segunda-feira, 3 de abril de 2023

Pandemia e redes sociais agravaram violência escolar no país

O ataque a faca em uma escola estadual de São Paulo, que deixou uma professora morta e outras quatro pessoas feridas, na última segunda-feira (27/03), acendeu um alerta. Ainda que casos isolados de violência escolar sejam registrados no Brasil há mais de 20 anos, o fenômeno se intensificou nos últimos meses. Em meio aos efeitos do estresse provocado pelo isolamento social prolongado na pandemia, jovens encontram estímulos a ações violentas no ambiente digital.

"Infelizmente, sabemos sabe que vai acontecer de novo. É uma questão de tempo", constata a pesquisadora Telma Vinha, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O primeiro ataque do tipo ocorrido no Brasil se passou em 2002, em Salvador. Desde então, o país teve 22 casos registrados, já contabilizado o episódio mais recente. Desse total, nove casos se concentram nos últimos oito meses – percentual superior a 40%. "A escola tem um sentido negativo para esses estudantes. Os dados que coletamos mostram que todos eles tiveram sofrimento na escola, seja por bullying ou humilhação, que geram transtornos mentais. Nos últimos anos, o problema foi muito fomentado por interações no ambiente digital, onde grupos extremistas incentivam essas ações", comenta Vinha.

A radicalização cada vez mais precoce dos jovens é um fenômeno que preocupa especialistas. O fenômeno de incentivo a práticas violentas, descrito pela pesquisadora, pode ser facilmente observado por uma rápida busca em redes sociais. A tag "TCC " (True Crime Community) – comunidade de crimes reais, na tradução livre – é a chave para identificar interações desse tipo, seja em chats de games, como o Discord, mas também em plataformas como o Twitter.

"Esses grupos sabem como acolher as pessoas e trabalhar seus pontos fracos. Os jovens se sentem inseridos em uma família, como parte de um movimento, mesmo que seja imaginário. Quando um menino diz que não está bem e que está pensando até em se matar, eles falam: se mata, mas não vai sozinho, você leva os outros com vocês", detalha a pesquisadora.

•        Efeito contágio

Nas 48 horas posteriores ao ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, no bairro Vila Sônia, na capital paulista, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) registrou sete boletins de ocorrência com planos de adolescentes que pretendiam realizar atentados semelhantes em ambiente escolar.

A Secretaria suspeita que a ampla divulgação pelos veículos de comunicação e redes sociais da ação na escola Montoro tenha causado um efeito "contágio", e motivado outros alunos a repetir o ataque. A professora da Unicamp relata que, em grupos extremistas monitorados por seu grupo de pesquisa, a repercussão do caso foi celebrada, como uma demonstração de poder.

As situações de violência contra professores no Brasil não se restringem a casos extremados. O país lidera um ranking de violência nas escolas elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O levantamento, divulgado em 2019, considera dados de 2013, quando 12,5% dos professores brasileiros ouvidos relataram ser vítimas de agressões verbais ou de intimidação de alunos ao menos uma vez por semana. A média entre os 34 países pesquisados é de 3,4%. O Brasil é seguido por Estônia (11%) e Austrália (9,7%).

A realidade exposta pelas estatísticas foi agravada no período pós-pandemia. Segundo dados da Secretaria da Educação de São Paulo, nos dois primeiros meses de aula de 2022, foram registrados 4.021 casos de agressões físicas nas unidades estaduais — 48,5% a mais que no mesmo período de 2019, último ano em que os alunos frequentaram as aulas presenciais todos os dias.

•        Impactos da pandemia

Em novembro de 2022, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) lançou o livro Trajetórias/práticas juvenis em tempos de pandemia da covid-19, resultado de uma pesquisa com jovens de seis países latino-americanos. O estudo teve por objetivo conhecer os impactos do isolamento social prolongado na juventude.

"Muitos jovens tentavam preencher o seu cotidiano com coisas diferentes, mas outros não conseguiam fazer isso e tinham problemas de insônia e depressão. Quando retornam para o ambiente escolar, trazem isso com eles. A escola, por sua vez, voltou igualzinha, não mudou em nada o seu papel", avalia a socióloga Miriam Abramovay, que coordena a Área de Estudos e Políticas da Flacso.

A pesquisadora avalia que o conjunto de problemas ligados à convivência escolar reflete um foco desproporcional nos indicadores de desempenho. Abramovay salienta que a garantia de um ambiente escolar saudável é fundamental para o processo de aprendizagem. Para isso, defende que as escolas dediquem maior atenção à saúde mental dos estudantes, mesmo que não contem com profissionais específicos para isso.

"Você não precisa ser psicólogo para ver que um jovem anda de malha todo dia e que, provavelmente, ele se corta, se automutila. Você não precisa ser psicólogo para notar que alguém está tão triste, que chega a fazer a tentativa de suicídio. Você não precisa ser psicólogo para notar que eles brigam, que eles se xingam, que eles se batem, que eles furtam", afirma.

•        Militarização das escolas não é a solução

Ambas as pesquisadoras ouvidas pela DW Brasil, Vinha e Abramovay, rechaçam a via de militarização das escolas como forma de solucionar o problema. Elas recordam que o primeiro ataque contra professores registrado no Brasil, em 2002, ocorreu justamente em uma escola militar, na Bahia.

"Precisamos ampliar os sistemas de proteção, mas sobretudo criar políticas de convivência – muito mais barato e eficiente do que investir em segurança. Ampliar o fortalecimento de serviços de apoio à saúde mental também é importante", afirma Telma Vinha.

A pesquisadora da Unicamp defende medidas de responsabilização e punição das plataformas que abrigam conteúdos de incentivo à violência. O monitoramento efetivo desse tipo de interação permitiria identificar previamente a inclinação de adolescentes à prática de atos violentos.

"É muito ingênuo achar que família vai dar conta, porque as famílias de escolas públicas estão lutando para sobreviver. Quando os jovens saem da escola, não vão para a natação ou o inglês. Eles ficam em casa sozinhos. Esses pais não sabem o que é Discord ou Twitter. Quando denunciados, esses conteúdos ficam no ar por mais de um mês. Tem que haver uma política de Estado ", conclui.

 

       O clima de intimidação e censura na educação brasileira

 

O psicólogo escolar José (nome fictício) foi chamado para uma reunião com a direção da instituição de ensino na qual trabalhava e representantes da Secretaria Municipal de Educação. Foi sumariamente demitido, sob alegação de má conduta profissional e inadequação de conteúdos às respectivas faixas etárias de alunos.

Dias antes, José, que é homossexual assumido, havia tido uma conversa com as crianças sobre bullying. Contou aos alunos do 4º e do 5º anos do ensino fundamental que, quando começou a trabalhar na escola, ouviu uma das crianças dirigir-se a um colega chamando-o de "veadinho de merda". Disse-lhes, no meio da conversa, que aquilo lhe machucou profundamente, não apenas pela grave agressão à criança, mas também pelo fato de ele ser homossexual.

A aula sobre problemas comportamentais cotidianos selou ali seu destino: a demissão da escola da rede pública de um pequeno município no interior de Minas Gerais, com pouco mais de 3.500 habitantes, ocorreria dias depois.

O caso de José reflete uma rotina de medo, censura e intimidação que professores e profissionais da educação têm vivenciado no Brasil, numa escala ascendente nos últimos anos. A pedido do profissional, seu nome e o município não serão revelados, pois ele aguarda a rescisão contratual com a escola e teme represálias. José, no entanto, está decidido a buscar uma reparação na Justiça.

"Não fui notificado sobre nada. Estava em casa e me chamaram para uma reunião no Departamento de Educação. Não especificaram nada. Disseram que tentariam arrumar outro emprego para mim, que gostavam muito do meu trabalho, que eu era participativo. Fizeram só elogios, o que foi totalmente contraditório. Pareceu que estavam cortando o mal pela raiz, só porque eu era gay", disse o psicólogo à DW Brasil. Após o episódio, ele optou por deixar a cidade, devido às "fofocas". Atualmente está empregado numa cidade do interior de São Paulo.

O profissional contou, ainda, que a mãe de um dos estudantes levou fotos do perfil dele no Instagram à prefeitura. Em uma delas, ele aparecia sem camisa. Havia, ainda, outra foto dele com as crianças (os menores de costas, sem serem identificadas).

"A cidade começou a dizer que eu fui demitido porque falava de sexo com alunos, que eu os obrigava a fazerem coisas. Foram vários relatos aleatórios, sendo que nem contatos diretos com os estudantes eu tinha, apenas nos momentos de intervenções. Eu nunca tinha sofrido homofobia em dimensão tão grande. Foi uma ferroada que marcou minha vida."

Casos como esse motivaram 80 instituições de educação a reeditar neste ano o Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas, "em resposta ao perverso fenômeno ultraconservador na educação, em especial aos ataques aos princípios constitucionais da liberdade de ensino e do pluralismo de concepções pedagógicas e às normas educacionais".

A primeira edição do manual foi publicada em 2018, com orientações aos profissionais, e explicações sobre as legislações vigentes e o direito constitucional das crianças a uma educação plural e não discriminatória. A versão atualizada contém detalhes das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, de 2020, que reforçam a inconstitucionalidade de teses defendidas pelo movimento Escola Sem Partido e de legislações que interditam os conteúdos de educação sexual e sexualidade nas escolas.

O objetivo da publicação é fornecer aos profissionais respostas pedagógicas, políticas e jurídicas possíveis em situações de conflito, propondo mediações e tentativas diálogo com a comunidade escolar e as famílias. As respostas judiciais, recomenda o manual, devem ser buscadas em casos de agressões abusivas e injustas.

•        A cortina de fumaça da chamada "ideologia de gênero"

Outra iniciativa, da Human Rights Wacth (HRW), reflete também a gravidade do momento. A organização fez um levantamento intitulado "Tenho medo, esse era o objetivo deles": esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil.

O relatório traz a análise de 217 projetos de lei aprovados no Brasil entre 2014 e 2020 cujo objetivo central é proibir a educação sexual nas escolas, com veto a materiais didáticos e abordagem dos temas em diferentes disciplinas. A justificativa sempre é a de que há "doutrinação" ou a chamada "ideologia de gênero". Como o relatório da HRW enfatiza, tal termo carece de definição precisa, mas "seus defensores convenientemente o empregam para atacar diversos temas, como educação sexual abrangente, casamento entre pessoas do mesmo sexo, feminismo, direitos reprodutivos e direitos das pessoas trans”.

De acordo com a pesquisa da HRW, 47 desses projetos de lei foram aprovados, e pelo menos 20 estão em vigor em diferentes municípios do país e um no Ceará como um todo. Outros 41 projetos estão em tramitação em legislativos locais, sendo 15 deles na Câmara dos Deputados. Os números estão subestimados, de acordo com a própria organização, pela dificuldade de acesso à base de dados de municípios.

O Supremo Tribunal  Federal (STF) já derrubou oito leis do tipo, julgadas pela corte em 2020. Já os tribunais inferiores barraram 17 iniciativas. Há ainda, na pauta do Supremo, mais quatro casos que tratam da "ideologia de gênero" aguardando julgamento.

"A Suprema Corte já emitiu excelentes sentenças em defesa do direito das crianças e adolescentes à educação sobre gênero e sexualidade, e contra a censura de professores que tentam abordar essa temática, mas há mais casos pendentes que devem ser resolvidos. As decisões sólidas e bem fundamentadas do STF têm auxiliado na consolidação do direito das crianças e adolescentes a esse conteúdo didático", afirma Cristian González Cabrera, pesquisador da divisão de Direitos LGBT da Human Rights Watch e coordenador do relatório.

No entanto, Cabrera sustenta que "o Conselho Nacional de Educação deveria elaborar uma resolução estabelecendo que a educação em sexualidade no Brasil precisa estar de acordo com os padrões internacionais sobre educação integral em sexualidade e as decisões do STF".

Para o pesquisador da HRW, os professores não devem hesitar em denunciar os casos de ameaças, censura e intimidação e devem procurar sindicatos. "Há também organizações no Brasil, como a Ação Educativa, que ajudam a orientar os professores sobre o que fazer quando são assediados pelos temas que abordam em sala de aula."

Cabrera pontua que a educação integral em sexualidade é um direito de todas as crianças e adolescentes e que o veto a tais temas é inconstitucional. Além dos aspectos legais, o pesquisador salienta as evidências de que a educação em sexualidade e gênero previne violências sexuais contra crianças, gravidez precoce e indesejada, por exemplo.

"Estudos indicam que esse tipo de educação também pode contribuir para resultados mais amplos, como prevenir e reduzir a violência e a discriminação de gênero, bem como melhor conhecimento de igualdade de gênero, autoeficácia ao lidar com situações de risco e confiança dos estudantes. Proibir informações sobre gênero e sexualidade nas escolas atrasará a melhoria da sociedade nesses problemas."

•        "Intimidação também envolve política, não apenas gênero"

Os relatos de intimidação velada contra professores, assédio moral e ameaças, inclusive físicas, cresceram sobretudo nos últimos dois anos, afirma Celso Napolitano, presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp). Napolitano afirma que a pandemia, com aulas remotas, agravou a situação, pois os profissionais ficaram muito vulneráveis e expostos.

"Muitos professores relataram intromissão nas aulas pelas famílias, por grupos de ensino, institutos, inclusive afetando a própria liberdade de cátedra. Esse grupo Escolas Abertas (que pressionou pelo retorno do ensino presencial no auge da pandemia) e o Escola sem Partido agiram de maneira muito intensa neste período da pandemia", relata Napolitano. A Fepesp é uma das instituições parceiras do manual contra a censura nas escolas.

Segundo o presidente da federação, que reúne 25 sindicatos representantes de professores que atuam em escolas privadas, os professores têm procurado ajuda, mas normalmente pedem que seus nomes e casos sigam anônimos, para evitar exposição na mídia. Nas escolas particulares, sustenta ele, é a política, e não temas de gênero, que mais provocam ruídos.

"Sobretudo agora, com essa polarização [em ano eleitoral], várias direções de escolas conversam com professores para evitarem alguns assuntos. Ou as famílias se manifestam diretamente contra qualquer ação do professor que consideram doutrinária ou politizada."

Nesse quesito, as disciplinas de história, filosofia, sociologia, por exemplo, seriam as mais prejudicadas. Um tema bastante interditado é o debate sobre a ditadura no Brasil, exemplifica. Na opinião do profissional, as consequências desta autocensura dos profissionais e deste clima de medo é extremamente prejudicial para a formação de crianças e adolescentes.

•        "Problema é estrutural e não se trata de movimento recente"

O cerco a professores, com demissões imotivadas e sumárias, intimidações, e interferência na liberdade de cátedra não são fenômenos recentes no Brasil, ainda que tenham ganhado visibilidade nos últimos anos, alerta Raquel Franzim, pedagoga e diretora de educação do Instituto Alana. A instituição também apoiou a publicação do manual contra a censura.

"Não é algo que nasceu com o Escola sem Partido. Por nossos estudos, há uma enorme subnotificação desses casos no Brasil. O que chega aos tribunais e à imprensa é muito menos do que de fato acontece", afirma a diretora. Ela alerta que a situação é mais delicada na educação básica, uma vez que no ensino superior há regulamentações mais claras que asseguram a liberdade de cátedra, o contraditório e o conhecimento científico.

"A escola trata, ou deveria tratar, as questões sociais de maneira distanciada do senso comum. O ensino não é só protetivo, ele é preventivo, para que não sejam formadas gerações que reproduzem violência de gênero, sexual e racial."

A diretora do Instituto Alana diz que o manual contra a censura foi uma iniciativa importante, pois as mudanças precisam acontecer nas comunidades escolares, com diálogo. "Essa questão não vai ser resolvida numa canetada. A autonomia pedagógica das escolas não pode ser absoluta e não ocorre sem diálogo com as comunidades escolares. A escola é o ambiente para se tratar, de maneira bastante respeitosa, as divergências", defende.

Segundo ela, as transformações são graduais e hoje, por exemplo, já houve bastante avanço em relação ao combate ao racismo nas escolas brasileiras. Apesar de reconhecer que a ambiência política e institucional no Brasil é bastante desfavorável para esse debate, a pedagoga insiste que é preciso admitir que se trata de um problema estrutural da educação brasileira, que expõe as crianças e jovens a ainda mais violências.

"Quem perde nessa equação sempre são crianças e adolescentes. Precisamos sair, neste momento, de debater o assunto como se fosse vinculado à agenda de costumes e à agenda moral. Não é. É um assunto estruturante. As crianças estão aprendendo pior sobre vários assuntos, sem tratamento adequado, científico e profissional dentro das escolas. Tal cerceamento prejudica a aprendizagem", conclui.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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