Terrorismo à
brasileira
O
Senado brasileiro retomou no início de 2023 as discussões sobre a possibilidade
de se considerar que grandes organizações criminosas no país passem a ser
classificadas como grupos terroristas. O PL 3.283/2021 foi
apresentado pelo senador Styvenson Valentim (Podemos-RN). O PL altera a lei
antiterrorismo, a lei antidrogas, a lei das organizações criminosas, e o Código
Penal para equiparar as ações de grupos criminosos organizados à atividade
terrorista.
Apesar
da discussão já estar em pauta há pelo menos quatro anos no Congresso nacional,
o tema voltou a ganhar tração pelas recentes ondas de violência no Rio Grande do
Norte,
quando a Polícia Federal, inclusive, teria prendido membros do Primeiro Comando
da Capital (PCC) por supostamente planejarem atentados contra
autoridades políticas.
A
mudança no arcabouço legal do país, apoiada por figuras como os senadores
Sergio Moro e Jorge Kajuru, é bastante clara: por se tratarem de organizações
complexas, operando em diversos países e com capilaridade no sistema prisional,
grandes grupos narcotraficantes deveriam ser enquadrados juridicamente de forma
mais repressiva. Garantias legais usufruídas pelos “criminosos tradicionais”,
como relaxamento de pena, visitas íntimas e outras ações, não seriam estendidas
para tais grupos excepcionais, que teriam suas punições aumentadas e o esquema
de detenção, como regimes semiabertos, dificultados.
O
Brasil, contudo, não está inaugurando tal estratégia e a comparação com países
que realizaram esse movimento de “ampliação da nomeação do terrorismo” dão
indicativos que sua eficácia é bastante controversa. Nações tão diversas como Colômbia, Índia e Líbano tentaram
implementar políticas parecidas nas últimas décadas com resultados
catastróficos para populações mais frágeis, além de não melhorarem indicadores
de violência e, em alguns casos, até mesmo pioraram sua situação. Pesquisas
recentes demonstram que, por exemplo, o
Estado indiano é mais letal contra grupos considerados terroristas,
com registros de execuções sumárias e prisões ilegais de ativistas que foram
assim classificados. Por outro lado, os índices de atentados no país passaram a
diminuir após o investimento em inteligência e não em forças repressivas.
A
insistência do termo como ferramenta de nomeação de inimigos, contudo, é
bastante simples: o terrorismo como ideia política é um dos conceitos mais
mutáveis e variáveis do sistema internacional. Apesar de ser entendido, de
forma ampla, como atos de violência que têm civis como alvo e que buscam
objetivos políticos ou ideológicos, a comunidade internacional não compartilha
uma definição amplamente aceita sobre o termo. Nessa lógica, cada país acaba
por enquadrar grupos como “terroristas” de forma essencialmente política,
indicando determinado grupo como tal sem efetivamente existir uma metodologia
clara. O “terrorista” é efetivamente um significante vazio, na medida em que
dentro do termo podem ser enquadrados os mais distintos coletivos.
A
questão ganha nuances ainda mais complexas ao se levar em conta que mais do que
um conceito etéreo, a gramática do terror autoriza e facilita
que forças estatais cometam ações de repressão com respaldo público. Pesquisas
sobre o terrorismo como fenômeno político apontam distintas ondas dessa
prática, passando por coletivos anarquistas na Rússia Czarista a grupos
separatistas na Espanha e na Grã Bretanha. Após os ataques de 11 de setembro de
2001 nos Estados Unidos, o termo passou a ser atrelado ao fundamentalismo
islâmico e grupos armados no Oriente Médio e no norte da África. A Guerra Global ao Terror, nesse contexto,
representou um conflito sem fronteiras, contra grupos que ameaçavam, pelo menos
discursivamente, pautas básicas para o Ocidente, como democracia e direitos
humanos. O terrorista, agora, se transforma em uma figura
fantasmagórica, presente em países que parte importante da população
estadunidense não conseguiria apontar em um mapa, mas que ameaça a existência
do Estado a todo momento.
Não
surpreende, que a principal ferramenta para lidar com essa ameaça foi um
conjunto de regras que efetivamente indicavam que essa figura inimiga deveria
ser tratada fora das regras normais: o decreto Ato Patriota deu poderes ao então presidente
George W. Bush Filho para
enfrentar tais grupos armados, o inimigo absoluto, sem precisar
respeitar normas constitucionais dos EUA. É nesse contexto em que se realizam
os chamados interrogatórios forçados, definidos como tortura
por grupos de proteção dos Direitos Humanos, ou mesmo a manutenção de uma
prisão ilegal em Guantánamo, onde presos podem ficar décadas sem serem acusados
formalmente de crime algum. Esse conjunto de práticas gerou reação em diversos
locais no mundo, como no Egito e na Indonésia, onde lideranças se aproveitaram
da comoção global para também enquadrar grupos rivais como terroristas e,
assim, respeitarem ainda menos as normas internas. O terrorismo, no contexto
moderno, é o que os Estados escolhem que é.
·
Brasil
A
lógica dupla do terrorismo como um significante vazio, mas ao mesmo autorizador
de medidas extremas, ganha nuances ainda mais problemáticas ao voltarmos nosso
olhar para o contexto brasileiro. O país usou o termo de forma ampla, pela
última vez, durante a Ditadura Militar, quando o governo autoritário definia
assim grupos de resistência ao regime, com as sabidas consequências trágicas
para o respeito aos Direitos Humanos. O termo ficou restrito aos meios de
segurança após o fim do governo militar e, nos anos 1990 e 2000, o país
resistiu em definir de maneira clara o conceito: tanto Fernando Henrique
Cardoso quanto Lula sofreram pressão dos EUA para enquadrar o país na agenda,
mas apontaram que não se tratava de uma prioridade para o governo. O país acabou criando uma lei
antiterror no governo de Dilma Rousseff, em 2016, no contexto dos grandes eventos
que o Brasil abrigaria, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol. A
justificativa era que o país receberia delegações de todo o mundo e precisaria
de um arcabouço jurídico para enfrentar possíveis ameaças.
A
lei antiterror brasileira é bastante elusiva, com definições bastante amplas e
abrindo margem para que movimentos sociais sejam enquadrados como grupos
terroristas. Apesar de um adendo posterior que indicava que coletivos sociais
não poderiam ser enquadrados como tais organizações, não há garantias de que
isso não possa ocorrer. Em um país que possui uma das polícias mais letais do
mundo e onde as Forças Armadas operam de forma cada vez mais ampla como agentes
de segurança pública, é temerária mais uma movimentação que expande a
conceituação do terrorismo, que pode servir como elemento que facilite, ainda
mais, operações violentas. O tiro ainda pode sair pela culatra: pesquisas sobre
mídia e terrorismo demonstram que o enquadramento pode ajudar grupos criminosos
a aumentar sua notoriedade e alcança, fazendo com que sejam vistos como mais
fortes do que realmente são.
Após
quatro anos de um governo que flertou com o autoritarismo, o Brasil retoma a
tentativa de pautar as ações pela legalidade e no combate a violências
políticas e crimes contra a democracia, como na invasão de Brasília em 8 de
janeiro. É temerária que, nesse contexto, grupos políticos decidam pela criação
de novas ferramentas repressivas que podem agravar ainda mais o quadro de
instabilidade do país.
Fonte:
Por Fernando Brancoli, no Le Monde
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