Jean Marc Von Der
Weid: As armadilhas para Lula
O
governo terá que ser muito incisivo nas suas iniciativas para não dar espaço
para as ofensivas da direita.
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Como sair da armadilha?
Quando
comecei a escrever esta análise prospectiva do governo Lula não pensei muito no
título que adotei. Logo alguns críticos destes escritos apontaram que a palavra
armadilha dá a entender uma ação deliberada de alguém ou alguéns. Devo
esclarecer que a armadilha, arapuca, arataca, mundéu ou qualquer outro sinônimo
não implica, no meu ver, numa conspiração de quem quer que seja. Os diferentes
aspectos deste enredo têm origens estruturais ou conjunturais e são parte de
uma crise sistêmica do capitalismo internacional e de sua expressão nativa.
Esta crise se manifesta em vários aspectos, econômicos, ambientais, sociais,
ideológicos e políticos, que eu procurei abordar nos artigos que precedem o
atual.
O
que estes artigos apontam é que estes aspectos da crise estão se combinando
para compor o emaranhado de condicionalidades que já estão travando o governo
Lula e ameaçando as esperanças surgidas com a derrota do energúmeno nas
eleições. Vamos agora ver os cenários possíveis e as melhores possibilidades de
se
Mas
antes de entrar a fundo na matéria anunciada precisamos lembrar o que pode
acontecer no caso de não se conseguir romper a armadilha. Se o governo Lula não
der conta de promover um desenvolvimento significativo da economia com caráter
inclusivo, não vai haver Bolsa Família, Minha Casa/Minha Vida, Farmácia Popular
ou qualquer outro, que compense o desemprego, subemprego, baixa renda e
carestia que devem acompanhar um marasmo econômico prolongado.
Sem
aumento na renda, nos índices de emprego, no controle da inflação, sobretudo de
alimentos e no acesso a bens e serviços básicos, não só vai ser difícil cativar
o voto capturado por Jair Bolsonaro entre os antilulistas ou antipetistas, como
vai ser difícil manter os votos antibolsonaristas do centro e da direita
democrática. Esta situação nos levaria para uma eleição em 2026 com chances de
uma candidatura da direita, provavelmente sem Jair Bolsonaro, mas viável
eleitoralmente.
Uma
situação de descontrole econômico poderia ser ainda pior, por gerar inflação,
com a consequente perda de renda. Os programas sociais estão subjudice neste
congresso de direita e podem ser cortados se interessar o jogo político
antigoverno. Uma perda de sustentação popular de Lula e de seu governo pode nos
conduzir de volta à situação vivida por Dilma Rousseff, com índices de
aprovação caindo para menos de 10%. Esta situação aponta para um repeteco do
golpe de 2016. Mesmo com Lula sendo de outro estofo político que Dilma
Rousseff, a possibilidade é bem real, dada a composição do Congresso.
Em
outras palavras, romper a armadilha é vital para o futuro da democracia e da
república. Se perdermos as apostas deste quatriênio caminharemos para um
desastre renovado e prolongado que poderá arruinar o país de forma permanente.
Isto
dito, vamos analisar os caminhos possíveis para desfazer as amarras que travam
o governo Lula.
A
primeira questão a resolver é a da definição dos objetivos que o governo deve
adotar para garantir seu sucesso. Até agora, quer na campanha eleitoral quer
nos primeiros 100 dias, não temos um plano claro de governo. As promessas foram
muitas e, como sempre, a maior parte não poderá ser realizada. Estamos
assistindo a uma sucessão de iniciativas que aparecem desconexas e sem eixos
prioritários. O governo reclama da falta de recursos e se bate contra o teto de
gastos, indicando que pretende gastar mais do que arrecada.
No
entanto, o modelo proposto por Fernando Haddad como arcabouço fiscal não
garante esta disponibilidade de verbas para investimentos governamentais. Mesmo
este moderadíssimo projeto desagradou o mercado e a mídia convencional e
arrisca de ser trucidado no Congresso. Por outro lado, a ala esquerda do
governo ataca a proposta como sendo uma manutenção do projeto neoliberal de
Estado mínimo. É verdade, mas o que a esquerda não parece compreender é que a
correlação de forças, no Congresso e nas classes dominantes, não vai permitir
nada mais radical, por mais que esta radicalidade seja uma necessidade.
Como
dar a volta neste nó? A esquerda fala em uma mobilização permanente da
sociedade civil organizada para pressionar o Congresso em apoio ao governo. No
entanto, o governo não explicitou como pretende usar as verbas pelas quais está
se batendo. Sem um programa muito claro, enxuto e muito colado nas necessidades
básicas da população fica difícil fazer esta “mobilização permanente”. A
capacidade de convocatória da ala esquerda ficou bastante diminuída nos últimos
10 anos e hoje ela é muito dependente dos movimentos identitários, cuja agenda
não é, prioritariamente, econômica.
Não
estou dizendo que as reivindicações de negros, mulheres, LGBTQIA+ e indígenas
não sejam importantes, apenas que a luta por esses direitos não têm o mesmo
foco da luta por um programa de desenvolvimento sustentável e inclusivo. É
preciso lembrar que há uma enorme distância entre as massas que a esquerda
conseguiu mobilizar contra o bolsonarismo e seus atentados contra a democracia,
que chegou a 700 mil no auge de 2021, e a força de mobilização que Lula mostrou
em sua campanha eleitoral, quando somou dez vezes este número.
Podemos
supor que Lula adote uma postura de mobilização permanente, tal como fez Jair
Bolsonaro ao longo do seu governo, mas há um risco alto nesta aposta. Mesmo com
uma proposta programática clara e impactante, que ainda não apareceu, Lula
teria que adotar uma postura de combate para a qual ele não tem sustentação no
Congresso nem na mídia. Jair Bolsonaro não tinha a mídia, mas tinha o Congresso
a partir do momento em que se entregou ao Centrão. Com isso, ele neutralizou
qualquer ameaça de impeachment e Lula não vai ter esta salvaguarda com Artur
Lira na presidência da Câmara.
Por
outro lado, a direita mostrou uma capacidade de convocatória que, embora
retraída neste momento, está longe de ser desprezível. E o potencial de
enfrentamentos entre manifestantes pró e contra o governo nas manifestações de
rua é evidente. Violência política é algo que a direita está pronta para usar,
com ou sem levar suas bases para as ruas.
Governar
vai ser um exercício de malabarismos em busca de conquistar votos no Congresso
para passar os projetos básicos de interesse do governo. O primeiro deles vai
ser o “arcabouço fiscal”, mas o mais importante será a reforma tributária. Sem
uma radicalidade maior neste projeto, eliminando os mais de 600 bilhões de
reais por ano em isenções fiscais, adotando uma forte redução nos impostos
indiretos e uma progressiva taxação sobre os mais ricos não vai haver dinheiro
para os programas de promoção do desenvolvimento ou para os programas sociais.
Esta
é uma luta em que vai ser fundamental mostrar para as grandes massas que o
sistema atual é injusto e que beneficia quem tem mais dinheiro. E esta luta vai
precisar de estar ancorada na apresentação de um plano concreto sobre o que o
governo pretende fazer com o dinheiro arrecadado. Acrescente-se a isso que esta
reforma, mesmo que aprovada ainda este ano, não terá impacto na arrecadação antes
de 2025 ou 2026 e pode não dar tempo para o governo usar os recursos para os
seus programas.
Mobilizar
as massas para pressionar o Congresso vai ser crucial, até porque não existem
outros meios de ganhar o apoio nestas casas recheadas de direitistas e
bolsonaristas. O governo parece confiar nas suas concessões aos parlamentares e
partidos da direita para conquistar os votos necessários, mas o jogo é para lá
de difícil, até porque uma reforma tributária progressiva que taxe mais os mais
ricos afeta as fortunas dos próprios congressistas. Seria o caso de isentá-los
todos da nova taxação? Se for esse o preço me parece que é o caso de pagá-lo,
por mais que esta medida seja imoral e impopular.
