terça-feira, 4 de abril de 2023

Como mulheres conseguiram conter 'com comida' poder da milícia em área dominada do RJ

A BBC News Brasil trocou os nomes das entrevistadas e omitiu detalhes sobre onde atuam para garantir sua segurança.

Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma mulher conta para um integrante da milícia que o filho dela furtou coisas da sua casa “de novo”.

“O que eu posso fazer? Você deveria ir lá. Estou tão irritada. Como podemos dar um susto nele?”, diz ela.

O homem responde: “Nós podemos consertar qualquer coisa. O negócio é que você não pode se arrepender depois. Tem que ter certeza”.

Ele lembra que “resolveu” a situação de Ana, uma mulher que foi agredida pelo marido.

 “O marido bateu nela. Ela ligou para a gente. Eu perguntei se ela tinha certeza (do que queria). Ela tinha.”

A mulher, então, recusa a oferta de "ajuda" no caso do filho. “Não, eu não vou fazer isso. Eu estou brincando.”

O diálogo foi presenciado pelo pesquisador Nicholas Pope, do King’s College London, que passou dois anos nesta região do Rio estudando a relação entre moradores e a milícia.

No bairro onde o diálogo ocorreu, o poder paramilitar permeia cada aspecto da vida cotidiana e a violência é o meio de resolução dos problemas do dia a dia - dos mais simples aos mais graves.

“O instinto natural nessa comunidade que abraçou a milícia é chamar os milicianos para agir quando há, por exemplo, um jovem fumando maconha, uma pessoa bêbada sendo inoportuna na rua ou em casos de violência doméstica. A milícia é chamada a resolver de crimes a comportamentos antissociais”, diz Pope à BBC News Brasil.

Na mesma região, moradores de outro bairro, que reúne algumas dezenas de famílias, têm uma relação completamente diferente com a milícia.

Paramilitares também controlam o comércio, mas problemas cotidianos graves, como fome e violência doméstica, são resolvidos com a ajuda de um grupo de mulheres que fundaram a comunidade décadas atrás e formaram uma rede de apoio.

Elas criticam a ausência do Estado, mas discordam e resistem ao poder da milícia. Conseguiram, com uma ação social eficaz, reduzir a dependência da comunidade da “ajuda” paramilitar.

Em vez de homens armados, é esse grupo de mulheres, a maioria delas negras, que se tornou o ponto de apoio e referência para solucionar problemas do bairro.

“Por meio de laços de solidariedade, essas mulheres conseguiram resistir às pressões da milícia ao longo do tempo e até mesmo erodir e diminuir formas violentas de dominação no bairro”, diz Pope.

•        Milícia não mantém poder só com coerção

Pope explica que a milícia não sobrevive apenas de coerção - depende de um apoio popular conquistado à base de uma relação de dependência. Quanto menor a dependência, menor o poder da milícia.

Por isso, os paramilitares oferecem “proteção” e ajuda na solução de problemas. Na ausência do Estado, tornam-se uma opção de garantia da “ordem” e resolução de conflitos. Mas às custas de extorsões e violências cotidianas.

“A milícia não se sustenta apenas com armas e controle territorial pela violência física. Ela subsiste graças a uma interdependência econômica e apoio social. Ela depende de renda de aluguéis, de taxas cobradas do comércio local, de as pessoas usarem seus meios de transporte, da construção de laços com a comunidade”, explica Pope.

“Se a milícia não obtém o apoio da população por meio dessa dependência, a população vai resistir ou abrir brechas para outros grupos tomarem o poder, sejam eles lideranças de outras milícias ou traficantes.”

No bairro onde as mulheres assumiram a dianteira na solução de conflitos e carências sociais, os milicianos encontraram menos espaço para agir.

Elas recebem as demandas dos moradores e os direcionam para instituições que podem ajudar, como ONGs, abrigos, o serviço social ou a Defensoria Pública, além de acolherem elas próprias, com os recursos que têm, as mulheres que precisam de moradia por causa de violência doméstica.

O principal vetor dessa rede de solidariedade é comida. Tudo começou com uma pequena horta comunitária, com legumes e frutas sem agrotóxicos. A horta virou ponto de encontro para discutir o direito a uma alimentação saudável.

Jovens e crianças passaram a levar mudas para casa, ajudar na venda dos produtos em feiras e a cobrar de ONGs e do Estado cestas básicas com alimentos de melhor qualidade.

Os adolescentes que participavam dos encontros começaram a trazer outros problemas para o conhecimento do grupo de mulheres, entre eles dificuldades de aprendizado na escola e violências sofridas por suas mães em casa.

“Debater sobre comida é uma forma muito inteligente de fazer política e ação social nesse ambiente. Porque parece ser algo que não apresenta ameaça. Algo que a milícia não compreenderia como competição”, diz Pope.

“Mas, a partir da discussão sobre direito à comida, outros temas entram em jogo. Há uma troca de conhecimento, a formação de vínculos e de redes de suporte. E é aí que reside o poder do trabalho sobre a comida que elas fazem.”

•        Mas como essas mulheres conseguiram resistir à milícia?

A BBC News Brasil conversou com mulheres do grupo, mas, por questões de segurança, não revela seu nome, do projeto ou do bairro onde vivem.

Elas chegaram à Zona Oeste décadas atrás, em uma ocupação onde a maioria dos moradores eram mulheres e crianças.

Desde o início, a construção de casas, ruas e serviços naquela área foi liderada por mulheres, embora a milícia também já estivesse se instalando no território.

Esse trabalho consolidou laços de solidariedade e estimulou a criação de uma rede para solucionar problemas da comunidade.

