Saúde digital: os
riscos da “plataformização”
A
saúde digital emergiu como uma nova tendência durante a pandemia de covid-19.
Consultas online passaram a ser regra para muitos médicos por todo país, como
forma de diminuir os riscos de contágio – e continuam mesmo após o
arrefecimento da crise, em especial no setor privado. Apesar de o boom ter
ocorrido nos últimos três anos, as discussões em torno da digitalização de
alguns serviços em saúde não são tão recentes, e sua concretização já é uma
realidade no Brasil desde os anos 2000.
Hoje,
a iniciativa privada concentra grande parte das ações nesse sentido – grande
exemplo disso são os aplicativos desenvolvidos por startups de
atenção primária, que oferecem monitoramento de sintomas e consultas por
videochamada com médicos. A abertura desse mercado, assim como as iniciativas
efetuadas pelo sistema público – como o e-SUS, em 2012 – estão inseridos em uma
série de políticas tomadas pelo governo federal desde os anos 1990, aponta uma
pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O grupo de pesquisa Implicações
das Tecnologias Digitais nos Sistemas de Saúde, criado a partir do
apoio da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas
(ONU), vem analisando as políticas para a saúde digital implementadas no
Brasil até o momento e como estas estão inseridas no contexto de avanço do
neoliberalismo no mundo.
“Nos
últimos 30 anos foram viabilizados processos de privatização, novas formas de
regulação de mercados e a abertura comercial”, apontam os pesquisadores
em artigo recente da
revista Ciência & Saúde Coletiva. Segundo eles, a lógica dos
serviços digitais de saúde vem seguindo esse caminho por meio da gestão de
grande volume de dados da população – não só daqueles coletados pelos
aplicativos, mas também pelos órgãos públicos e compartilhados com empresas
privadas.
O
grupo chama esse fenômeno de “plataformização”, que consiste na concentração
dos dados coletados e na leitura dos usuários de diferentes aplicativos como
consumidores – e não como cidadãos que têm acesso à saúde como direito. A
digitalização, nesse caso, ocorre através de um raciocínio
“tecnossolucionista”: a ideia de que a tecnologia é a solução para os problemas
enfrentados na área hoje, resumidos à simples falta de atendimento, como
explica Raquel Rachid, uma das pesquisadoras envolvidas no estudo, ao Outra
Saúde. Ou seja, aplicativos, plataformas e demais ferramentas digitais de
saúde têm como foco coletar dados – para oferecer futuros serviços – e agilizar
atendimentos, pensamento atrelado à ideia de otimização da produção.
Leia
a entrevista.
·
O artigo fala sobre como o modelo de “plataformização”
serve ao contexto neoliberal, inclusive após a crise de 2008. Como isso ocorre?
Considerando
o contexto de crises que é típico das relações sociais sob o capitalismo,
a “plataformização” que nós abordamos é observada como expressão da
aceleração da digitalização dos serviços públicos, notadamente inspirada em
modelos de negócio desenvolvidos pela iniciativa privada. Como um fenômeno que
provê respostas ao movimento de busca por valorização, que se renova a cada
instabilidade mais premente do sistema, esse retrato não é exclusivo do setor
da saúde. A chamada “plataformização” é operada por meio da ação do Estado em
face da delegação de infraestruturas tecnológicas e da prestação de serviços
públicos mediada por soluções privadas. Isso sob um discurso de inovação que
escamoteia o avanço do capital – no caso do artigo, na Saúde (o que é
particularmente conflitante com os fundamentos do SUS). A crise de 2008
intensifica esse tipo de operação de “cooperação” entre setores como forma de
responder à expectativa por estabilização econômica. Trata-se de um processo
ainda mais apressado e alastrado em razão da pandemia de covid-19.
·
No artigo, você conta a história desde a criação do
e-SUS até a colocação do departamento de Saúde Digital dentro do ministério da
Saúde, mas aponta a falta de participação popular na construção das
estratégias. Qual a importância desse fator ausente, na sua opinião?
Essa
é uma marca bastante visível na elaboração da Estratégia de Saúde Digital para
o Brasil 2020-2028, por exemplo. Temos debatido que a ausência de espaços de
participação social – mesmo daqueles que não significariam a atribuição de um
caráter propriamente decisório ao controle social – está relacionada ao que se
espera de usuários e usuárias nesse modelo de saúde digital: satisfação medida
por meio de um certo “engajamento” e analisadas a partir de interações
tecnológicas, expressas em dados por meio de técnicas questionáveis, se
levarmos em contas os limites de arquitetura e modelagem prévias dessas
plataformas. Essa ausência caracteriza o modelo atualmente existente. Assim, a
eventual incorporação de mecanismos de participação que prescindam da
problematização desse elemento será também problemática. É salutar haver
disputa dos rumos traçados para a saúde digital.
·
Com a abertura à iniciativa privada, você coloca outro
problema: a “defesa tecnossolucionista como promotora de respostas aos desafios
dos sistemas de saúde”. Onde podemos achar provas deste processo e porque ele
não é suficiente?
O
tecnossolucionismo, como enaltecimento das potencialidades trazidas pela
tecnologia em detrimento do contexto de seu desenvolvimento, pode ser
amplamente evidenciado – na saúde, costuma estar associado à expectativa de que
a implementação de tecnologias levará à melhora do acesso universal à saúde de
forma instintiva. É preciso considerar que uma série de contradições atravessam
os processos de incorporação de tecnologias pela saúde pública e que a ausência
de um horizonte que retome as disputas em torno da realização do SUS não pode
ser substituído por artefatos tecnológicos como se estivessem descolados do
contexto de reprodução social.
·
Em seu artigo, você fala sobre como o Brasil se
inspirou no modelo dinamarquês. É uma inspiração inusitada, pelas diferenças
sociais e econômicas entre os países. Como isso aconteceu? Existe saldo
positivo?
Os
instrumentos de cooperação entre os países para o tema da saúde remontam a
2014, havendo renovações importantes nos últimos anos – já no contexto da saúde
digital. Detalhamos essa questão ao longo do artigo, considerando o
processo marcante de digitalização conduzido pelo Estado dinamarquês em aliança
com o setor privado. Para além da influência dinamarquesa, é também conhecida a
influência do Reino Unido em face da saúde digital brasileira – um acordo
datado de 2020 que conta com a participação de uma grande consultoria
transnacional no papel de executora de tarefas que não ficam expressas no texto
deste termo. Aliás, em uma obra recente, as pesquisadoras Mariana Mazzucato e
Rosie Collington detalham como a privatização de serviços públicos criou
possibilidades de expansão da indústria de consultoria – que, não raramente,
moldou reformas institucionais em países periféricos por influência de organizações.
Fonte:
Por por Alessandra Monterastelli, em Outra Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário