Agrotóxico pode estar matando apiário de
200 anos em Pernambuco
Guardião de abelhas,
João Batista, 69 anos, está vendo o apiário de 200 anos que herdou da família
sofrer baixas ano após ano. Seu João nasceu e foi criado no Sítio Boqueirão, em
Serra Negra, no município de Bezerros, a 100 quilômetros do Recife. Não sabe
ler nem escrever, mas, para ele, seus conhecimentos e sua sabedoria não deixam
dúvidas: agrotóxicos de fazendas vizinhas estão matando suas abelhas e
destruindo parte das suas plantações de frutas e hortaliças.
O apicultor calcula
que perdeu um quarto dos insetos nos últimos quatro anos, com um episódio maior
de perda em junho deste ano, quando centenas de abelhas mortas formaram, nas
palavras de seu João, um “tapete vermelho” no chão. Ele possui cerca de 20 cortiços,
cada um com capacidade para abrigar aproximadamente três mil abelhas sem ferrão
do tipo uruçu (Melipona scutellaris), cujo litro de mel na capital pode
ultrapassar R$ 400.
A queda na produção de
mel e o impacto nas plantações está afetando a renda da família e preocupando
seu João, que também tem visto “pés de fruta” do quintal morrerem e pimentas e
couves ficarem amareladas e murchas. “Aqui nós tínhamos muito caju. Agora só
comemos caju comprando na rua”, comenta. A Marco Zero visitou a casa onde o
apicultor vive com a esposa, Inácia Maria da Silva, 69 anos. “Peguei depressão
de novo”, foi a primeira frase dele ao nos receber.
Seu João alega que
tudo é culpa de venenos aplicados em propriedades vizinhas para “matar o mato”,
isto é, desmatar e abrir pastagem para gado. Ele vem tentando provar isso e
chamar a atenção da gestão municipal, desde que denunciou sua situação na Prefeitura
de Bezerros há dois meses. “O cheiro do veneno é muito forte e dá um pigarro na
goela da gente”, descreve. “Tenho certeza que foi esse veneno que matou minhas
abelhas, ele chega aqui com o vento”, afirma.
“As águas também
ficaram poluídas, porque o veneno corre para os córregos”, acredita seu João.
“Aqui a gente agoa os pés de fruta e as folhas com essa água e aí eles ficam
encriquilhados (não crescem)”, explica. “O veneno é um devorador de tudo e
estou rodeado dele”, resume. “Eu tive uma depressão pesada no ano passado. As
abelhas para mim são tudo, comecei a criar com 10 anos e estou até hoje lutando
por elas”, relata. O apicultor conhece todos os proprietários de terra ao redor
e teme pelo isolamento e pela relação com os vizinhos.
As abelhas são
importantes polinizadores, elas transportam os grãos de pólen entre órgãos
masculinos e femininos das flores, auxiliando na reprodução das plantas e na
formação de frutos e sementes. Sua proteção está diretamente ligada à
preservação da flora e da fauna. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) defende que as abelhas nativas, como as uruçu que seu João cria, são
essenciais para uma agricultura sustentável e para a polinização de algumas
culturas usadas na alimentação humana, como tomate, berinjela, café e caju.
Segundo a empresa,
vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária, as abelhas, assim como
outros animais polinizadores, são responsáveis por um terço dos alimentos que
comemos. Além disso, a fabricação do mel fortalece os pequenos produtores e
está diretamente relacionada à sustentabilidade e à conservação ambiental.
• Herbicida de largo uso pode ser causa da
morte das abelhas
Pelas características,
seu João acredita que suas abelhas estão morrendo por causa de um herbicida
chamado tordon, de composição dupla (2,4-D e Picloram), cuja venda é controlada
e o manuseio exige uma série de recomendações, uso de Equipamentos de Proteção
Individual (EPI) e aplicação exclusiva por pessoal capacitado. São sensíveis ao
tordon culturas como algodão, tomate, batata, feijão, soja, café, eucalipto,
hortaliças e flores. Para o apicultor, o fato de ele não conseguir mais plantar
feijão é outra evidência do uso desse herbicida.