“Nós não trabalhamos com armamentos e comércio. Somos leveza da poesia, música, educação, então temos passagem. Tem o elemento da ancestralidade também. Chegamos primeiro. Temos conseguido resistir assim”, explica Juliana*, uma das mulheres que fazem parte do grupo, à BBC News Brasil.

A partir da horta e dos encontros regulares de jovens, as mulheres passaram a oferecer aulas gratuitas para adolescentes em várias disciplinas escolares, com a participação voluntária de professores.

Aos poucos, firmaram parcerias com ONGs e órgãos públicos, como a Defensoria, para resolver diferentes tipos de problemas, como violência doméstica.

“Já resgatamos várias mulheres em situação de violência. Levamos ao hospital, exigimos boletim de ocorrência, arrumamos abrigo”, conta Juliana.

A intenção do grupo em criar programas e redes de apoio não foi, inicialmente, combater o poder da milícia.

Mas elas acabaram, como efeito “colateral”, impedindo que os paramilitares ampliassem suas atividades e influência, como ocorre em muitos bairros da Zona Oeste, afirma Pope.

 “O que foi possível perceber analisando essa comunidade por dois anos é que atividades políticas e comunitárias como a dessas mulheres têm o potencial de frear sistemas violentos de liderança, substituindo soluções violentas por outras formas de resolver conflitos”, explica Pope.

Amanda* também integra o grupo e explica por que, na sua visão, as populações de vários bairros do Rio recorrem às milícias.

“Temos essa cultura patriarcal de que um homem vai salvar, resolver a situação. Temos a figura do padre, do pastor. As pessoas vão até eles para resolver problemas sociais”, diz.

“A milícia é um braço desse poder, desse modo de pensar soluções. E ela traz o modo de viver do medo, do pavor, da dependência em ajuda. Queremos mostrar que o caminho não é viver de ajuda, temos direitos e precisamos lutar por eles.”

•        Poder das milícias passa por controle de comida

Segundo Pope, controlar o comércio e o acesso à alimentação é uma forma de domínio da milícia sobre comunidades no Rio de Janeiro.

Com a venda de alimentos e, em algumas ocasiões, com doação de comida a pedido de líderes comunitários, os milicianos angariam dinheiro e poder de barganha.

Mas, durante a pandemia de covid-19, o grupo de mulheres conseguiu criar um sistema eficiente de arrecadação e distribuição gratuita de cestas básicas com alimentos saudáveis, ajudando a reduzir a fome em uma das áreas mais afetadas pela doença.

As cestas foram entregues também em áreas que vão além de onde moram, alcançando populações de bairros onde a presença da milícia é mais ostensiva.

Pope explica que esse projeto, em tempos normais, poderia provocar reações da milícia, por “invadir” uma seara normalmente controlada pelos paramilitares.

Mas a pandemia agravou a fome, e as mulheres conseguiram ocupar um espaço antes dominado por milicianos.

 “A milícia tem lidado com alimentação e acesso a comida por muitos anos. Em circunstâncias normais, a atuação das mulheres nesse campo poderia ser vista como uma espécie de competição, uma entrada em um mercado que é deles”, diz Pope.

“Mas a pandemia foi um período de tamanho caos e crise que promoveu uma oportunidade para que (o projeto delas ocorresse) sem maiores repercussões. As pessoas estavam passando fome e passaram a receber ajuda. Era um momento em que seria mais difícil contestar essa ação social.”

Para Pope, embora a atuação desse grupo de mulheres tenha alcançado resultados em um pequeno bairro do Rio, o exemplo serve para pensar políticas amplas de combate à milícia que não envolvam só ações de segurança pública.

“As milícias são um sintoma violento da desigualdade no desenvolvimento urbano. Elas cumprem um papel social, político e econômico nas comunidades onde atuam”, diz Pope.

“O trabalho desse grupo de mulheres mostra que é preciso pensar políticas para substituir a dependência que as pessoas têm da milícia por outras dependências que não envolvam uma forma violenta de gestão. É sobre reinventar sistemas e instituições que substituam modelos violentos de controle e coerção por outros mais justos e inclusivos.”

 

       'Bibi Perigosa', apontada como articuladora dos ataques no RN, é presa no Rio

 

Agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) capturaram, no fim da tarde deste domingo (2), uma das principais articuladoras dos ataques que aterrorizaram o Rio Grande do Norte no mês passado. Andreza Cristina Lima Leitão, conhecida como Bibi Perigosa, estava saindo de um shopping no bairro de Campo Grande, Zona Oeste da cidade.

No último dia 31, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flavio Dino, anunciou uma ajuda de 35 milhões do governo federal além de homens da Força Nacional, que ficarão no estado por tempo indeterminado.

A onda de ataques começou no dia 14 de março e impactou a população potiguar até o dia 25. Bibi Perigosa, uma das chefes da facção que controla o tráfico do estado, vivia escondida no Rio de Janeiro desde 2020.

A DRE vinha monitorando a traficante havia uma semana. De acordo com as investigações, ela ficava escondida na Vila Kennedy. Hoje, quando deixou a favela de Bangu a caminho de Campo Grande, ela foi interceptada pelos policiais civis em frente a um shopping. Contra ela havia um mandado de prisão expedido pela Justiça do Rio Grande do Norte.

“A Andreza criou um grupo de comunicação entre os criminosos que ela intitulou ‘Companhia dos Artilheiros’, que promoveu verdadeiros atos terroristas no Rio Grande do Norte, que incluíram assassinatos, roubos em série, depredação de prédios públicos e incêndios de veículos e residências”, destacou o delegado assistente da DRE, Rodrigo Coelho.

 

Fonte: BBC News Brasil/g1

 

Nenhum comentário: