Diogo Comitre: A
quem interessa o Novo Ensino Médio?
No
dia 05 de abril o governo federal publicou uma portaria suspendendo a
implementação do Novo Ensino Médio, por 60 dias. A portaria que publicou a
decisão determinou que o tempo de suspensão deverá ser utilizado para avaliação
e reestruturação da política voltada para o Ensino Médio. Desde então, o tema ganhou repercussão na
mídia e despertou a crítica de personalidades políticas e artísticas, como
Michel Temer, que afirmou que a suspensão é um “equívoco”. Já o apresentador de
TV, Luciano Huck, declarou que a implementação do Novo Ensino Médio “deveria
estar acima de diferenças ideológicas”, criticando a portaria do governo
federal. Diante de posicionamentos como os citados acima, convém perguntarmos:
para quem o Novo Ensino Médio interessa?
Certamente,
para os estudantes da rede pública de ensino, o modelo não interessa. Ao
contrário, representa uma grave ameaça para a formação destes jovens,
colocando-os em uma situação de desigualdade em relação aos estudantes da rede
privada. Para entendermos o motivo da afirmação feita acima, refletiremos sobre
alguns aspectos do Novo Ensino Médio. A lei 13.415, de 2017, que instituiu o
Novo Ensino Médio, estabelece que o currículo do Ensino Médio será composto
pela Base Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos (aprofundamento
curricular), com base em cinco áreas: Linguagens e suas Tecnologias; Matemática
e suas Tecnologias; Ciências da natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas; Formação Técnica e Profissional. Segundo a lei, a
organização das áreas citadas deve ser feita de acordo com critérios
estabelecidos em cada sistema de ensino.
Uma
primeira leitura do texto legal pode criar a falsa ideia de que o Novo Ensino
Médio amplia as possibilidades de escolha dos estudantes, permitindo que cada
jovem aprofunde seus estudos nas áreas de conhecimento de seu interesse. Porém,
o primeiro aspecto importante que deve ser observado sobre a lei, é que ela não
obriga as redes de Ensino a ofertarem itinerários formativos que contemplem
todas as áreas de conhecimento e tão pouco obriga os sistemas de Ensino a
garantirem a cada estudante que ele poderá cursar o itinerário que escolher.
Com isso, as limitações físicas, materiais e de força de trabalho das redes de
ensino públicas têm levado a maioria das escolas a ofertarem poucos itinerários
formativos, limitando as possibilidades de escolha dos estudantes da rede
pública. Segundo levantamento realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores no
Ensino Público do Mato Grosso (Sintep-MT), nas 264 escolas-piloto, que
começaram a implementar o Novo Ensino Médio, em 2020, cada escola oferta, em
média, apenas dois itinerários formativos (currículo de aprofundamento) para seus
estudantes. Portanto, na prática, ao invés do Novo Ensino Médio ampliar as
possibilidades de escolha dos estudantes da rede pública, ele, na verdade,
limitou as possibilidades de escolha. Isso porque, os estudantes são obrigados
a optarem por um dos dois itinerários formativos ofertados por sua escola,
mesmo que não tenham nenhum interesse ou aptidão por estes currículos de
aprofundamento.
Desse
modo, até mesmo a ampliação da carga horária do Ensino Médio estabelecida pela
Lei 13.415, de 2017, pode ser questionada em sua aplicação prática. Embora a
lei estabeleça uma ampliação de 2.400 horas para 3.000 horas na carga horária
do Ensino Médio, ela limita a carga horária destinada a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) a 1.800 horas, o que significa uma redução de 600 horas em
relação as disciplinas convencionais, que constituem a BNCC. Com isso, a carga
horária destinada a BNCC diminuiu 25 %, devendo ser complementada pelos
itinerários formativos, entendidos como currículos de aprofundamento, que devem
totalizar 1.200 horas, das 3.000 horas da carga horária total do Novo Ensino
Médio. Oras, se cada escola pública consegue ofertar, em média, apenas dois
itinerários formativos, isso significa que os estudantes tiveram uma redução na
carga horária destinada a BNCC e não possuem a escolha de complementar estas
horas com currículos de aprofundamento em todas as áreas do conhecimento. Ou
seja, na prática, os estudantes da rede pública tiveram uma redução no número
de aulas de algumas disciplinas que não foram contempladas pelos itinerários
formativos ofertados por suas escolas.
