DESMILITARIZAR AS
POLÍTICAS EDUCACIONAIS: Escola não é quartel
Lula
tem diante de si um conjunto de heranças malditas legadas pelo governo anterior
nas mais diversas áreas. Na educação básica, se destacam o Novo Ensino Médio
(NEM) e o Programa de Escolas Cívico-Militares (PECIM). Os dois projetos
explicitam propostas de dois grupos, empresários e militares, para a educação
pública, e têm em comum a busca pelo controle social das camadas mais
pauperizadas da sociedade, usando para isso da ética empreendedora do
neoliberalismo e do adestramento comportamental baseado na hierarquia e
disciplina.
A
revogação do NEM ganhou destaque na pauta de mobilizações de diversos
movimentos de luta pela educação, mas sua revogação pelo governo ainda é
incerta. O PECIM, por sua vez, viu a diretoria responsável pelo programa ser
extinta já nos primeiros dias do novo governo Lula. Em março, começou a
dispensa dos militares da reserva que já estavam contratados para trabalhar nas
escolas militarizadas, consequência de uma das promessas de campanha:
desmilitarizar o governo. Apesar disso, 215 escolas adotaram e seguem
vinculadas ao sistema cívico-militar, e elas constituem apenas uma parte do
conjunto de escolas do ensino básico submetidas à militarização.
O
primeiro colégio do Sistema de Colégios Militares do Brasil (SCMB) foi criado
em 1889 por dois motivos: prestar assistência aos dependes de militares
mortos/machucados na Guerra do Paraguai e a necessidade de despertar vocações,
ampliando o interesse pelo recrutamento. Nenhum dos argumentos se sustenta mais
há décadas. Escolas militarizadas em parceria com a polícia existem desde 1957.
Segundo Santos (2020), existiam até 2019, 91 unidades escolares de educação
básica militarizadas em funcionamento em todo o país. Dessas 91, 15 são
federais (as do SCMB). Das 58 estaduais, 54 unidades pertencem ao organograma
de uma das Polícias Militares e quatro ao Corpo de Bombeiros Militar; e dezoito
são privadas, pertencentes a associações de militares. Mais de 70% estão no
interior e nas regiões Sudeste, Nordeste e Sul. Nove (ou 15%) dessas escolas
foram criadas durante os quinze anos que precederam o golpe de 1964, dez
(16,67%) durante os 21 anos do regime ditatorial e 41 (68,33%) entre 1985 e 2019
(últimos 34 anos, período de governos civis eleitos). Em arranjos mais
precários do ponto de vista normativo, Santos (2020) contabilizou, até 2019,
240 escolas públicas militarizadas no Brasil, em sua maior parte estaduais e
vinculadas às PMs.
A
maioria dos diferentes formatos de escolas militarizadas vem se implantando no
ensino fundamental II e no ensino médio, portanto, para aquela faixa etária
entre os 10 e os 17 anos, idade conhecida popularmente como puberdade e
adolescência. Mais recentemente, com o avanço da militarização na sociedade,
secretarias municipais de educação passaram a adquirir pacotes educacionais
para a militarização das suas escolas, abrangendo a Educação Infantil e os
primeiros anos do Ensino Fundamental (Mendonça, 2019, p.598).
Saliente-se
que sob o termo educação militarizada diferentes propostas são realizadas: 1)
as escolas subordinadas ao Sistema de Ensino do Exército Brasileiro, chamado
Sistema de Colégios Militares do Brasil (SCMB); 2) as escolas estaduais e
municipais com uma gestão compartilhada entre as Secretarias Estaduais de
Segurança Pública e as Secretarias Estaduais/Municipais de Educação, a maioria
vinculada às polícias militares, mas algumas aos corpos de bombeiros estaduais;
3) as escolas públicas estaduais e municipais que firmam convênios com
associações particulares de natureza policial-militar; 4) as escolas
estimuladas pelo PECIM; e 5) as escolas particulares que adotam um modelo
político-pedagógico militar. Também recebem o nome de educação militar, mas não
são objeto de discussão neste artigo: a. o ensino militar ministrado aos
militares das Forças Armadas; b. a educação profissional dos militares das três
Forças, que abrange o ensino militar.
