desde o
topo à base da pirâmide social.
Nessas circunstâncias,
não criadas pelas esquerdas, mas pela tentativa de se adaptar a elas e
amenizar a crise (condição natural para quem assume governo em um Estado
capitalista) a extrema direita foi acuando cada vez mais os setores
progressistas e a apresentar os mais diabólicos e extremistas personagens, com
discursos claramente fascistas, eivados de todos os tipos de preconceitos e
fortemente violentos.
Isso levou os setores
conservadores a construírem uma base parlamentar enorme, como nunca se viu na
política brasileira, e a ganharem eleições nos estados e no governo brasileiro,
mas não somente por aqui. Isso já vinha acontecendo pela Europa (Itália, Polônia,
Hungria, Grécia…), nos Estados Unidos, e em boa parte da América Latina, até
chegar ao mais novo energúmeno a ser alçado à condição de presidente: o
histriônico Javier Milei, eleito presidente da Argentina.
Porque tudo isso que
relatei anteriormente, embora com foco no Brasil, aconteceu também na
Argentina. E ainda vai acontecer em diversos outros países, enquanto a esquerda
não voltar a ter um discurso forte, verdadeiramente contra o sistema
capitalista, e apontando objetivamente alternativas a essas estruturas
perversas que existem.
Não estou apresentando
nenhuma receita, e sei que essa é a parte mais difícil. Mas só sai de uma
enrascada tentando entender como se chegou a ela. E se me estendi nessa
abordagem, falando o que pra mim por todo esse tempo sempre foi o óbvio é para dizer
que não há surpresa nenhuma no que está acontecendo. A esquerda precisa mudar a
estratégia. Como a extrema direita fez. Para retomar um discurso que já se
fazia até as datas iniciais deste século. Ou seja, naquele momento em que as
pessoas começaram a acreditar nos discursos e eleger partidos de esquerda para
os governos, como consequência da crise sistêmica capitalista.
Não estou sugerindo
que se esqueça bandeiras importantes na luta pelos direitos humanos, nas
questões de gêneros ou antirracistas. Mas essas não podem se constituir em
embates radicalizados, de importância maior do que aquelas que nos mostrem, de
forma geral, quais são as raízes de todos esses males que nos consomem. É
necessário que saiamos da especificidade e retomemos bandeiras gerais, de fato
antissistêmicas, num enfrentamento ideológico claro, de forma a contribuir com
a formação política e intelectual das camadas oprimidas, no objetivo daquilo
que sempre nos miramos, mesmo que numa esperança utópica, da construção de um
sistema mais justo e menos desigual.
Apontar as mazelas do
capitalismo, mesmo para quem é parlamentar ou está em um governo, deve ser o
objetivo de quem se elegeu criando expectativas e estimulando sonhos dos
desfavorecidos socialmente, e de uma classe média que por muito tempo apostou
nas pautas dos partidos de esquerda.
O combate à pobreza e
à desigualdade social não pode ser travado sem deixar claro que essas condições
são criadas por um sistema injusto, escorado na ganância e na usura. Só assim
poderemos nos livrar dos Bolsonaros e dos Mileis, que estão a se multiplicar,
porque a esquerda não está sendo convincente na apresentação de alternativas ao
sistema capitalista.
É preciso deixar claro
que a extrema direita não é, nem nunca foi, antissistema. Sua luta é contra a
democracia liberal e o socialismo. Mas usa de um discurso escorado na falsa e
hipócrita defesa de costumes, apoiando-se no medo que se dissemina na maneira
como se dá essa comunicação, por meio da religião, embora também reflexo da
crise: fragilidade, ignorância, medo e ressentimento, alimentam a extrema
direita e faz ressurgir a sombra do fascismo.
É difícil reverter
isso? É. Mais difícl, no entanto, está sendo viver nessa conjuntura política e
nessa crise estrutural sistêmica. E enquanto eu escrevia esse texto me deparei
com o mais novo trabalho sobre as desigualdades sociais, refletidas no Relatório
da Oxfam sobre o consumo dos 1% mais ricos, escandalosamente maior do que os
99% restante. E que “Em 2030, as emissões do 1% mais rico do mundo deverá ser
22 vezes superior ao limite seguro de emissões permitidas”.
Ou seja, não há
salvação para a humanidade enquanto perdurar essa lógica que movimenta
expansivamente o sistema capitalista. É dever da esquerda retomar seu discurso
e sua prática revolucionária antissistêmica. Refazer a utopia, e fazer as
pessoas sonharem novamente com outro mundo, sem essa lógica perversa e desigual
que o capitalismo impõe. Antes que seja tarde.
Fonte: Por Romualdo
Pessoa Campos Filho, em A Terra é
Redonda
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