Empresa de Nova
York tem ligação com contrabando de ouro ilegal da Amazônia
Aeroporto
de Manaus, 24 de janeiro de 2020. Já passava das 21h de sexta-feira quando dois
norte-americanos e um brasileiro foram abordados por agentes da Polícia Federal
(PF). Com fotos dos estrangeiros em mãos, os policiais estavam interessados na
mala rosa com a qual eles pretendiam embarcar para Nova York, carregada com 35
kg de ouro amazônico que hoje valem R$ 10 milhões.
A
valiosa carga, que representa um terço de todo ouro com suspeitas de
ilegalidade apreendido pela PF no Brasil naquele ano, estava em posse dos
nova-iorquinos Frank Giannuzzi e Steven Bellino e do goiano Brubeyk Nascimento.
As barras seguem até hoje no centro de uma disputa judicial entre a União e a
Doromet Inc, a empresa dos dois estrangeiros. Mas essa remessa interrompida
pode ser apenas a ponta de um esquema internacional de comércio de ouro ilegal da Amazônia,
cujo pontapé inicial aconteceu no primeiro ano do governo Bolsonaro, que
prometia abrir terras
indígenas para
a exploração mineral.
Durante
a abordagem da PF, Nascimento, Bellino e Giannuzzi apresentaram documentos
informando que a carga seria de reaproveitamento de joias derretidas. A versão
caiu por terra logo na primeira análise do ouro, feita ainda no aeroporto, no
escritório da Receita Federal, com uma espécie de pistola que faz um raio-x da
composição do material.
O
metal tem origem de garimpo ilegal, como foi posteriormente confirmado por
outras duas perícias feitas com equipamentos de maior precisão e que compararam
o material apreendido com amostras de diversas regiões do país, reunidas em
um banco de dados da PF. A análise
detectou impurezas “frequentemente encontradas em ouro de garimpo e nunca
encontradas em material reciclado”.
Mais
especificamente, os laudos da PF dizem que o ouro veio da Província Aurífera do
Tapajós, no sudoeste do Pará, onde estão três das terras indígenas mais
afetadas pela mineração ilegal no país: Munduruku, Sawré-Muybu (Pimental) e
Sai-Cinza, segundo estudo do
Mapbiomas.
A região também abriga os municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso
– que entre 2019 e 2020 concentraram 86% das
ocorrências de esquentamento de ouro (quando o minério extraído
ilegalmente é vendido com uma falsa declaração de origem).
“A
Polícia Federal já tinha informação prévia de inteligência indicando que o ouro
poderia ter origem irregular”, explicou à Repórter Brasil o perito criminal Ricardo Lívio Marques, que
participou das perícias. “Por isso, nós os abordamos antes do embarque”.
Bellino,
65 anos, e Giannuzzi, 43, eram amigos há mais de uma década. Foram apresentados
a Nascimento no final de 2019 pela esposa de Giannuzzi, que é brasileira. Foi
desse encontro entre os norte-americanos, forjados no mercado financeiro, e o
brasileiro, um goiano formado em engenharia mecânica pela Unesp, que surgiu a
ideia de importar ouro da
América do Sul para os Estados Unidos e para a Turquia.
Pouco
depois de se conhecerem, os norte-americanos mudaram o nome de uma antiga
empresa de consultoria financeira e criaram a Doromet, com a promessa de “proporcionar
aos seus fornecedores uma capacidade de comércio de metais preciosos com
serviço completo”. A companhia está localizada no coração de Manhattan, a
poucas quadras da Times Square e do Empire State Building, símbolos da cidade
de Nova York.
A
6,8 mil quilômetros dali, em uma torre do London Hotel & Offices, no centro
de Anápolis, em Goiás, o negócio de Nascimento começaria a deslanchar depois do
encontro com os dois importadores estrangeiros. A Bamc Laboratório de Análises de Solos e Minérios Ltda, criada em 2018
como um “comércio atacadista de produtos da extração mineral”,
aumentou em 65 vezes a aquisição anual do metal
entre 2019 e 2022, passando de 35 kg para 2.279 kg.
Nascimento,
um jovem de 36 anos apreciador de carros antigos, passou então a movimentar
cifras milionárias. Somente pela primeira remessa o valor acertado com os
americanos foi de R$ 6,6 milhões. A carga acabou apreendida em Manaus, mas este
infortúnio foi rapidamente superado. Com apenas dois anos de parceria, o
sucesso nos negócios foi tamanho que o goiano celebrou
degustando uma cachaça de R$ 67 mil.
“Embora
a remessa inicial de ouro tenha sido interrompida como resultado da apreensão
do governo brasileiro, todas as remessas de ouro subsequentes foram recebidas
do Brasil e processadas nos Estados Unidos, além de em Istambul, Turquia”.
A
informação é dos advogados de Bellino, que em 2021 entrou com uma ação na
Justiça de Nova York contra o antigo sócio e o brasileiro, alegando que havia
investido US$ 750 mil na empresa e não estava recebendo a sua participação no
“negócio lucrativo” que a Doromet havia se tornado.
Graças
a esse processo judicial, as equipes da Repórter Brasil e da NBC revelam o trajeto de parte do ouro
retirado ilegalmente da Amazônia, informação raramente disponível em um setor
pouco transparente e cujas transações ainda são
registradas no papel –
foi apenas na última quinta-feira (30), que o governo publicou uma instrução normativa instituindo a
nota fiscal eletrônica no comércio de ouro, a vigorar a partir de julho.
Nos
Estados Unidos, o metal brasileiro seria refinado a poucas quadras da sede da
Doromet, na refinaria Gold Tower, localizada no Distrito do Diamante de Nova York, região com várias
empresas de comércio de joias. Segundo documentos apresentados pela Doromet na
Justiça brasileira, no mesmo dia em que foi abordado por policiais no aeroporto
de Manaus, Giannuzzi teria assinado com a refinaria um termo de compra de 1,6
milhão de dólares pelas barras que estavam na mala rosa.
A Repórter Brasil entrou em contato
com o advogado da Gold Tower Refinery, Doron Leiby, que disse que a empresa
“jamais assinou qualquer acordo ou termo para a compra de ouro brasileiro”, e
chamou o documento apresentado pela Doromet de “forjado” e “falso”.
Além
da Gold Tower, o ouro da Doromet também tinha como destino a Istanbul Gold
Refinery, em Istambul, na Turquia. Nos últimos três anos, ela foi citada na Bolsa de
Valores dos EUA como
fornecedora de ouro de centenas de empresas, incluindo gigantes de
tecnologia como
Apple, Tesla, Alphabet (Google) e Microsoft.
A
Doromet também faz o refinamento do ouro – processo que deixa o minério com 99%
de pureza para ser comercializado no mercado financeiro e nos setores
joalheiros e tecnológicos – na Suíça e em Dubai, segundo o site da empresa.
A Repórter Brasil mandou um email
para a Istanbul Gold Refinery, mas não obteve retorno.
Procurado
pela NBC, o advogado John Maggio, que defende Bellino nos Estados Unidos,
afirmou que atua apenas na ação judicial contra Giannuzzi, em Nova York. A
defesa de Giannuzzi nos Estados Unidos não quis comentar a reportagem.
Em
nota, a Microsoft respondeu que não vai comentar sobre o tema. Sem citar a
empresa turca, a Apple afirmou que “quando uma refinaria não segue os seus
estritos padrões, ela é removida da lista de fornecedores. Tesla e Alphabet não
responderam até a publicação deste texto.
·
200 mil alianças de casamento por mês
No
mesmo mês em que conheceu Bellino e Giannuzzi em Nova York, em novembro de
2019, Nascimento assinou um contrato no mínimo suspeito com Werner Rydl, um
controverso bilionário austríaco naturalizado brasileiro que se comprometeu a
fornecer mensalmente à empresa do goiano até 700 kg de ouro de reaproveitamento
de jóias. A quantia equivale a mais de 200 mil alianças de casamento derretidas
por mês – nem mesmo reunindo todos os brasileiros
divorciados em 2022 seria
o suficiente para fornecer tanta matéria-prima.
Para
tentar comprovar a legitimidade da carga apreendida no aeroporto de Manaus, a
defesa de Nascimento apresentou à Justiça documentos de Rydl, incluindo uma
declaração de imposto de renda que cita que o austríaco seria dono de uma
fortuna de R$ 26 bilhões em 2018. Em entrevista à Repórter Brasil, o austríaco
disse ainda possuir uma fatia de 185 mil km² (quase o tamanho do estado do
Paraná) de áreas submarinas em alto-mar, ao norte do território brasileiro –
algo questionado por especialistas, que explicaram que áreas submarinas são
consideradas patrimônio da humanidade.
Se
há dúvidas com relação a suas polêmicas declarações, não há hesitação quanto ao
seu envolvimento irregular com comércio de ouro. Em 2018, Rydl se complicou ao
tentar embarcar com ouro suspeito para a Turquia, quando teve uma carga de 3,85
kg apreendida pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos.
