sábado, 1 de abril de 2023

DESMILITARIZAR AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: Escola não é quartel

Lula tem diante de si um conjunto de heranças malditas legadas pelo governo anterior nas mais diversas áreas. Na educação básica, se destacam o Novo Ensino Médio (NEM) e o Programa de Escolas Cívico-Militares (PECIM). Os dois projetos explicitam propostas de dois grupos, empresários e militares, para a educação pública, e têm em comum a busca pelo controle social das camadas mais pauperizadas da sociedade, usando para isso da ética empreendedora do neoliberalismo e do adestramento comportamental baseado na hierarquia e disciplina.

A revogação do NEM ganhou destaque na pauta de mobilizações de diversos movimentos de luta pela educação, mas sua revogação pelo governo ainda é incerta. O PECIM, por sua vez, viu a diretoria responsável pelo programa ser extinta já nos primeiros dias do novo governo Lula. Em março, começou a dispensa dos militares da reserva que já estavam contratados para trabalhar nas escolas militarizadas, consequência de uma das promessas de campanha: desmilitarizar o governo. Apesar disso, 215 escolas adotaram e seguem vinculadas ao sistema cívico-militar, e elas constituem apenas uma parte do conjunto de escolas do ensino básico submetidas à militarização.

O primeiro colégio do Sistema de Colégios Militares do Brasil (SCMB) foi criado em 1889 por dois motivos: prestar assistência aos dependes de militares mortos/machucados na Guerra do Paraguai e a necessidade de despertar vocações, ampliando o interesse pelo recrutamento. Nenhum dos argumentos se sustenta mais há décadas. Escolas militarizadas em parceria com a polícia existem desde 1957. Segundo Santos (2020), existiam até 2019, 91 unidades escolares de educação básica militarizadas em funcionamento em todo o país. Dessas 91, 15 são federais (as do SCMB). Das 58 estaduais, 54 unidades pertencem ao organograma de uma das Polícias Militares e quatro ao Corpo de Bombeiros Militar; e dezoito são privadas, pertencentes a associações de militares. Mais de 70% estão no interior e nas regiões Sudeste, Nordeste e Sul. Nove (ou 15%) dessas escolas foram criadas durante os quinze anos que precederam o golpe de 1964, dez (16,67%) durante os 21 anos do regime ditatorial e 41 (68,33%) entre 1985 e 2019 (últimos 34 anos, período de governos civis eleitos). Em arranjos mais precários do ponto de vista normativo, Santos (2020) contabilizou, até 2019, 240 escolas públicas militarizadas no Brasil, em sua maior parte estaduais e vinculadas às PMs.

A maioria dos diferentes formatos de escolas militarizadas vem se implantando no ensino fundamental II e no ensino médio, portanto, para aquela faixa etária entre os 10 e os 17 anos, idade conhecida popularmente como puberdade e adolescência. Mais recentemente, com o avanço da militarização na sociedade, secretarias municipais de educação passaram a adquirir pacotes educacionais para a militarização das suas escolas, abrangendo a Educação Infantil e os primeiros anos do Ensino Fundamental (Mendonça, 2019, p.598).

Saliente-se que sob o termo educação militarizada diferentes propostas são realizadas: 1) as escolas subordinadas ao Sistema de Ensino do Exército Brasileiro, chamado Sistema de Colégios Militares do Brasil (SCMB); 2) as escolas estaduais e municipais com uma gestão compartilhada entre as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e as Secretarias Estaduais/Municipais de Educação, a maioria vinculada às polícias militares, mas algumas aos corpos de bombeiros estaduais; 3) as escolas públicas estaduais e municipais que firmam convênios com associações particulares de natureza policial-militar; 4) as escolas estimuladas pelo PECIM; e 5) as escolas particulares que adotam um modelo político-pedagógico militar. Também recebem o nome de educação militar, mas não são objeto de discussão neste artigo: a. o ensino militar ministrado aos militares das Forças Armadas; b. a educação profissional dos militares das três Forças, que abrange o ensino militar.

No discurso político, as diferenças entre os cinco tipos são propositadamente dissimuladas. Passado e presente, real ou imaginário, combinam-se para gerar associações entre ordem (uniformização), disciplina (submissão a um mesmo percurso formativo), civismo (valorização dos símbolos pátrios), ritualística militar (mimetismo de ordem unida, cerimônias, nomenclatura militar para os alunos etc.) e meritocracia (premiações para os que se destacam) como responsáveis por bons resultados em testes. Independente das condições prévias, o estudo “difícil” é considerado uma forja (Freire, 2017).

Em termos de valores, existe a reprodução de discursos conservadores, notadamente aqueles que destacam a necessidade de retomar a organização social tradicional (considerada ‘natural’) diante da degeneração. A família é entendida como insuficiente na sua prática social, e os militares são identificados como os agentes capazes que “exercerão o papel de tutoria que muitos alunos não tiveram em seus ambientes familiares, proporcionando acolhimento, diálogo, dando o exemplo e servindo de referência, aspectos esses tão necessários ao desenvolvimento do aluno como pessoa” (MEC, 2021. p.83).

A cultura escolar é de fato compartilhada entre as diferentes escolas militarizadas, mas, quanto às demais questões, existem grandes distinções, em especial quanto aos recursos humanos e materiais, que tornam as escolas do SCMB superiores às escolas vinculadas às polícias/corpos de bombeiros estaduais; e estas são superiores às escolas cívico-militares oriundas do PECIM. Em resumo, quanto mais próximo das FFAA está o público dessas escolas, maior é o volume de verbas recebido. Especificamente quanto às escolas vinculadas ao PECIM, segundo o MEC, cada escola receberia R$1 milhão por ano, a ser empregado majoritariamente no pagamento dos salários de militares contratados para as escolas, que mantêm seus vencimentos como militares acrescidos pelo adicional do PECIM. Não há aumento no investimento por aluno e, dessa maneira, vai-se construindo um modelo militarizado perifericamente para as escolas da periferia, onde o bônus da militarização para a comunidade (aumento orçamentário para recursos humanos e materiais) não existe.

O investimento por aluno no SCMB é quase três vezes maior que o restante do ensino público, militarizado ou não. Essa diferença pode ser percebida também no quadro docente, que conta com professores com salários superiores a R$ 10 mil e programas de ascensão na carreira civil e militar. No caso das demais escolas militarizadas, embora recebendo menos que os militares trabalhando na mesma escola, os profissionais civis têm rendimento (recebido na forma de gratificação) e condições de trabalho melhores que os docentes civis do restante da rede pública. Ademais, há relatos dos docentes sobre o ambiente de constante vigilância e baixa participação deles na gestão escolar; entretanto, defendem a que a organização e a disciplina por parte dos estudantes é fundamental para o processo de aprendizagem (Reses, Paulo, 2019, p.712).

A maioria dos modelos de escolas militarizadas tem duas fontes de recursos: o Ministério da Educação/Secretaria Estadual de Educação e Ministério da Defesa/Secretarias Estaduais de Segurança Pública. Em diversos casos, existe a cobrança de mensalidades ou taxas de manutenção por meio de Associações de Pais, Alunos e Mestres, que financia parte das despesas. Dessa maneira, as escolas têm características público-privadas, pois são financiadas pelos programas governamentais por meio de recursos da educação e das corporações militares, usam instalações prediais públicas, empregam servidores advindos das duas pastas, mas contam com as taxas (que recebem diversos nomes) pagas pelos pais. Na prática, recursos universais da educação pagam a maioria dos gastos com as escolas militarizadas, que cobram taxas e reservam vagas para dependentes de militares. Além disso, embora os ônus fiquem sob a responsabilidade das secretarias de educação, o poder, vinculado aos cargos de coordenação, subordinam-se às secretarias de segurança.

A cobrança de mensalidades é ilegal e objeto de diversos questionamentos judiciais, uma vez que a Constituição de 1988 define a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais como condição para a igualdade de acesso e permanência na escola. “Desse modo, esse modelo acaba privilegiando as camadas de classes médias que, perdendo poder aquisitivo, mantêm seus filhos numa escola que se assemelha à ‘particular’, mas com mensalidade menor” (Alves; Toschi, 2019, p.644). Segundo Pinheiro, Pereira e Sabino (2019, p.680), apenas 5% dos discentes das escolas militarizadas têm renda de até um salário, a maioria estando na faixa entre cinco e sete salários como renda familiar. Também sofre questionamento judicial o deslocamento de militares/policiais para as escolas, entendido como desvio de função; e os limites da atuação da União para tratar dos sistemas estaduais e municipais de ensino, considerando o desenho federativo nacional (Ximenes, Stuchi, Moreira 2019, p.623).

Quanto ao desempenho em avaliações como o Enem, as escolas militarizadas têm resultados inferiores aos institutos federais, que também recebem mais verbas governamentais que as demais escolas públicas. O bom desempenho deve-se à elitização decorrente da seleção dos discentes que frequentam essas escolas. No caso das escolas do SCMB, 25% das vagas são destinadas à livre concorrência da população em geral e, no caso das escolas militarizadas, em média 50%. O PECIM não prevê seleção. Os discentes aprovados por concurso são os responsáveis por puxar as médias de avaliação da instituição para o alto (Freire, 2017), ou, em outras palavras, as escolas militares se saem bem em avaliações por selecionar civis preparados para provas de alto desempenho. A literatura pedagógica aponta a homogeneidade entre os recrutados como um aspecto importante para os resultados obtidos nas avaliações. Aqui, cumpre ressaltar: a homogeneidade é conseguida através dos concursos, e não do recrutamento de filhos de militares.

A seleção segue após a entrada na escola, de forma compatível com os valores militares que defendem a “vitória dos melhores” através de sacrifícios diversos, inspirados na mitologia do herói. Assim, a avaliação funciona como uma peneira contínua, que depura e hierarquiza. Os pais não desconhecem as diferentes violências simbólicas das quais os filhos são vítimas nas escolas militarizadas, mas as consideram um preço a pagar para o aumento do capital cultural dos filhos, superando a condição [subalterna] da família (Santos, 2020).

Por fim, atenuar a violência na periferia tem sido apontado como uma motivação para a militarização das escolas, que traria segurança para os discentes, docentes e família. Entretanto, “é preciso considerar que a polícia que é chamada para impedir a violência na escola é a mesma que não consegue entregar resultados à sociedade em relação às políticas públicas de segurança para as quais ela efetivamente foi criada e existe” (Mendonça, 2019, p.607). A violência não é criada dentro da escola, mas se reflete nela.

Os eventos de violência contra as escolas no Brasil começaram na primeira década dos anos 2000 e, até dezembro de 2022, somavam 16 ataques com 35 vítimas fatais, dos quais 4 no segundo semestre de 2022. Em 28 de março de 2023 a professora Elisabete Tenreiro aumentou esses tristes números, morta a facadas por um adolescente de 13 anos. A inserção de artefatos na escola como catracas ou seguranças armados não impactou nas ameaças de atentados, pelo contrário, tornou-os mais gravosos. O número de armas nas mãos da população civil hoje supera em 7,5 o total de armas vinculadas às forças estatais de segurança pública. Por outro lado, em 2021, a cada 60 minutos uma criança ou adolescente morria no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022). No caso dos ataques contra escolas, metade das armas vieram das casas dos atiradores (armas pertencentes a policiais ou a membros de Clubes de Atiradores Colecionadores e Caçadores, os conhecidos CACs), segundo o Instituto Sou da Paz.

Em suma, aumentar o número de policiais e de armas em circulação na comunidade escolar não resolve o problema da violência contra a escola e nem o da segurança pública. Nenhuma escola para crianças ou adolescentes deveria emular o quartel seja ele militar, policial ou de bombeiros. A educação dos militares deve ser objeto de ensino superior ou especializações, e direcionada para aqueles que terão as armas enquanto profissão. As escolas militarizadas são um campo político importante para a atuação doméstica das forças armadas, algo prejudicial não apenas para a construção da democracia, mas para a própria formulação da política pública de defesa. É imperativo desmilitarizar as políticas educacionais, não apenas a desastrosa iniciativa do PECIM. Escolas não são quartéis! Que a Educação seja libertadora para que possamos ler o mundo e transformá-lo!

 

Fonte: Por Pollyana Labre, Ana Penido e Suzeley Kalil, no Le Monde

 

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