terça-feira, 4 de abril de 2023

De Troyjo a Rousseff à frente do banco do Brics, uma análise sobre questões de gênero e imprensa

No dia 24/03, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) foi oficializada no comando do New Development Bank (NDB) – o Novo Banco do Desenvolvimento (NBD) -, instituição de operação multilateral conhecida como o “banco do Brics”, bloco econômico formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Em nota, o banco destacou que, durante sua passagem pelo Palácio do Planalto, Dilma “concentrou sua agenda em garantir a estabilidade econômica e a geração de empregos”, além de ter trabalhado no “resultado de um dos mais amplos processos de redução da pobreza da história do país”: o Brasil foi retirado do Mapa da Fome em 2014, relatório elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Entretanto, na imprensa, pouco se falou sobre as qualificações que Rousseff possui para estar à frente do novo cargo. Houve poucas informações sobre as atribuições do posto, além do pouco espaço para discutir a relevância da instituição na atual ordem econômica global. Veículos empreenderam críticas cabíveis à condução da política econômica em seus cinco anos de governo, mas o tom machista configurado em uma atenção midiática desproporcional – naturalmente esperada – em relação à cobertura da posse de seu antecessor são dignos de análise.

No UOL, por exemplo, foi destacado que a petista, em seu novo cargo, “deve ganhar cerca de US$ 500 mil (R$ 2,6 milhões) por ano à frente da instituição, equivalente ao valor pago pelo Banco Mundial”. Além disso, a matéria destaca que “o banco oferece aos empregados uma série de benefícios, como assistência médica, educacional para filhos, auxílio viagem para o país de origem, subsídios para mudança em caso de contratação e desligamento, e transporte aéreo”. CNN, Terra e Valor optaram pela mesma angulação com maior destaque.

“O secretário especial de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Marcos Troyjo, foi eleito presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o banco do Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul”, destacou o Estadão, em 27 de maio de 2020, sobre a posse do agora antecessor à petista.

No texto, não houve nenhuma informação sobre o seu salário na nova instituição, apenas um breve resumo de seu currículo e uma explanação sobre o fato de ser o segundo brasileiro a presidir a entidade. Já no caso de Dilma Rousseff, o Estadão ofereceu uma justa crítica à nota do NDB que recepciona a petista à frente da instituição: “Banco dos BRICs anuncia Dilma sem falar de impeachment e diz que ela buscou estabilidade na economia”.

Especulações sobre a angulação são necessárias, com o retrospecto de indicadores econômicos da gestão da petista. Em 2015, último ano em que o País foi governado inteiramente por Dilma, a inflação alcançou a taxa de 10,6% – o maior número acumulado desde 2002 (12,5%), e o desemprego chegou ao patamar de 9,6%, o maior desde 2004.

A construção de uma notícia implica, num certo modo, em subjetividade e ideologia. Ao fazê-la, o UOL e seus pares optaram por uma lógica mercadológica, o “caça-cliques”, sobretudo em meio a uma realidade socioeconômica desafiadora e desigual. Afinal, somos ou não o país que lida com mais de 30 milhões de pessoas que passam fome diariamente? Quando algum veículo opta por destacar a remuneração e assistências que Rousseff vai receber em seu novo posto, a despeito de maior contextualização, o faz consciente para instigar uma indignação ao leitor e também enseja que o visualizador da notícia compartilhe o conteúdo e o sentimento.

Entre seus feitos positivos, não relembram que, além de ter sido a primeira mulher a comandar o Brasil, agora a petista repete a façanha do pioneirismo à frente de uma importante instituição financeira global. As crises política e econômica mencionadas acima são atribuídas por seus defensores à Operação Lava-Jato e a oposição virulenta do presidente da Câmara dos Deputados à época, Eduardo Cunha, e foram determinantes para o seu afastamento após um controverso e turbulento processo de impeachment em 2016. Se atermo-nos ao olhar cuidadoso que as redações devem apurar sobre as questões de gênero em todas as suas pautas, precisamos evocá-lo nessa cobertura específica.

No dia seguinte à posse de Troyjo, 28 de maio de 2020, o Valor destacou os planos de Troyjo para a instituição: “abrir o capital e ampliar o número de sócios, expandir os instrumentos de financiamento e dar mais visibilidade à instituição na cena internacional”. Pressa semelhante ainda não houve entre o Valor e os demais veículos de imprensa para obter de Dilma Rousseff informações e diretrizes de sua gestão à frente do NDB, nem mesmo entre seus interlocutores.

Coube ao Deutsche Welle Brasil destacar uma cobertura mais aprofundada. Diz o veículo que a eleição atribui à petista um “resgate de prestígio político, que, à frente da instituição, vai ter o desafio de lidar com a questão russa”. A reportagem ainda ressalta o perfil e as atividades do banco, um breve histórico da relação entre os países componentes, a forma com que se deu a escolha pela ex-presidente no conselho de governadores e as expectativas da nova gestão.

 

       Perspectivas dos BRICS para o próximo período. Por Adhemar S. Mineiro

 

O BRICS pode ser visto como uma coalisão geopolítica, uma articulação e um processo, mas é fundamentalmente um bloco informal, já que não tem estrutura ou sede. O bloco, composto de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, surgiu no final da primeira década desse século ainda sem a África do Sul. Desde o início, foi uma espécie de “fração de grandes países” (principalmente países em desenvolvimento), atuando ainda no interior do chamado G-20 e interferindo neste grupo. Uma das tarefas importantes do novo governo brasileiro e da diplomacia brasileira será definir o que quer com o BRICS e como participar do grupo, definindo a sua importância para o governo e, na medida do possível, transformando essa relação em uma política de Estado.

