Brasil 2023:
margens de golpes e lutas
A
posse de Lula em seu terceiro mandato presidencial, após vencer Jair Bolsonaro
e enfim tomar o poder mesmo sob ameaças de golpe, revela a busca por resgatar
imediatamente o padrão político já existente nos anteriores governos petistas.
Essa mudança é apresentada com alguma urgência, dado o cenário de retrocesso
social promovido e legado pela extrema direita. A tentativa de empreender tal
câmbio político se dá agora, entretanto, em um contexto da reprodução social
brasileira cada vez mais agudizado e beligerante em sua afirmação e sua
demarcação social, institucional e ideológica.
É
preciso pensar o momento presente sob a perspectiva do patamar estrutural no
qual se estabelece. Em Crise e golpe1, proponho que a forja do Brasil
contemporâneo advém mais decisivamente de 1964 que de 1988. A ditadura militar
consolidou o arranjo específico da exploração econômica, do controle de classe
e dos poderes, de instituições, grupos e aparelhos dominantes do capita- lismo
brasileiro. A saída da ditadura, simbolizada pela Constituição Federal de 1988,
não foi a superação do momento anterior, mas sua continuidade, ainda que
em outro diapasão. Desde então, assentou-se o limite máximo de mudança: uma
parcial distribuição econômica sem atentar contra a acumulação das frações das
classes burguesas nacionais e internacionais; inclusões sem destruição dos
controles tradicionalmente postos; política necessariamente de conciliação, sem
margem expressiva para confronto e luta. Permanecem intocados os poderes
políticos, militares e dos aparelhos institucionais. Bloqueada a afirmação das
ideias de esquerda e da mobilização das massas, está protegida e intocada
também a afirmação da ideologia capitalista.
Nesse
quadro de domínio social há tempos estabilizado, o terceiro go- verno Lula
buscará retomar a navegação política pelas margens esquerdas desse mesmo leito
do rio da formação social brasileira, forjado em 1964 e parcialmente retificado
em 1988. Nos governos eleitos no pós-ditadura – todos neoliberais –, as margens
esquerdas da governança brasileira, representadas pelo Partido dos
Trabalhadores, configuraram uma política liberal, institucional e sem maiores
afirmações de luta e de tensionamento das contradições. Nos dois primeiros
mandatos de Lula e nos dois governos de Dilma, ao contrário dos outros desse
período – Collor, Itamar, Cardoso, Temer e Bolsonaro –, deu-se um freio nas
privatizações, mas não na retomada das empresas privatizadas; ocorreu um maior
investimento distributivo a classes e grupos mais vulneráveis, mas não o
enfrentamento de classes; houve a abertura à inclusão e às declarações de res-
peito aos direitos humanos, mas não a possibilidade de afirmação de qualquer
luta socialista. De Collor a Bolsonaro, a natural margem do neoliberalismo de
direita; de Lula a Dilma e de novo a Lula, a frágil e sempre golpeada margem do
neoliberalismo de esquerda.
·
O
que se mantém do golpe (e dos golpes)
Se
há décadas é patente que 1964 se perpetuou em 1988, resta indagar o que de 2016
se perpetua hoje. O discurso otimista do liberalismo de direita e de esquerda
enxerga, nos últimos anos, vitórias substanciais contra as mazelas golpistas
havidas em meados da década de 2010. Tal discurso tem como foco,
principalmente, o campo do direito: o lavajatismo parece enterrado; o STF, que
por maioria apoiou o golpe de 2016, teve depois papel decisivo no bloqueio de
excessos do bolsonarismo. Se assim o é, as instituições estão de novo a salvo,
e, então, disso decorreria que o golpe acabou e que as esquerdas e o novo
governo de Lula deveriam tomar o período imediatamente anterior como uma
infeliz exceção. Mais uma vez, a possibilidade dada e incentivada ao
progressismo seria a de compactuar com as instituições, defendê-las e não
tensioná-las. O “leninismo” de investir contra o sistema caberia apenas à
direita. À esquerda, a defesa da ordem.
De
outro padrão é a investigação crítica – concreta e material – sobre o havido em
2016. Se 1964 sobrepuja 1988, então 2016 é mais um efeito necessário do padrão
de coesão do domínio político-econômico-institucional-ideológico de 1964
que propriamente uma fissura inesperada ou mesmo remendável de 1988. O golpe de
2016, simbolizado pelo impeachment de Dilma Rousseff,
representa a reiteração da prevalência das mesmas frações burguesas dominantes
do país, rentistas, agrárias e subordinadas relativamente ao imperialismo. O
antigetulismo da burguesia brasileira dos meados do século X X, que forjou a
ditadura militar, é, com as devidas variações circunstanciais, o mesmo padrão
mantido no antipetismo. O arcabouço ideológico, valorativo e cultural é também
igual: anticomunismo; educação técnica contra a crítica; religião contra
laicismo; conservadorismo contra o progressismo de costumes; meios de
comunicação de massa controlados por grupos empresariais de direita.
Institucionalmente, o Estado se mantém como arrematado em 1964: em termos
jurídicos, combatente das esquerdas e das classes e grupos desfavorecidos e, em
termos políticos, domesticado pela cadeia dos negócios capitalistas imediatos.
Por fim, o domínio militar: 1988 não subjugou 1964; 2016 desnudou a plena
continuidade entre o poder aberto e insubordinável das armas tanto na ditadura
quanto na democracia, sem qualquer nome expressivo condenado desde a ditadura
até hoje e sem qualquer alteração de rumo na ideologia e na orientação das
Forças Armadas como instituição privilegiada de opressão do inimigo interno. De
Costa e Silva a Sylvio Frota até chegar a Augusto Heleno, a estrutura do poder
militar, conforme a margem de extrema direita dada pela ditadura, se mantém.
Economicamente
preservado sob inexorável política neoliberal; ideologicamente subordinado, sem
qualquer confronto maiúsculo na batalha das ideias; política e juridicamente
refém dos termos institucionais; militarmente subjugado; o Brasil de 2023, do
terceiro governo Lula, não venceu 1964 nem 2016: somou um golpe a outro.
·
A
saída do bolsonarismo
O
governo bolsonarista e seu desastre histórico só foi possível em razão de uma
longa e induzida decantação social que, ao cabo, gerou no país uma sufi- ciente
coesão de extrema direita. No século XXI, a politização do povo brasileiro foi
e tem sido plenamente de direita. As ideias que se afirmam com orgulho e se massificam
por meio de aparelhos ideológicos são conservadoras/reacionárias.
Não
houve nem há qualquer fala maiúscula dos governos de esquerda em favor do
socialismo, ficando tal reclame adstrito a grupos bastante residuais; só há a
afirmação do capitalismo como horizonte político. E o amálgama de tal formação
de direita se dá em plena consonância com os específicos interesses da
burguesia nacional, latifundiária, financista e regressista na
industrialização.
Institucionalmente,
o combate à esquerda é também o gozo de vitória das afirmações oportunistas da
direita – impeachment de Rousseff por “pedalada fiscal”, mas blindagem de Temer
e Bolsonaro; prisão de Lula mediante teatro jurídico escabroso, mas custos
irrisórios aos agentes da operação Lava Jato após a exposição de seus crimes
por meio da revelação dos arquivos de suas conversas, a chamada Vaza Jato. O
Estado, janela de oportunidades para negócios políticos e criminosos variados,
amalgamou de especuladores a desmatadores e milicianos. Militarmente, deu-se
plano, logística, ameaça e blindagem a todo o movimento regressista resultante
do golpe de 2016. Assim, forjou-se um núcleo social decisivo entre banqueiros,
especuladores, fazendeiros, donos de meios de comunicação de massa, militares,
juízes, promotores, milicianos e religiosos, grassando também em expressivas
parcelas das classes médias e das classes trabalhadoras. Tal coesão derrubou
Dilma Rousseff, sustentou Michel Temer, elegeu, idolatrou e blindou Jair
Bolsonaro mesmo sob medonha regressão econômica, social e cultural e após
centenas de milhares de vítimas mortas pela pandemia.
Foram
os efeitos colaterais de tal combinação os responsáveis por permitir algum
descolamento parcial da margem política de extrema direita e, adiante, a
vitória de Lula. Ainda que se reconheça a contribuição da valorosa resistência
de juristas de esquerda – mais concentrados na advocacia –, foi efetivamente
com a Vaza Jato que se desmontou a Lava Jato, não com um eventual abrir da
consciência jurídica dos tribunais e procuradores. Lula se torna candidato não
por uma correção dos rumos do golpe advinda de luta, mas pelos rejeitos
inesperados da violenta e ilegal opressão institucional. No entanto, se a
política e o direito golpistas amargaram contraditas colaterais, outros setores
golpistas que não as sofreram mantiveram-se dominantes e intocados naquilo que
é substancial, como os grupos militar e o religioso reacionário.