No
discurso político, as diferenças entre os cinco tipos são propositadamente
dissimuladas. Passado e presente, real ou imaginário, combinam-se para gerar
associações entre ordem (uniformização), disciplina (submissão a um mesmo
percurso formativo), civismo (valorização dos símbolos pátrios), ritualística
militar (mimetismo de ordem unida, cerimônias, nomenclatura militar para os
alunos etc.) e meritocracia (premiações para os que se destacam) como
responsáveis por bons resultados em testes. Independente das condições prévias,
o estudo “difícil” é considerado uma forja (Freire, 2017).
Em
termos de valores, existe a reprodução de discursos conservadores, notadamente
aqueles que destacam a necessidade de retomar a organização social tradicional
(considerada ‘natural’) diante da degeneração. A família é entendida como
insuficiente na sua prática social, e os militares são identificados como os
agentes capazes que “exercerão o papel de tutoria que muitos alunos não tiveram
em seus ambientes familiares, proporcionando acolhimento, diálogo, dando o
exemplo e servindo de referência, aspectos esses tão necessários ao
desenvolvimento do aluno como pessoa” (MEC, 2021. p.83).
A
cultura escolar é de fato compartilhada entre as diferentes escolas
militarizadas, mas, quanto às demais questões, existem grandes distinções, em
especial quanto aos recursos humanos e materiais, que tornam as escolas do SCMB
superiores às escolas vinculadas às polícias/corpos de bombeiros estaduais; e
estas são superiores às escolas cívico-militares oriundas do PECIM. Em resumo,
quanto mais próximo das FFAA está o público dessas escolas, maior é o volume de
verbas recebido. Especificamente quanto às escolas vinculadas ao PECIM, segundo
o MEC, cada escola receberia R$1 milhão por ano, a ser empregado
majoritariamente no pagamento dos salários de militares contratados para as
escolas, que mantêm seus vencimentos como militares acrescidos pelo adicional
do PECIM. Não há aumento no investimento por aluno e, dessa maneira, vai-se
construindo um modelo militarizado perifericamente para as escolas da
periferia, onde o bônus da militarização para a comunidade (aumento
orçamentário para recursos humanos e materiais) não existe.
O
investimento por aluno no SCMB é quase três vezes maior que o restante do
ensino público, militarizado ou não. Essa diferença pode ser percebida também
no quadro docente, que conta com professores com salários superiores a R$ 10
mil e programas de ascensão na carreira civil e militar. No caso das demais
escolas militarizadas, embora recebendo menos que os militares trabalhando na
mesma escola, os profissionais civis têm rendimento (recebido na forma de
gratificação) e condições de trabalho melhores que os docentes civis do
restante da rede pública. Ademais, há relatos dos docentes sobre o ambiente de
constante vigilância e baixa participação deles na gestão escolar; entretanto,
defendem a que a organização e a disciplina por parte dos estudantes é
fundamental para o processo de aprendizagem (Reses, Paulo, 2019, p.712).
A
maioria dos modelos de escolas militarizadas tem duas fontes de recursos: o
Ministério da Educação/Secretaria Estadual de Educação e Ministério da
Defesa/Secretarias Estaduais de Segurança Pública. Em diversos casos, existe a
cobrança de mensalidades ou taxas de manutenção por meio de Associações de
Pais, Alunos e Mestres, que financia parte das despesas. Dessa maneira, as
escolas têm características público-privadas, pois são financiadas pelos
programas governamentais por meio de recursos da educação e das corporações
militares, usam instalações prediais públicas, empregam servidores advindos das
duas pastas, mas contam com as taxas (que recebem diversos nomes) pagas pelos
pais. Na prática, recursos universais da educação pagam a maioria dos gastos
com as escolas militarizadas, que cobram taxas e reservam vagas para
dependentes de militares. Além disso, embora os ônus fiquem sob a
responsabilidade das secretarias de educação, o poder, vinculado aos cargos de
coordenação, subordinam-se às secretarias de segurança.
A
cobrança de mensalidades é ilegal e objeto de diversos questionamentos judiciais,
uma vez que a Constituição de 1988 define a gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais como condição para a igualdade de acesso e
permanência na escola. “Desse modo, esse modelo acaba privilegiando as camadas
de classes médias que, perdendo poder aquisitivo, mantêm seus filhos numa
escola que se assemelha à ‘particular’, mas com mensalidade menor” (Alves;
Toschi, 2019, p.644). Segundo Pinheiro, Pereira e Sabino (2019, p.680), apenas
5% dos discentes das escolas militarizadas têm renda de até um salário, a
maioria estando na faixa entre cinco e sete salários como renda familiar.
Também sofre questionamento judicial o deslocamento de militares/policiais para
as escolas, entendido como desvio de função; e os limites da atuação da União para
tratar dos sistemas estaduais e municipais de ensino, considerando o desenho
federativo nacional (Ximenes, Stuchi, Moreira 2019, p.623).
Quanto
ao desempenho em avaliações como o Enem, as escolas militarizadas têm
resultados inferiores aos institutos federais, que também recebem mais verbas
governamentais que as demais escolas públicas. O bom desempenho deve-se à
elitização decorrente da seleção dos discentes que frequentam essas escolas. No
caso das escolas do SCMB, 25% das vagas são destinadas à livre concorrência da
população em geral e, no caso das escolas militarizadas, em média 50%. O PECIM
não prevê seleção. Os discentes aprovados por concurso são os responsáveis por
puxar as médias de avaliação da instituição para o alto (Freire, 2017), ou, em
outras palavras, as escolas militares se saem bem em avaliações por selecionar
civis preparados para provas de alto desempenho. A literatura pedagógica aponta
a homogeneidade entre os recrutados como um aspecto importante para os
resultados obtidos nas avaliações. Aqui, cumpre ressaltar: a homogeneidade é
conseguida através dos concursos, e não do recrutamento de filhos de militares.
A
seleção segue após a entrada na escola, de forma compatível com os valores
militares que defendem a “vitória dos melhores” através de sacrifícios
diversos, inspirados na mitologia do herói. Assim, a avaliação funciona como
uma peneira contínua, que depura e hierarquiza. Os pais não desconhecem as
diferentes violências simbólicas das quais os filhos são vítimas nas escolas
militarizadas, mas as consideram um preço a pagar para o aumento do capital
cultural dos filhos, superando a condição [subalterna] da família (Santos,
2020).
Por
fim, atenuar a violência na periferia tem sido apontado como uma motivação para
a militarização das escolas, que traria segurança para os discentes, docentes e
família. Entretanto, “é preciso considerar que a polícia que é chamada para
impedir a violência na escola é a mesma que não consegue entregar resultados à
sociedade em relação às políticas públicas de segurança para as quais ela
efetivamente foi criada e existe” (Mendonça, 2019, p.607). A violência não é
criada dentro da escola, mas se reflete nela.
Os
eventos de violência contra as escolas no Brasil começaram na primeira década
dos anos 2000 e, até dezembro de 2022, somavam 16 ataques com 35 vítimas
fatais, dos quais 4 no segundo semestre de 2022. Em 28 de março de 2023 a
professora Elisabete Tenreiro aumentou esses tristes números, morta a facadas
por um adolescente de 13 anos. A inserção de artefatos na escola como catracas
ou seguranças armados não impactou nas ameaças de atentados, pelo contrário,
tornou-os mais gravosos. O número de armas nas mãos da população civil hoje
supera em 7,5 o total de armas vinculadas às forças estatais de segurança pública.
Por outro lado, em 2021, a cada 60 minutos uma criança ou adolescente morria no
Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo (Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, 2022). No caso dos ataques contra escolas, metade das armas
vieram das casas dos atiradores (armas pertencentes a policiais ou a membros de
Clubes de Atiradores Colecionadores e Caçadores, os conhecidos CACs), segundo o
Instituto Sou da Paz.
Em
suma, aumentar o número de policiais e de armas em circulação na comunidade
escolar não resolve o problema da violência contra a escola e nem o da
segurança pública. Nenhuma escola para crianças ou adolescentes deveria emular
o quartel seja ele militar, policial ou de bombeiros. A educação dos militares
deve ser objeto de ensino superior ou especializações, e direcionada para
aqueles que terão as armas enquanto profissão. As escolas militarizadas são um
campo político importante para a atuação doméstica das forças armadas, algo
prejudicial não apenas para a construção da democracia, mas para a própria
formulação da política pública de defesa. É imperativo desmilitarizar as
políticas educacionais, não apenas a desastrosa iniciativa do PECIM. Escolas
não são quartéis! Que a Educação seja libertadora para que possamos ler o mundo
e transformá-lo!
Fonte:
Por Pollyana Labre, Ana Penido e Suzeley Kalil, no Le Monde
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