Vale lembrar que ao longo do governo Bolsonaro, o Brasil adotou uma participação de perfil baixo no BRICS, coerente com uma política diplomática que alardeava as vantagens da política externa dos EUA (ou de ser um apêndice dela), durante o governo Trump naquele país, ou de ser um “pária internacional”, conforme explicitado pelo primeiro ministro de Relações Exteriores daquele governo. Em relação ao BRICS, e apesar das diatribes frequentes de membros do governo e da família do presidente Bolsonaro com relação aos chineses, destacado membro do grupo, o Brasil adotou uma espécie de política de “submersão sem ruptura”, especialmente por causa dos fortes interesses comerciais que conectam o Brasil à China, seu principal parceiro – mercado destacado para as exportações brasileiras de petróleo, minerais e produtos do agronegócio. Assim, o Brasil ficou no grupo, mas sem o protagonismo que teve em outros momentos.

Para o futuro próximo, a definição do novo governo brasileiro depende de algumas dúvidas importantes sobre os movimentos estruturais e conjunturais do próximo período. O primeiro deles diz respeito à disputa cada vez mais explícita de hegemonia no cenário internacional entre China e EUA, e como o Brasil pode, quer e deve se colocar frente a essa disputa. A tradição da diplomacia brasileira é buscar os espaços autônomos para se mover frente às grandes potências no cenário internacional, buscando não tomar propriamente partido nessas disputas. Mas o cenário para os próximos anos se apresenta tenso nesse sentido, e pode exigir definições maiores do que as que o Brasil possa estar disposto a fazer, tensionando o processo decisório do governo brasileiro.

O segundo ponto diz respeito à presença russa no bloco. A partir da guerra na Ucrânia iniciada no ano passado, para a percepção hegemonizada por estadunidenses e europeus, mas compartilhada por muitos mais, a Rússia é uma companhia tóxica no cenário internacional, nesse momento e pelo menos enquanto a situação da guerra perdurar. Assim, para o Brasil se mover no cenário internacional sem muita tensão, sendo membro do BRICS, um ponto importante seria que as tensões na Ucrânia fossem saindo de ponto de destaque na agenda internacional, o que só é possível com alguma espécie de armistício ou cessar-fogo na guerra em território ucraniano, mesmo que seja um processo que siga complicado. Daí a ênfase aparente do governo brasileiro no processo de paz na Ucrânia, o que poderia não nos dizer respeito muito diretamente.

Um terceiro ponto é a discussão da proposta chinesa de avançar no BRICS a ideia de um espaço comercial comum, alguma espécie de área de comércio dos países BRICS. Vale lembrar que a China é parceiro importante do ponto de vista comercial de todos os outros países do bloco, mas quando se exclui a China, a importância das relações comerciais entre os demais países não é tão relevante, embora tenha aspectos importantes, e sejam todos mercados expressivos. É preciso observar também que aprofundar essas relações comerciais no bloco pode significar ampliar ainda mais a dependência comercial em relação à China, em um modelo em que, no caso brasileiro, o Brasil é um exportador de commodities agrícolas, minerais e energéticas, e um importador de produtos manufaturados, em uma situação bastante desvantajosa do ponto de vista de uma estratégia de desenvolvimento, em especial se a reindustrialização faz parte dessa estratégia.

Convém destacar ainda que no período recente estão se aprofundando as discussões de pequenas parcerias no interior do BRICS. As reuniões e declarações conjuntas entre China e Rússia têm apontado neste sentido, assim como a tentativa de reviver o bloco IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), bloco que antecedeu o BRICS do ponto de vista da diplomacia brasileira. Neste sentido, se esses movimentos não se coordenarem de alguma forma, o BRICS pode começar a se mostrar uma coalisão “trincada” do ponto de vista dos interesses.

Finalmente, cabe observar a discussão do processo de ampliação do BRICS, com a discussão da entrada de vários países. Muitos dos países que mostraram algum interesse em se juntar ao BRICS são países asiáticos (Turquia, Irã, Arábia Saudita e Indonésia, por exemplo), mas para que o BRICS não tenha uma “cara” excessivamente asiática, precisaria contrabalançar esse processo com países em outras regiões, como a África (onde, por exemplo, o Egito demonstrou algum interesse) ou o continente americano (onde quem se apresentou foi a Argentina). De qualquer forma, quaisquer dessas inclusões demandarão discussões, e especialmente o posicionamento dos “sócios fundadores” do bloco. E aí, por exemplo, há que pensar o que representa a entrada da Argentina para o Brasil, que ganha um parceiro do Mercosul no bloco, e um país prioritário nas definições estratégicas da diplomacia brasileira, mas perde a “exclusividade” de membro sul-americano do grupo.

O que pode representar do ponto de vista de uma estratégia de desenvolvimento e da projeção diplomática internacional do Brasil o agrupamento BRICS, e como o Brasil pode se mover nesse quadro complexo é seguramente uma discussão que veremos cada vez mais aberta, não apenas nesse governo, mas nos próximos que se seguirão. Lembrando que estão previstas reuniões do IBAS (esse ano), do G-20 (no ano que vem) e possivelmente do BRICS (no ano seguinte) no Brasil, o que trará esse debate também para o cotidiano das pessoas.

 Fonte: Por Lucas de Andrade, no Observatório da Imprensa/Terapia Política

 

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