Dois
setores orgânicos ao golpe de 2016 tiveram câmbios relativos que os levaram a
uma parcial saída da margem de extrema direita. Alguns meios de comunicação de
massa que lideraram a derrubada dos governos do PT sofreram oposições
bolsonaristas, sendo a Globo seu mais patente caso, de sorte que,
provisoriamente, ao fim das eleições de 2022, pôs-se em instável alinhamento a
Lula. No plano internacional, a mudança de governo nos Estados Unidos – de
Donald Trump para Joe Biden – desalinhou o acoplamento imediato de
Jair
Bolsonaro e da extrema direita brasileira com as frações do poder governamental
estadunidense. O golpe brasileiro, submetido ao imperialismo e a ele plenamente
acorde no plano implícito e mediato, sofreu o revés no âmbito dos apoios
explícitos e imediatos.
E,
fornecendo harmônico contraponto à sinfonia dos efeitos colaterais do golpe, as
esquerdas. O PT operou os anos de golpe sem vir sistematicamente a público
nomeá-lo como tal, sem expressiva mobilização de resistência nem de
conscientização social. As lutas foram anunciadas contra os efeitos do golpe –
desemprego, inflação, fome, carestia, preço dos combustíveis e do gás –, não
contra o golpe em si ou o domínio econômico, político e militar. A deliberada
estratégia de não nomeação dos fenômenos políticos havidos fez com que as
eleições de 2022 fossem disputadas pela esquerda majoritária em termos despolitizantes,
recorrendo a contrastes de qualidade de vida e de consumo como métrica de
orientação ao voto – picanha e cerveja dos governos de esquerda contra miséria
dos governos de direita. Em contraste, a massa de politizados direta e
explicitamente pela direita foi enorme. Ao reclame da direita não se dá
contraposição por parte da esquerda que, por ser liberal e antissocialista – em
favor da ordem e das instituições do capital –, não encontra linha de
discursividade imediata em momentos nos quais sofre golpe.
Por
não falar contra a ordem que a persegue, à esquerda restam apenas os afetos do
desapontamento, da incompreensão e do sentimento de sua traição pela burguesia
e pelas instituições, de sorte que, como proposição de horizontes, há somente a
afirmação dos bons efeitos de suas políticas públicas. Assim, 2022 termina com
a vitória da esquerda por estreita margem, com a direita expressivamente
politizada e mobilizada e com a esquerda ideologicamente despolitizada. Sem
armas de luta e de coesão ideológica da sociedade, sobram para a esquerda as
eventuais boas entregas de políticas públicas, num cenário de crise econômica
neoliberal brasileira e mundial que lhe permite estreito espaço de boas ações a
partir do sistema de exploração e acumulação já dado – e que busca manter e
defender.
·
O
terceiro governo Lula
A
maneira pela qual o PT e as esquerdas majoritárias no plano institucional
resistiram ao golpe de 2016 foi também aquela como ganharam as eleições de 2022
e puseram em marcha o início do governo em 2023. Sem politização, sem reclamo
expressivo nem afirmação ideológica de esquerda, apostando principalmente na
comparação da virtude de seus agentes e das qualidades de suas ações
governamentais em face do descalabro da extrema direita, buscando ampliar o arco
de alianças para diluir eventuais contradições e conflitos sob uma confluência
arbitrada ao centro, o terceiro governo Lula buscou se moldar,
fundamentalmente, sob o dístico de uma frente ampla.
A
confluência ao centro, mantendo-se tanto pontas de direita liberal quanto de
esquerda liberal, desnuda uma estratégia de articulação entre dinâmicas e
manutenções. Excluída qualquer hipótese de câmbio estrutural revolucionário da
sociedade – a esquerda institucional e governante bloqueia mais uma vez, desde a
saída da ditadura, qualquer clamor efetivamente mais à esquerda –, também se
pretende eliminar do cenário os resíduos de extrema direita manifestados pelo
golpe de 2016, embora não suas causas. A nomeação politicamente mais espantosa
do ministério de Lula revela tanto o propósito de contemporização quanto a
inviabilidade prática de afirmação institucional progressista mediante a
continuidade de tal padrão. José Múcio, escolhido ministro da Defesa para o
agrado militar, vê sua deliberada política de não enfrentamento das Forças
Armadas se esvair uma semana após a posse, quando eclode a grave crise da
intentona golpista que tomou os palácios governamentais de Brasília em 8 de
janeiro. No quadro geral do novo governo, o central do domínio burguês se
mantém. Políticos, juristas e militares não serão penalizados pelo golpe de
2016, e suas instituições não serão reformadas. Não haverá disputa ideológica
substancial contra a direita.
Ministérios
vitais ao capital, como o da Agricultura, continuam sob controle direto da
burguesia. Os da área econômica são salomonicamente divididos entre posições
neoliberais de esquerda e de direita, permitindo decisões e ajustes conforme
dinâmicas de disputa, dado não haver diretriz ideológica demarcada; o
pragmatismo, não um programa consistente, será a marca da construção da
política econômica. Após anos de vitórias fáceis e vícios ainda mais largos à
burguesia e aos rentistas, haverá dificuldades substanciais em cambiar a
economia da margem direita para a margem esquerda do neoliberalismo. De outro
lado, posicionadas já ao centro do terceiro governo Lula, defesas como a do
meio ambiente: combate aos desmatamentos, mas não à sua causa, o agronegócio. E
à esquerda, então, reservam-se os ministérios diretamente ligados a políticas
públicas na área social. Em termos mais abertos de disputa, sem grande medo de
contradita conservadora, afirmam-se algumas das lutas institucionais liberais
de esquerda – direitos humanos, gênero, raça, povos originários. Tal
polarização dos direitos individuais à esquerda permitirá inclusive ao terceiro
governo Lula apresentar-se com alguma nitidez progressista em face da
comparação com os direitos sociais cuja luta será menos acalentada pelo governo
de forma expressiva – a exemplo da não revogação do fundamental das reformas
trabalhistas e previdenciárias neoliberais ocorridas com o golpe.
No
plano econômico, o governo Lula bloqueia futuras privatizações, em- bora não as
concessões nem os instrumentos de parcerias público-privadas. E, mais
decisivamente, não retoma estatais privatizadas nem reconfigura de modo
soberano ativos como o petróleo. No nível dos arranjos econômicos, não
procederá à reforma agrária, mantendo-se dependente dos humores do agronegócio,
com perfil latifundiário reacionário. A industrialização é declarada desejada,
mas as políticas utilizadas para tal mudança de padrão econômico burguês são de
baixa intensidade, residuais ou mesmo pífias. No plano financeiro, no
fundamental, mantêm-se intocados os instrumentos de governança neoliberal e a apropriação
do orçamento pela especulação e pelo rentismo. Assim, trata-se de um governo
que busca se delinear, se êxito obtiver, pela margem esquerda do
neoliberalismo. Mantém o regime de acumulação capitalista pós-fordista,
neoliberal. Não expande seu flagelo e, em caso de sucesso, combate alguns de
seus efeitos.
É
possível que os anos de golpe tenham destruído algumas das ilusões das
esquerdas liberais brasileiras. Até 2016, havia, ideologicamente, uma plena
sagração do republicanismo e do respeito à legalidade e à imparcialidade e uma
neutralidade das instituições por parte das esquerdas governantes – o que chamo
de caminho filosófico dos juspositivismos. Por razões de sobrevivência e mínimo
realismo político, tal visão tende a ser em parte rompida – direcionando-se
incidentalmente aos não juspositivismos e à crítica marxista –, embora as no-
meações dos comandantes das Forças Armadas por Lula – que seguem a lista de
antiguidade – revelem ainda forte persistência da ideologia jurídica no PT. É
verdade que o golpe tende a ser absorvido e processado pelas esquerdas libe-
rais brasileiras com algum grau de crítica a mais que aquela existente até
2016, mas não suficiente a ponto de romper com a própria defesa do capitalismo,
do liberalismo e da ordem burguesa. Pacificação e união nacional tendem a ser
os imediatos substitutos ideológicos de republicanismo.
Com
a posse e o início de governo de Lula, sob contraposições abertas da extrema
direita, tem-se agora a sobrepujança quantitativamente maior das águas de um rio
em face de outro, no encontro do Negro e Solimões da política brasileira.
Esquerda liberal e extrema direita correm lado a lado no curso de uma larga
bacia amazônica do espaço político majoritário nacional cujas margens demarcam.
O rio da política brasileira da segunda e da terceira décadas do século X XI
tem apresentado poucas águas distintas daquela de um sempre golpeado,
fraquejado e idealista liberalismo de esquerda e da constante e reavivada lama
da extrema direita. Falta à geografia do capitalismo a chuva das lutas
socialistas. O curso das distintas águas políticas do Brasil atual, que se
encontram e andam em paralelo, é tanto dinâmico quanto estável: seus diferentes
rios originais, que brigam entre si, em algum momento se misturam e
praticamente não mais se especificam até seu desaguadouro necessário na foz da
reprodução do capital.
Fonte:
Por Alysson Leandro Mascaro, para o Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário