Como mulheres
conseguiram conter 'com comida' poder da milícia em área dominada do RJ
A
BBC News Brasil trocou os nomes das entrevistadas e omitiu detalhes sobre onde
atuam para garantir sua segurança.
Na
Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma mulher conta para um integrante da milícia
que o filho dela furtou coisas da sua casa “de novo”.
“O
que eu posso fazer? Você deveria ir lá. Estou tão irritada. Como podemos dar um
susto nele?”, diz ela.
O
homem responde: “Nós podemos consertar qualquer coisa. O negócio é que você não
pode se arrepender depois. Tem que ter certeza”.
Ele
lembra que “resolveu” a situação de Ana, uma mulher que foi agredida pelo
marido.
“O marido bateu nela. Ela ligou para a gente.
Eu perguntei se ela tinha certeza (do que queria). Ela tinha.”
A
mulher, então, recusa a oferta de "ajuda" no caso do filho. “Não, eu
não vou fazer isso. Eu estou brincando.”
O
diálogo foi presenciado pelo pesquisador Nicholas Pope, do King’s College
London, que passou dois anos nesta região do Rio estudando a relação entre
moradores e a milícia.
No
bairro onde o diálogo ocorreu, o poder paramilitar permeia cada aspecto da vida
cotidiana e a violência é o meio de resolução dos problemas do dia a dia - dos
mais simples aos mais graves.
“O
instinto natural nessa comunidade que abraçou a milícia é chamar os milicianos
para agir quando há, por exemplo, um jovem fumando maconha, uma pessoa bêbada
sendo inoportuna na rua ou em casos de violência doméstica. A milícia é chamada
a resolver de crimes a comportamentos antissociais”, diz Pope à BBC News
Brasil.
Na
mesma região, moradores de outro bairro, que reúne algumas dezenas de famílias,
têm uma relação completamente diferente com a milícia.
Paramilitares
também controlam o comércio, mas problemas cotidianos graves, como fome e
violência doméstica, são resolvidos com a ajuda de um grupo de mulheres que
fundaram a comunidade décadas atrás e formaram uma rede de apoio.
Elas
criticam a ausência do Estado, mas discordam e resistem ao poder da milícia.
Conseguiram, com uma ação social eficaz, reduzir a dependência da comunidade da
“ajuda” paramilitar.
Em
vez de homens armados, é esse grupo de mulheres, a maioria delas negras, que se
tornou o ponto de apoio e referência para solucionar problemas do bairro.
“Por
meio de laços de solidariedade, essas mulheres conseguiram resistir às pressões
da milícia ao longo do tempo e até mesmo erodir e diminuir formas violentas de
dominação no bairro”, diz Pope.
• Milícia não mantém poder só com coerção
Pope
explica que a milícia não sobrevive apenas de coerção - depende de um apoio
popular conquistado à base de uma relação de dependência. Quanto menor a
dependência, menor o poder da milícia.
Por
isso, os paramilitares oferecem “proteção” e ajuda na solução de problemas. Na
ausência do Estado, tornam-se uma opção de garantia da “ordem” e resolução de
conflitos. Mas às custas de extorsões e violências cotidianas.
“A
milícia não se sustenta apenas com armas e controle territorial pela violência
física. Ela subsiste graças a uma interdependência econômica e apoio social.
Ela depende de renda de aluguéis, de taxas cobradas do comércio local, de as
pessoas usarem seus meios de transporte, da construção de laços com a
comunidade”, explica Pope.
“Se
a milícia não obtém o apoio da população por meio dessa dependência, a
população vai resistir ou abrir brechas para outros grupos tomarem o poder,
sejam eles lideranças de outras milícias ou traficantes.”
No
bairro onde as mulheres assumiram a dianteira na solução de conflitos e
carências sociais, os milicianos encontraram menos espaço para agir.
