A 'heresia de
Kepler': a forma geométrica que fez o astrônomo questionar Deus
A
missão do matemático, astrônomo e astrólogo alemão Johannes Kepler, a serviço
do imperador Rodolfo 2° de Habsburgo, era descobrir as leis usadas pelo Criador
para dar forma ao Universo.
Mas
Kepler (1571-1630) enfrentou uma incongruência, uma peça que não se encaixava
na lógica e questionava a onipotência de Deus. Essa incongruência era o
heptágono (figura geométrica de sete lados).
O
matemático grego Euclides renunciou a ela pela sua natureza extravagante, e
Kepler assegurou que a figura geométrica "não poderia ser construída por
uma mente de forma consciente".
"A
Geometria é um dos reflexos eternos da mente de Deus", escreveu Johannes
Kepler em Mysterium Cosmigraphicum ("O mistério sagrado do cosmos",
em tradução livre).
"Eu
me proponho a demonstrar que Deus, ao criar o Universo e estabelecer a ordem do
cosmos, teve ante seus olhos os cinco sólidos regulares da geometria conhecidos
desde os tempos de Pitágoras e Platão", afirma Kepler, "e que Ele
fixou, de acordo com suas dimensões, o número dos astros, suas proporções e as
relações de seus movimentos."
·
O
esqueleto do universo segundo Kepler
Para
Kepler, o Cosmos era ordenado em uma grande esfera e foi construído com a
expansão dos poliedros regulares. Existem apenas cinco poliedros ou sólidos
regulares: o tetraedro, o cubo, o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro.
Dentro
da órbita ou esfera de Saturno, Kepler inscreveu um cubo; dentro deste, a
esfera de Júpiter seria circunscrita a um tetraedro. Sobre o tetraedro, ele
situou a esfera de Marte.
Entre
as esferas de Marte e da Terra, encaixava-se o dodecaedro; entre a Terra e
Vênus, o icosaedro; entre Vênus e Mercúrio, o octaedro.
E,
no centro de todo o sistema, o astro-rei, o Sol. Kepler construiu o esqueleto
da harmonia das esferas reunindo poliedros.
·
Mas
o heptágono não se encaixa
Para
dar forma à harmonia das esferas, Kepler detalha, na sua obra Harmonices mundi
("Harmonia do mundo", em tradução livre), o desenvolvimento
geométrico dos polígonos, e entre eles o heptágono - uma singularidade que
infringia a harmonia.
Na
sua obra, Kepler afirma que essa figura não poderia ser construída
conscientemente, nem é possível dar-lhe uma forma com os métodos utilizados
pelos matemáticos Durero, Cardano, Clavio ou Bürgi. Ele duvidava se realmente
seria possível criá-lo ou se ele foi conseguido de maneira fortuita.
Kepler
baseava sua argumentação científica na impossibilidade geométrica de construção
do heptágono com compasso e esquadro. A construção dessa figura não é explicada
nos Elementos de Euclides, nem no Almagesto, a obra mais conhecida de Ptolomeu.
Kepler
chegou a afirmar que a máquina celeste não foi criada como um "animal
divino, mas como um relógio regido por uma força que pode ser expressa
matematicamente". Ele estava questionando o Deus Geômetra, muito popular
na Idade Média.
·
As
órbitas elípticas dos planetas
Havia
outros pontos que não se encaixavam na idealização do movimento circular dos
planetas.
Kepler
não conseguia explicar matematicamente por que, no início de novembro (no
hemisfério norte), o entardecer cai rapidamente e o amanhecer se adianta em
alta velocidade em meados de fevereiro. Mas, convencido de que todo o cosmos e
suas circunstâncias podiam ser explicados com a matemática, ele conseguiu
solucionar o enigma.
Depois
de estudar por cinco anos as observações exaustivas e meticulosas dos planetas
pelo astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), em sua tentativa de ajustar
o trajeto de Marte a diversas curvas, Kepler publicou, em 1609, as duas
primeiras das suas três leis do movimento planetário.
A
primeira lei estabelece que "a órbita de todos os planetas é uma elipse
com o Sol em um dos seus focos". E esta descoberta foi fundamental para a
compreensão do Universo.
Mas
ela também representava uma reviravolta nos interesses de Kepler. Como era
possível que o criador escolhesse uma elipse e não um círculo perfeito?
Na
mente de Kepler, nunca houve intenção de questionar o divino Arquiteto do
cosmos. Mas, no outro lado do mundo, nas Filipinas, um missionário dominicano
estudou detalhadamente a obra de Kepler e identificou a heresia: a opinião que
Kepler havia manifestado sobre o heptágono questionava o Criador.
·
A
heresia de Kepler
O
frei Ignacio Muñoz Pinciano (1608-1685) escreveu seu Manifesto Geométrico
(1684), no qual descreve um método de traçado do heptágono, frente ao
desenvolvido na proposição da figura determinada por Kepler. Para o frade, isso
significava que Kepler não só estava errado, como também que sua obra era uma
heresia.
O
frade acreditava que conseguiria construir a figura usando triângulos isósceles
(que tem dois lados iguais), refutando Kepler que tinha considerado essa tarefa
impossível. E o frei dominicano encerra a obra indicando que Kepler já havia
sido denunciado pela Inquisição, mas não por Harmonices mundi — e que, devido à
sua tese sobre o heptágono, a obra também deveria ser condenada.
Segundo
o frade, a obra de Kepler leva a pensar que a Sabedoria eterna de Deus não é
suficiente para construir a figura do heptágono e, portanto, não teria
condições de ser reconhecida cientificamente.
Muñoz
Pinciano baseava seu raciocínio no princípio da Escola Metafísica, segundo a
qual o que não tem entidade, nem essência, nem condições, nem propriedades, não
pode existir.
O
Manifesto Geométrico foi uma apologia contra a incognoscibilidade - a qualidade
do que é difícil de conhecer - do heptágono. Na Gênese, a Criação é finita — os
seis dias famosos e o sétimo dia de descanso. A crença no indeterminado gerou o
arroubo inquisidor do frade filipino.
Fonte:
Por Josep Lluis i Ginovart e Cinta Lluis Teruel, para The Conversation
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