Em Bezerros, lojas
especializadas vendem o produto por R$ 600, o balde de 20 litros. É preciso
preencher um receituário para fazer uso em pastagem, algo semelhante a um
controle de medicamentos. O tordon é um dos herbicidas mais usados para abrir
campos de pastagem para gado. Numa escala de periculosidade decrescente, que
vai de I a IV, ele é classificado como classe III, “perigoso ao meio ambiente”.
Ele não pode ser
aplicado a menos de 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e
mananciais de água para abastecimento da população e a menos de 250 m de
mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais. Sua aplicação
na presença de ventos fortes e nas horas mais quentes do dia também é vedada.
A médica e sanitarista
do Instituto Aggeu Magalhães, da Fiocruz em Pernambuco, Idê Gurgel explica que
o componente 2,4-B é o segundo herbicida mais consumido no Brasil, só perde
para o glifosato. A junção entre 2,4-B e o picloram, diz ela, é semelhante ao
Agente Laranja, usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
“Embora exista quem
acredite que esses produtos não são danosos para a saúde, há inúmeras
controvérsias. Existem vários trabalhos que demonstram esses danos. Como todo e
qualquer agrotóxico, ele não atinge só aquelas plantas para as quais está sendo
aplicado. Eles acabam atingindo toda a diversidade no seu entorno. Inclusive,
há vários estudos na literatura que demonstram o potencial danoso para outros
animais, como ratos, peixes e as abelhas”, detalha Idê. Ela acrescenta que
tanto para B2-4-B quanto para o picloram há estudos demonstrando o potencial de
causar câncer, como, por exemplo, no fígado, nos rins e na tireoide.
• Prefeitura identifica propriedades que
aparentemente usam tordon
Seu João denunciou a
morte das abelhas na Prefeitura de Bezerro. A MZ conversou com o gerente de
planejamento da Secretaria de Agricultura de Bezerros, Josiel Silva. Ele disse
que, nas visitas à área, foram identificadas duas propriedades que aparentemente
fazem uso do tordon. “Ainda não conseguimos flagrar. Já fomos duas vezes, mas,
para conseguirmos alguma prova para possível ação, precisamos pegar no ato”,
disse o gestor, que falou que, nas visitas, os proprietários das fazendas não
foram encontrados. “É bem provável (que seja o tordon), só não temos certeza
pois no mercado existem outros (herbicidas)”, acrescentou.
“Quando identificarmos
é que também vai ser possível identificar a procedência de onde está vindo o
produto, uma vez que esses produtos são vendidos com um controle bem rígido”,
afirmou Josiel. Como resposta à denúncia de seu João, a prefeitura disse que
está conversando com um dos utilizadores da prática de capinação química,
elaborando material para levar ao grupo escolar local, para despertar sobre os
perigos do uso incorreto do defensivo agrícola e fazendo fiscalizações na área
sem prévio aviso.
Além disso, se
comprometeu em apresentar um material do uso consciente de defensivo agrícola e
seus malefícios, tentar uma parceria com Agência de Defesa e Fiscalização
Agropecuária do Estado de Pernambuco (Adagro/PE) e Instituto Agronômico de
Pernambuco (IPA) para uma atuação conjunta no Sítio Boqueirão, além de fazer
uma busca ativa da pessoa ou contato dos demais aplicadores.
• Fiscais da Adagro fazem visita técnica
ao apiário
A denúncia de seu João
foi formalizada pela Ouvidoria da Adagro ainda em junho. Mas só esta semana,
após contato da reportagem, a agência realizou uma vistoria para averiguar uma
possível contaminação por resíduo de agrotóxicos no apiário de seu João, que
recebeu cinco fiscais estaduais da agência, sendo três da Gerência Estadual de
Inspeção Vegetal (GEIV) e dois da regional de Caruaru. De acordo com a equipe,
a investigação também foi realizada em outras três propriedades do entorno,
todas com a presença de apiários de abelhas uruçu e presença de áreas de
pastagens para pecuária no entorno. Pelo menos um dos proprietários de fazendas
de gado confirmou que utiliza agrotóxico do tipo herbicida para controle de
plantas invasoras.