Elas
recebem as demandas dos moradores e os direcionam para instituições que podem
ajudar, como ONGs, abrigos, o serviço social ou a Defensoria Pública, além de
acolherem elas próprias, com os recursos que têm, as mulheres que precisam de
moradia por causa de violência doméstica.
O
principal vetor dessa rede de solidariedade é comida. Tudo começou com uma
pequena horta comunitária, com legumes e frutas sem agrotóxicos. A horta virou
ponto de encontro para discutir o direito a uma alimentação saudável.
Jovens
e crianças passaram a levar mudas para casa, ajudar na venda dos produtos em
feiras e a cobrar de ONGs e do Estado cestas básicas com alimentos de melhor
qualidade.
Os
adolescentes que participavam dos encontros começaram a trazer outros problemas
para o conhecimento do grupo de mulheres, entre eles dificuldades de
aprendizado na escola e violências sofridas por suas mães em casa.
“Debater
sobre comida é uma forma muito inteligente de fazer política e ação social
nesse ambiente. Porque parece ser algo que não apresenta ameaça. Algo que a
milícia não compreenderia como competição”, diz Pope.
“Mas,
a partir da discussão sobre direito à comida, outros temas entram em jogo. Há
uma troca de conhecimento, a formação de vínculos e de redes de suporte. E é aí
que reside o poder do trabalho sobre a comida que elas fazem.”
• Mas como essas mulheres conseguiram
resistir à milícia?
A
BBC News Brasil conversou com mulheres do grupo, mas, por questões de
segurança, não revela seu nome, do projeto ou do bairro onde vivem.
Elas
chegaram à Zona Oeste décadas atrás, em uma ocupação onde a maioria dos
moradores eram mulheres e crianças.
Desde
o início, a construção de casas, ruas e serviços naquela área foi liderada por
mulheres, embora a milícia também já estivesse se instalando no território.
Esse
trabalho consolidou laços de solidariedade e estimulou a criação de uma rede
para solucionar problemas da comunidade.
“Nós
não trabalhamos com armamentos e comércio. Somos leveza da poesia, música,
educação, então temos passagem. Tem o elemento da ancestralidade também.
Chegamos primeiro. Temos conseguido resistir assim”, explica Juliana*, uma das
mulheres que fazem parte do grupo, à BBC News Brasil.
A
partir da horta e dos encontros regulares de jovens, as mulheres passaram a
oferecer aulas gratuitas para adolescentes em várias disciplinas escolares, com
a participação voluntária de professores.
Aos
poucos, firmaram parcerias com ONGs e órgãos públicos, como a Defensoria, para
resolver diferentes tipos de problemas, como violência doméstica.
“Já
resgatamos várias mulheres em situação de violência. Levamos ao hospital, exigimos
boletim de ocorrência, arrumamos abrigo”, conta Juliana.
A
intenção do grupo em criar programas e redes de apoio não foi, inicialmente,
combater o poder da milícia.
Mas
elas acabaram, como efeito “colateral”, impedindo que os paramilitares
ampliassem suas atividades e influência, como ocorre em muitos bairros da Zona
Oeste, afirma Pope.
“O que foi possível perceber analisando essa
comunidade por dois anos é que atividades políticas e comunitárias como a
dessas mulheres têm o potencial de frear sistemas violentos de liderança,
substituindo soluções violentas por outras formas de resolver conflitos”,
explica Pope.
Amanda*
também integra o grupo e explica por que, na sua visão, as populações de vários
bairros do Rio recorrem às milícias.
“Temos
essa cultura patriarcal de que um homem vai salvar, resolver a situação. Temos
a figura do padre, do pastor. As pessoas vão até eles para resolver problemas
sociais”, diz.
“A
milícia é um braço desse poder, desse modo de pensar soluções. E ela traz o
modo de viver do medo, do pavor, da dependência em ajuda. Queremos mostrar que
o caminho não é viver de ajuda, temos direitos e precisamos lutar por eles.”
• Poder das milícias passa por controle de
comida
Segundo
Pope, controlar o comércio e o acesso à alimentação é uma forma de domínio da
milícia sobre comunidades no Rio de Janeiro.
Com
a venda de alimentos e, em algumas ocasiões, com doação de comida a pedido de
líderes comunitários, os milicianos angariam dinheiro e poder de barganha.
Mas,
durante a pandemia de covid-19, o grupo de mulheres conseguiu criar um sistema
eficiente de arrecadação e distribuição gratuita de cestas básicas com
alimentos saudáveis, ajudando a reduzir a fome em uma das áreas mais afetadas
pela doença.
As
cestas foram entregues também em áreas que vão além de onde moram, alcançando
populações de bairros onde a presença da milícia é mais ostensiva.
Pope
explica que esse projeto, em tempos normais, poderia provocar reações da
milícia, por “invadir” uma seara normalmente controlada pelos paramilitares.
Mas
a pandemia agravou a fome, e as mulheres conseguiram ocupar um espaço antes
dominado por milicianos.
“A milícia tem lidado com alimentação e acesso
a comida por muitos anos. Em circunstâncias normais, a atuação das mulheres
nesse campo poderia ser vista como uma espécie de competição, uma entrada em um
mercado que é deles”, diz Pope.
“Mas
a pandemia foi um período de tamanho caos e crise que promoveu uma oportunidade
para que (o projeto delas ocorresse) sem maiores repercussões. As pessoas
estavam passando fome e passaram a receber ajuda. Era um momento em que seria
mais difícil contestar essa ação social.”
Para
Pope, embora a atuação desse grupo de mulheres tenha alcançado resultados em um
pequeno bairro do Rio, o exemplo serve para pensar políticas amplas de combate
à milícia que não envolvam só ações de segurança pública.
“As
milícias são um sintoma violento da desigualdade no desenvolvimento urbano.
Elas cumprem um papel social, político e econômico nas comunidades onde atuam”,
diz Pope.
“O
trabalho desse grupo de mulheres mostra que é preciso pensar políticas para
substituir a dependência que as pessoas têm da milícia por outras dependências
que não envolvam uma forma violenta de gestão. É sobre reinventar sistemas e
instituições que substituam modelos violentos de controle e coerção por outros
mais justos e inclusivos.”
'Bibi Perigosa', apontada como
articuladora dos ataques no RN, é presa no Rio
Agentes
da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) capturaram, no fim da tarde
deste domingo (2), uma das principais articuladoras dos ataques que
aterrorizaram o Rio Grande do Norte no mês passado. Andreza Cristina Lima
Leitão, conhecida como Bibi Perigosa, estava saindo de um shopping no bairro de
Campo Grande, Zona Oeste da cidade.
No
último dia 31, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flavio Dino, anunciou
uma ajuda de 35 milhões do governo federal além de homens da Força Nacional,
que ficarão no estado por tempo indeterminado.
A
onda de ataques começou no dia 14 de março e impactou a população potiguar até
o dia 25. Bibi Perigosa, uma das chefes da facção que controla o tráfico do
estado, vivia escondida no Rio de Janeiro desde 2020.
A
DRE vinha monitorando a traficante havia uma semana. De acordo com as
investigações, ela ficava escondida na Vila Kennedy. Hoje, quando deixou a
favela de Bangu a caminho de Campo Grande, ela foi interceptada pelos policiais
civis em frente a um shopping. Contra ela havia um mandado de prisão expedido
pela Justiça do Rio Grande do Norte.
“A
Andreza criou um grupo de comunicação entre os criminosos que ela intitulou
‘Companhia dos Artilheiros’, que promoveu verdadeiros atos terroristas no Rio
Grande do Norte, que incluíram assassinatos, roubos em série, depredação de
prédios públicos e incêndios de veículos e residências”, destacou o delegado
assistente da DRE, Rodrigo Coelho.
Fonte:
BBC News Brasil/g1
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