Outra
pauta importante para o governo Lula é a ambiental. É verdade que ela não tem
apelo eleitoral amplo, mas a urgência e a emergência dos temas ambientais
cobram medidas radicais, sobretudo no controle do desmatamento e das queimadas,
com foco na Amazônia e no Cerrado. É uma pauta que pode ter apoio na mídia
convencional e em parte da classe dominante, mas que será ferozmente
antagonizada pelo agronegócio, e este tem influencia pesada nas duas casas do
Congresso.
É
uma pauta com respaldo internacional, inclusive financeiro, mas não pode ser
tratada com luvas de pelica porque o tempo corre e o processo de destruição
continua em curso, depois do show midiático da intervenção em terras Yanomami.
Os países europeus acabam de aprovar uma legislação vetando importações de
produtos oriundos de áreas desmatadas e isto vai favorecer uma campanha ampla
no país.
As
medidas necessárias para pôr em cheque o desmatamento e as queimadas não
necessitam de apoio no Congresso, a não ser que a bancada ruralista aposte em
mudar a legislação para algo ainda mais favorável aos seus interesses. Mas não
estamos assistindo a um esforço intensificado de controle nos biomas mais
afetados e os índices de destruição neste governo continuam nos mesmos níveis
dos tempos de Jair Bolsonaro.
Por
que será? Estará havendo alguma negociação com os ruralistas? Lula vai combater
as medidas de controle de importações dos europeus? Se o fizer vai perder todo
o suporte internacional que adquiriu com suas declarações radicais em
Sharm-el-Sheik. E como ele já não está com esta bola toda depois de trocar os
pés pelas mãos, metendo-se no cipoal da guerra na Ucrânia, ele arrisca de ficar
isolado tão depressa quanto foi adulado logo após as eleições.
Para
completar estas especulações sobre o que deve ser essencial nas iniciativas do
governo, creio que é preciso apontar para a necessidade de foco, e de um foco
assumido pelo governo. O programa que estou reclamando tem que ser apresentado
e muita coisa importante vai ficar fora das prioridades. Isto vai ser refletir
na agenda identitária e em outras importantes agendas como a reforma agrária.
O
governo terá que ser muito incisivo nas suas iniciativas para não dar espaço
para as ofensivas da direita, que vai tentar polarizar politicamente com sua
própria agenda, em particular a de costumes que se choca diretamente com a agenda
identitária. No quadro atual da correlação de forças não podemos pretender
avanços nestas pautas e já vai ser um enorme ganho impedir retrocessos. O
importante é não deixar que a ofensiva da direita ganhe corpo e, para isso, as
atenções terão que ser voltadas para as propostas prioritárias do governo.
Não
cabe aqui detalhar o que eu acho que deveria ser o programa de desenvolvimento
do governo. O eixo deveria ser o investimento no atendimento das necessidades
básicas da população, com uma orientação clara para formas sustentáveis de
produção. Em particular, me parece que o tema da alimentação deveria adquirir
uma consistência maior, ampliando do lado “bolsas” para o lado produção e
garantia de preços acessíveis para os mais pobres. Já tratei deste assunto em
outros artigos e não vou repetir os argumentos e propostas.
Para
completar, fica uma recomendação para a militância da esquerda e dos movimentos
da sociedade civil. Temos que romper a bolha em que nos encerramos há tempos e
buscar discutir as propostas programáticas prioritárias com a população. Algo
assim foi feito durante o segundo turno, com grupos de militantes se reunindo
para ir às ruas conversar com o povo. Façamos isso de forma orgânica e
permanente. Não vai ter efeito imediato no jogo político, mas a longo prazo não
poderemos escapar de cumprir este papel que sempre foi o nosso na sociedade.
Fonte:
A Terra é Redonda
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