Apenas no apiário de
seu João houve relato de mortandade de abelhas. No momento da vistoria, disse a
Adagro, cerca de 10 colmeias cultivadas em troncos foram analisadas e “em
nenhuma delas os animais apresentaram comportamento de desorientação nem dificuldade
para voar, sintomas característicos de contaminação por agrotóxico”. “Caso as
abelhas apresentassem tais sintomas, teriam sido coletadas ainda vivas para
análise da Adagro. Mas todas as abelhas ‘mortas’ encontradas na propriedade
ainda tinham sido do episódio relatado no início de junho, pelo apicultor”.
“De acordo com a
equipe de fiscais, se tivesse ocorrido uma grande pulverização, seria muito
provável que todos os apiários tivessem sido atingidos, mas não foi o caso”,
relatou o gerente da Adagro, Filipe de Moura. Ainda segundo a equipe, “como a
área do entorno é formada de pastagem para a pecuária, há uma possibilidade de
aplicação de agrotóxicos (herbicidas), fato que pode ocasionar problemas de
deriva, possibilitando a contaminação dos apiários”. A agência, no entanto, não
mencionou qualquer questão sobre as plantações de seu João.
A Adagro ressaltou
que, em Pernambuco, a Lei nº 17.526/21, que altera a Lei 12.753/05, veda, no
seu Art. 7º-A. “a aplicação aérea de produtos agrotóxicos, seus componentes e
afins numa distância mínima de 500 (quinhentos) metros das áreas de apicultura
e meliponicultura”. A agência assegurou que continuará investigando o caso e
fará novas vistorias na região de Serra Negra, especialmente vistorias nas
propriedades com pastagens de maior porte, localizadas no entorno dos apiários,
para verificar se há aplicação de produtos em desacordo com a lei estadual.
A Adagro repassou
ainda que “mantém vigilância permanente com relação aos impactos dos
agrotóxicos sobre a apicultura do estado, realizando mensalmente coletas de mel
no CEASA, para análise deste tipo de resíduo”. Nos últimos 12 meses, de
setembro de 2023 a agosto de 2024, foram realizadas 2 coletas de amostras de
mel de diversas marcas comerciais e todos os resultados deram negativo para
resíduos de agrotóxicos.
Em todo o estado, a
Adagro possui 216 fiscais agropecuários, sendo que 13 deles atuam na gerência
regional de Caruaru e dois desenvolvem ações de defesa e inspeção vegetal.
• CNDH investiga violações em comunidades
afetadas por energias renováveis no Nordeste
Com o objetivo de
investigar denúncias de violações de direitos humanos em comunidades impactadas
por empreendimentos de energias renováveis, o Conselho Nacional de Direitos
Humanos (CNDH) realiza uma missão em Pernambuco e na Paraíba, entre os dias 29
de agosto e 2 de setembro.
A missão prevê visitas
para dialogar com as comunidades afetadas pela instalação de parques eólicos e
solares, bem como uma audiência pública com autoridades, parlamentares e
famílias atingidas. Em Pernambuco, a missão visitará o povo Kapinawá, impactado
por uma fazenda eólica no município de Buíque, e a comunidade de Sobradinho, em
Caetés, também afetada pelos empreendimentos eólicos.
Na Paraíba, as visitas
acontecerão na Usina Yayu para observar o complexo solar local e nos Quilombos
da Pitombeira e Talhado Santa Luzia, ambos afetados por complexos híbridos de
energia solar e eólica. Na ocasião, também estarão presentes representantes do
assentamento Novo Horizonte.
A comitiva do CNDH é
composta pela presidenta do Conselho, Marina Dermmam, do Instituto Cultivar, e
dos conselheiros André Carneiro Leão, da Defensoria Pública da União (DPU), e
Edna Jatobá, do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações
Populares (Gajop),
além da relatora especial prof. Verônica Gonçalves (UnB). Além disso, a missão
contará com a participação de várias entidades, entre elas, a Comissão Pastoral
da Terra (CPT), Cáritas Brasileira NE2 (CBNE2), Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
A programação da
missão finaliza no dia 02 de setembro com uma audiência pública que acontece na
Defensoria Pública da União (DPU-PE), localizada no Edifício Empresarial
Progresso, no bairro da Boa Vista, na área central do Recife. Na ocasião serão
discutidos os resultados das visitas com a presença de representantes das
comunidades impactadas, autoridades governamentais e parlamentares.
Fonte: Marco Zero
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