Três
anos antes, ele havia sido preso no aeroporto
de Cuiabá com 644 gramas de ouro sem autorização de transporte, caso que o
levaria à condenação a dois anos de prisão em regime aberto. Ele também figura
como investigado em um inquérito aberto em 2018 pela PF em Mossoró (RN), que
apura a exportação de 120 toneladas de ouro, em um caso semelhante ao da
Doromet.
Os
problemas judiciais de Rydl se estendem ao seu país de origem, onde ele cumpriu
pena após ser extraditado
pelo governo brasileiro, em 2009, por ter participado de uma organização
criminosa na Áustria que cometeu delitos que somariam 150 milhões de euros.
À Repórter Brasil, Werner Rydl confirmou
que vendeu as barras de ouro pessoalmente a Nascimento e disse que prestou
depoimento sobre o caso à PF em dezembro do ano passado. O empresário afirmou
que comprou todo o ouro do seu patrimônio em joias no Brasil entre 1991 e 2010,
e que faz vendas pontuais para financiar seus “projetos sociais no Brasil e na
Venezuela”.
Sobre
a pureza das barras apreendidas não serem compatíveis com joias derretidas,
como apontado na perícia da PF, Rydl afirmou: “Bobagem, joias existem em
qualquer pureza”.
O
austríaco respondeu ainda que tem reservas de ouro no exterior e que vende
diariamente cerca de 70 kg do minério para refinarias em Dubai e Istambul. Ele
também diz comercializar ouro com a Istanbul Gold Refinery, mas o bilionário
afirma que as vendas não têm ligação com a empresa dos nova-iorquinos.
·
Garimpo em floresta praticamente intacta
O
austríaco não é o único fornecedor suspeito de Nascimento. Entre 2019 e 2022, a
Bamc comprou ouro de 13 fornecedores que detêm lavras garimpeiras no Pará e em
Tocantins, segundo dados da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração
Mineral).
Tais
aquisições são por si só irregulares, de acordo com a Agência Nacional de
Mineração (ANM), porque a legislação brasileira determina que apenas as
Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) estão autorizadas pelo
Banco Central a realizar a primeira compra de ouro de garimpos.
“A
empresa [Bamc] não é instituição integrante do Sistema Financeiro Nacional,
logo, não há amparo legal para a aquisição de ouro ativo financeiro proveniente
de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG)”, afirmou a agência em e-mail enviado
à Repórter Brasil.
Mas
os problemas da Bamc não param por aí. A lavra garimpeira que mais forneceu
para a empresa do goiano em 2022 apresenta indícios de lavagem do minério. Ela
está localizada em Cumaru do Norte (PA) e faz fronteira com a Terra Indígena
Kayapó, território que foi recordista de perda de vegetação por garimpo em
2020, segundo dados do Mapbiomas.
Só
em 2022, a PLG registrada em nome de Pedro Lima dos Santos, servidor público no
município paraense de Redenção, informou à ANM ter produzido mais de 2
toneladas do metal, se tornando o garimpo mais produtivo do país naquele ano.
Para a Bamc, a lavra vendeu 916 quilos de ouro nos últimos dois anos.
O
restante da produção, um pouco mais de uma tonelada, foi vendido para a Fênix
DTVM, que disse que suspendeu temporariamente a compra de ouro dessa PLG após
contato da Repórter Brasil.
Para
extrair ouro nesta escala, seria necessário abrir grandes feridas na mata. Mas
não é isso que vemos nas imagens de satélite, que mostram uma área de floresta
praticamente intacta. Os primeiros sinais de atividade surgiram apenas em
setembro do ano passado – àquela altura, a lavra já tinha informado à ANM a
exploração de quase 80% da sua produção.
“Não
há nas imagens indícios de um garimpo que justifique uma lavra de mais de 2
toneladas de ouro. Mesmo que a exploração fosse subterrânea, teríamos que ver
nessa área uma base de operações”, avalia Edson Farias Mello, professor do
Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que
analisou as imagens de satélite a pedido da Repórter Brasil.
Ainda
que houvesse sinais de exploração, Mello afirma que a área autorizada para
extração, de 8,69 hectares (um quinto da área total da PLG), é pequena demais
para dar conta da quantidade de ouro que dos Santos está declarando. Para
Mello, a existência de um garimpo ilegal dentro da Terra Kayapó a poucos
quilômetros dali – este sim de grande porte – levanta ainda mais suspeitas
sobre a origem do ouro do garimpo de dos Santos.
“O
volume que eles declaram é semelhante ao garimpo ilegal que vemos dentro da
terra indígena, a poucos quilômetros dessa PLG. Essa anormalidade entre as
dimensões da área lavrada e o distanciamento da rede drenagem, onde ao redor
ocorrem outras extrações de ouro, sugere a possibilidade de esquentamento de
minério e precisa de uma fiscalização in loco das autoridades”, alerta o
professor.
Procurado,
o dono da PLG, Pedro Lima dos Santos não respondeu às mensagens da reportagem.
O
advogado de Nascimento, Robspierre Lôbo de Carvalho, afirmou que a origem do
ouro é legal e que as perícias da PF são “totalmente suspeitas e serão
impugnadas”.
·
A disputa pelo ouro
A
indicação da origem ilegal dos 35 kg de ouro apreendidos em Manaus na primeira
perícia da PF não demoveu os empresários norte-americanos de brigar na Justiça
brasileira pelo direito de levar a carga para Nova York. E tampouco convenceu
alguns magistrados da necessidade de mantê-lo no Brasil, já que dois deles
votaram pela devolução do minério aos estrangeiros. Ambos têm afinidade com o
ex-presidente Bolsonaro.
A
principal decisão favorável à Doromet veio da 3ª Turma do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (TRF-1), que analisou o recurso da empresa após derrota na
primeira instância.
O
MPF defendia que o ouro ficasse sob a guarda da União, argumentando que seria
“extremamente difícil ou até mesmo inviável” recuperá-lo uma vez que fosse
levado para o exterior. O envolvimento de Rydl com Nascimento também foi
apontado pela Procuradoria como “mais um indício da origem ilícita do ouro”.
Mesmo
assim, o relator do processo, o desembargador Ney Bello, aceitou a tese da
Doromet de que o primeiro laudo da PF era “precário” e de que “a propriedade do
minério apreendido, bem como sua origem lícita, estão documentalmente provadas”.
Bello chegou a ser cotado
por Bolsonaro para assumir uma vaga no Superior Tribunal de Justiça em 2022. No
mesmo ano, ele mandou soltar o ex-ministro
da Educação de Bolsonaro no caso da influência dos pastores
evangélicos na pasta.
Seu
voto foi acompanhado pela presidente da turma, a desembargadora Maria do Carmo
Cardoso, que, segundo a Folha de S.Paulo, é amiga do senador Flávio Bolsonaro
(PL-RJ). Em dezembro do ano passado, uma postagem a favor dos atos golpistas
dos bolsonaristas levou o Conselho Nacional de
Justiça a
bloquear as contas da magistrada no Twitter e Instagram.
Procurado,
o TRF-1 afirmou que a decisão referiu-se apenas à guarda do ouro pela Polícia
Federal, e que “questões acerca de posse, propriedade e origem não dizem
respeito ao juízo criminal”. Bello e Cardoso foram procurados por meio do
tribunal e não se manifestaram.
Com
os votos de Cardoso e Bello, o caminho estaria livre para o metal amazônico
seguir para os Estados Unidos, menos de um ano depois da apreensão, não fosse
um auto de apreensão expedido em abril de 2021 pela Agência Nacional de
Mineração. Ou seja, apesar de os desembargadores terem autorizado a devolução
da carga na esfera judicial, a Doromet se via mais uma vez impedida – desta vez
por uma decisão na esfera administrativa.
O
advogado Guilherme Peixoto de Almeida, que defende a Doromet no Brasil, afirmou
que a apreensão da ANM é ilegal pois não foi precedida pelo devido processo
legal.
Apesar
de o minério ainda estar em disputa, a ANM informou à Repórter Brasil que tem amparo legal para levar o
ouro a leilão mesmo antes do fim das disputas judiciais, e que deve fazê-lo até
o final deste ano. Enquanto a celeuma jurídica se arrasta, as barras seguem bem
guardadas em um dos cofres da Caixa Econômica Federal, em Manaus. Por motivos
de segurança, a ANM pediu que a localização da agência não fosse divulgada.
No
aeroporto de Manaus, naquela sexta-feira fatídica, Giannuzzi e Bellino chegaram
a prestar depoimento à PF sobre os 35 kg apreendidos. Como não foram indiciados,
puderam retornar aos Estados Unidos. Já Nascimento foi preso e pagou 100
salários mínimos (R$ 103,9 mil) para sair da cadeia três dias depois. A
movimentação de sua empresa indica que ele pode ter descumprido a promessa de
não voltar a se envolver com o comércio de ouro, assumida perante a Justiça
para que houvesse o relaxamento da prisão preventiva.
Fonte:
Por Por Fernanda Wenzel e Hyury Potter, colaboração para a Repórter Brasil; e
Rich Schapiro e Andrew Lehren, da NBC News
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