Além
disso, a falta de professores e de estrutura física impedem parte das escolas
públicas de garantirem que cada aluno irá cursar o itinerário formativo que
escolheu, dentre os que são ofertados por sua escola. Com isso, o que deveria
ser uma opção feita pelo estudante, na prática se tornou uma imposição das
escolas, já que estas não possuem as condições mínimas para garantirem que a
escolha do estudante seja respeitada. Em entrevista ao Sintep-MT, Geovana Rosa
Affeldt, diretora da escola estadual Tuiuti, de Gravataí – RS, afirmou que:
“Essa questão dos alunos poderem optar por áreas não têm como acontecer aqui,
porque nós não temos professor, não temos espaço para isso”. A dificuldade
relatada pela diretora, Geovana Rosa Affeldt, parece não ser exclusividade da
rede de ensino pública do Rio Grande do Sul. Segundo Janet Baez, estudante da
escola estadual Adenilson Franco, em Franco da Rocha – SP, ela também não pôde
cursar o aprofundamento curricular na área que desejava, apesar de sua escola
ofertar 4 itinerários formativos diferentes. A estudante declarou para o Jornal
Folha de São Paulo, que:
“Disseram
que não tinham como atender a vontade de todo mundo, que tinham que organizar
as turmas pra ficarem todas com o mesmo tamanho. O pior é que, além de não ter
estudado a área que eu queria, ainda diminuíram o tempo das aulas normais para
ter os itinerários. Eu quase não estudei matemática, química e física”.
Segundo
a mesma reportagem, a estudante, que cursa o 3º ano do Ensino Médio ainda
relatou que tem apenas uma aula por semana de matemática e uma de português.
Com isso, podemos perceber que a promessa de ampliação da carga horária do
Ensino Médio, na prática, significou a redução na carga horária destinada as
disciplinas da BNCC para milhares de estudantes das redes públicas, em todo o
país. Ao mesmo tempo, a expectativa de cursar uma grade curricular com maior
aderência aos interesses dos estudantes também não se confirmou, já que a
grande maioria das escolas públicas conseguem ofertar poucos itinerários
formativos e não são capazes de assegurar que cada estudante curse o currículo
de aprofundamento que deseja.
Por
outro lado, os problemas decorrentes da implementação do Novo Ensino Médio nas
redes públicas de ensino parecem não ser compartilhados pelos sistemas de
ensino particulares. Isso porque, em geral, a rede privada possuí uma
infraestrutura mais adequada para a oferta de diversos itinerários formativos,
laboratórios equipados, não sofrendo com a falta de espaço físico, de recursos
materiais e de mão-de-obra. Para ilustrarmos esta questão, podemos citar os
casos das escolas particulares Farroupilha e Anchieta, ambos de Porto Alegre.
Em entrevista dada ao Sintep – MT, a coordenadora do colégio Farroupilha,
Daiane Modelski, afirmou que no primeiro ano do Ensino Médio o Colégio optou
por trabalhar a Formação Geral Básica, deixando a escolha dos itinerários
formativos para o segundo. Porém, para auxiliar os estudantes na escolha dos
itinerários formativos a escola ofereceu, no primeiro ano, 10 disciplinas
optativas no primeiro semestre e 9 optativas no segundo semestre, nas mais
diferentes áreas do conhecimento. Já o colégio Anchieta ofertou 4 itinerários
formativos diferentes, cada um dividido em dois temas: “Inovação, Tecnologias e
Pesquisa Científica (dividida em Inteligência financeira e Ciência e
tecnologia); Saúde e Bem-Estar Social (dividida em Saúde individual e coletiva
e Química do cotidiano); Humanidades e Desenvolvimento Pessoal (dividida em
Política, direito e sociedade e Cidadania global em inglês); e Processos
Criativos (Linguagens artísticas e Pensamento computacional)”. O colégio
ofertou ainda as disciplinas eletivas “Cinema e História; Esportes/práticas
corporais; Teatro; Música e neurociência; Jogos digitais; Dança e saúde mental;
e Geopolítica”.
Com
isso, o que podemos observar é que, na prática, o que o Novo Ensino Médio tem
ocasionado é o agravamento da desigualdade na realidade de escolas públicas e
privadas. Por um lado, nas redes de ensino públicas os estudantes estão
sofrendo com a redução no número de aulas destinadas a BNCC e com a imposição
de poucos itinerários formativos, muitas vezes inadequadas aos interesses de
seus alunos. Por outro lado, nas redes de ensino particulares os estudantes não
sofreram com os impactos da redução nas aulas destinadas a BNCC, já que estão
podendo cursar diversas disciplinas optativas, nas mais diversas áreas de
ensino, conseguindo optar entre diversos itinerários formativos em todas as áreas
estabelecidas pela lei 13.415, tendo suas escolhas respeitadas pelas
instituições de ensino. Portanto, a Reforma do Ensino Médio produziu um
verdadeiro abismo em relação as oportunidades encontradas pelos estudantes das
redes públicas e particulares de ensino, criando uma escola para os ricos e
outra completamente diferente para os pobres. Desse modo, a suspensão do Novo
Ensino Médio, por parte do governo federal, com o objetivo de reavaliar o
modelo é fundamental para que o poder público não sacrifique gerações inteiras
de estudantes pobres, com um ensino precarizado e extremamente desigual se
comparado ao que é ofertado para os ricos, nas escolas particulares. Ou seja,
enquanto as escolas públicas não tiverem condições estruturais e de força de
trabalho para ofertar todos os itinerários formativos, com qualidade, e
respeitando as escolhas de cada estudante, o Novo Ensino Médio será sinônimo de
precarização e de retirada de oportunidades para a maioria dos estudantes
brasileiros.
Se
demonstramos até aqui que o Novo Ensino Médio não é interessante para os
estudantes das redes públicas de ensino, resta retomarmos a pergunta realizada
anteriormente: para quem interessa o Novo Ensino Médio?
Em
primeiro lugar, podemos considerar os interesses de fundações empresariais
interessadas em lucrar com as possibilidades abertas pelo Novo Ensino Médio. A
lei 13.415 estabelece que “para efeito de cumprimento das exigências
curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer
competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com
notório reconhecimento”. Oras, se já está constatado que a maioria das escolas
públicas não possuem as condições mínimas para ofertar o Novo Ensino Médio,
muitas redes de ensino podem justificar a destinação de recursos públicos para
instituições privadas ofertarem o que seria de responsabilidade do Estado. Além
da problemática transferência de verbas públicas para instituições privadas, é
ainda mais preocupante a possibilidade da oferta destes conteúdos de maneira
remota, o que atende apenas aos interesses destas instituições privadas,
preocupadas em diminuir os custos para aumentar sua margem de lucro. Levando em
conta a realidade da maioria das escolas públicas, que enfrentam problemas com
falta de internet, laboratórios e equipamentos, a possibilidade da oferta de
parte do currículo por meio da educação a distância certamente não atende aos
interesses dos estudantes. Isso para não mencionar as possíveis dificuldades
dos alunos no que se refere a adaptação necessária para a aprendizagem por meio
da educação à distância.
A
Reforma do Ensino Médio também pode interessar às instituições de ensino
privadas, já que ao instituir um verdadeiro abismo entre as escolas públicas e
privadas, o modelo também pode significar a garantia de estudantes para as
redes privadas, já que a escola pública deixa de ser uma alternativa
minimamente atrativa para as famílias que possuem alguma capacidade financeira
de arcar com os custos de uma educação privada.
Além
disso, o Novo Ensino Médio também pode atender aos interesses de governos
estaduais com visões neoliberais que enxergam na educação pública um gasto
desnecessário. Isso porque a Reforma do Ensino Médio pode representar uma
possibilidade de redução de custos com profissionais da educação. Se qualquer
professor pode assumir aulas em qualquer área dentro dos itinerários
formativos, o poder público fica desobrigado de promover concursos para a
contratação de professores especialistas, o que diminui a demanda de
contratação de docentes. Além disso, no que se refere ao ensino
profissionalizante, a lei 13.415 introduz a possibilidade de que profissionais
sem formação na área de educação atuem como professores. O § 3º, IV, estabelece
que as escolas podem contratar “profissionais com notório saber reconhecido
pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à
sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou
prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das
corporações privadas em que tenham atuado”.
Por
fim, o Novo Ensino Médio, ao permitir a redução no número de aulas de
disciplinas da BNCC que trabalham a formação cidadã, a participação política e
que fortalecem o senso crítico dos estudantes, abre margem para que a escola
pública seja transformada em um espaço de formação neoliberal, voltada para a
garantia de força de trabalho acrítica e disciplinada para ser explorada pelo
grande capital. Na década de 1930, Anísio Teixeira já criticava o modelo de escola
paternalista, destinada a educar os governados, ou seja, os que iriam obedecer
e fazer, em oposição aos que governariam, ou seja, que iriam mandar e pensar
(TEIXEIRA, 1936). Infelizmente, o Novo Ensino Médio representa um regresso a
este modelo de educação criticado por Teixeira, já que enquanto os estudantes
das redes públicas são privados de disciplinas que estimulam a formação de
cidadãos ativos, capazes de pensar de maneira crítica, os estudantes da rede
privada continuam tendo acesso a estas disciplinas por meio de disciplinas
optativas e itinerários formativos variados.
Vale
lembrar que a precarização do ensino público, com a redução da carga horária
destinada a BNCC, provavelmente terá impacto na formação dos estudantes da rede
pública, que certamente enfrentarão maiores dificuldades para a inserção e para
a permanência no Ensino Superior. Com isto, o desejo expresso pelo ex-ministro
da Educação bolsonarista, Milton Ribeiro, de que as universidades deveriam ser
para poucos, apenas reservadas para uma elite intelectual, pode ser efetivado
por meio do Novo Ensino Médio.
Portanto,
a suspensão do Novo Ensino Médio por 60 dias é um primeiro passo importante
para que o poder público possa corrigir a rota desta grande injustiça social
instituída pela Lei 13.415. Porém, a medida tomada pelo governo federal só
produzirá efeitos importantes se a sociedade, como um todo, se apropriar da
discussão da temática, para que as injustiças do Novo Ensino Médio possam ser
corrigidas. Neste sentido, a mídia possui um papel importante para estimular o
debate e para fornecer elementos que permitam a população uma análise crítica
do tema, extrapolando opiniões rasas oferecidas por alguns políticos e
comunicadores comprometidos com os interesses daqueles que são os verdadeiros
beneficiados pela implementação do Novo Ensino Médio.
Fonte:
Observatório da Imprensa
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