terça-feira, 4 de abril de 2023

A curiosa ilha que 'muda de país' duas vezes por ano

Dos elevados mirantes sobre a cidade de San Sebastián, no País Basco (Espanha), os visitantes podem ver um dos caminhos bíblicos mais antigos e românticos do mundo: o Caminho de Santiago de Compostela.

O trajeto epopeico até o túmulo de São Tiago, no extremo noroeste da Espanha, é bastante frequentado. Ele atrai e desperta o interesse das pessoas há séculos.

Todos os anos, centenas de milhares de andarilhos e peregrinos vêm de longe até aqui, mas eu não sou um deles. Em vez dos vales profundos que serpenteiam em direção às igrejas, meu destino é outro, completamente diferente: um local estranho e desabitado chamado Ilha dos Faisões.

Tentando entender melhor o País Basco Espanhol, encontrei por acaso esta faixa de terra com menos de um hectare enquanto pesquisava os mapas ilustrados dos Pirineus Ocidentais. Ela fica no Rio Bidasoa (perto da foz, no Golfo de Biscaia), entre as cidades fronteiriças de Hendaye, na França, e Irun, na Espanha.

A intrigante Ilha dos Faisões é governada por cada uma das nações vizinhas a cada seis meses, de forma alternada. É um registro histórico da rivalidade entre os dois países.

Irregularidades fronteiriças podem ser encontradas em toda a Europa — e em outras partes do mundo. Mas uma ilha com 200 metros de comprimento que troca de país duas vezes por ano é algo profundamente estranho. E, curiosamente, poucas pessoas sabem alguma coisa sobre a Ilha dos Faisões.

·         História por toda parte

Aprendi sobre esta ilha misteriosa antes de chegar para vê-la de perto. Eu estava na companhia de Pía Alkain Sorondo, arqueóloga que promove tours a pé pela região. Como a maioria das pessoas nesta parte da Espanha, ela se sente na obrigação de manter as histórias do País Basco vivas — não importa o quanto inusitadas possam ser.

"Adoro contar a história do nosso patrimônio", conta Sorondo, enquanto caminhamos pela fronteira franco-espanhola a leste de San Sebastián. De certa forma, estamos voltando no tempo.

Deixamos para trás diversos terrenos industriais, prédios de apartamentos e bares de pintxos — um tipo de aperitivo servido no pão, típico do País Basco. À nossa frente, estão os restos arqueológicos de uma antiga ponte construída pelos romanos e a ilha propriamente dita.

"A história está escondida ao longo das margens deste rio, mas a maioria das pessoas anda por aqui sem saber de nada. É isso que estou tentando mudar", afirma ela.

Ao chegar ao nosso destino (um parque em frente à ilha, nas margens do rio), nos deparamos com uma vista especial. A Ilha dos Faisões, com formato elíptico e coberta de árvores, fica a apenas 10 metros do lado espanhol do rio, e a 20 metros do lado francês.

Sua importância histórica é tão grande que raramente ela é aberta aos visitantes. No centro, há um enorme monumento, parecido com uma lápide, com inscrições. Ele dá uma ideia do peso dos séculos de história do local. Imponente, o monumento celebra a reunião onde foi negociado o Tratado dos Pireneus, que selou a paz entre a Espanha e a França em 1659.

"Aprender a história por trás deste local é como uma descoberta", conta Sorondo. "É quase uma ilha-fantasma."

Ao longo da história, a Ilha dos Faisões recebeu uma série de nomes diferentes. Para começar, o nome atual — Isla de los Faisanes em espanhol, Faisai Uhartea em basco ou Île des Faisans, em francês — é um erro.

"Não existem faisões na Ilha dos Faisões", reclamou o romancista francês Victor Hugo ao visitar o local, em 1843. E, de fato, só há patos-reais, com suas cristas verdes, e aves migratórias.

Nos tempos dos romanos, a ilha era conhecida como "Pausoa" — palavra basca que significa "passagem" ou "passo". Os franceses traduziram para "Paysans" (camponeses), que depois virou "Faisans" (faisões). Com o passar do tempo, o nome Ilha dos Faisões permaneceu.

A modesta ilha finalmente ganhou importância em 1648, após um cessar-fogo no final da Guerra dos Trinta Anos, entre a França e a Espanha. Ela foi escolhida como um espaço neutro para demarcar as novas fronteiras entre os dois países.

Ao todo, foram realizadas 24 reuniões de cúpula, com escoltas militares de prontidão para o caso das conversações fracassarem. Apenas 11 anos mais tarde, foi celebrado o acordo de paz, chamado Tratado dos Pireneus.

Para marcar a ocasião, foi organizado um casamento real. Em 1660, o rei Luís 14, da França, se casou com Maria Teresa, filha do rei da Espanha, Filipe 4°, no local da declaração de paz.

Pontes de madeira foram construídas para facilitar a passagem, e os membros da realeza chegaram em carruagens e barcos do Estado.

Foram encomendados tapetes e pinturas. Diego Velázquez, pintor da corte de Filipe 4° e autor da obra-prima As Meninas (um retrato de Margarita Teresa, outra filha do rei Filipe, com suas damas de honra), foi encarregado de organizar boa parte das festividades.

A Ilha dos Faisões acabou sendo tão simbólica como metáfora de paz que os dois países decidiram que a custódia do território seria conjunta. A Espanha seria responsável por ele entre 1° de fevereiro e 31 de julho, e a França assumiria o comando nos seis meses restantes de cada ano.

Surgia naquele momento o menor condomínio do mundo.

·         Os condomínios, no direito internacional

Por definição, os condomínios são locais determinados pela existência de mais de um Estado soberano. O termo é derivado do latim condominium: "com" significa "conjunto", e "dominium" quer dizer "direito de propriedade".

Ao longo dos séculos, diversos países se envolveram em disputas geográficas sobre condomínios. Governos passaram décadas argumentando sobre detalhes de quem é dono do quê e por qual razão. Normalmente, os condomínios não são centros de impérios, mas sim anexos geopolíticos experimentais.

O Tratado dos Pireneus — acordo de paz entre a Espanha e a França, assinado em 1659, foi negociado na Ilha dos Faisões e definiu as fronteiras entre os dois países

Atualmente, há oito condomínios destes pelo mundo. Eles incluem o Lago de Constança, um condomínio tripartite entre a Áustria, a Alemanha e a Suíça; além do distrito de Brčko e do território em disputa da República Sérvia, ambos na Bósnia-Herzegovina.

Existem também a Área de Regime Comum, que é uma região marítima compartilhada pela Colômbia e pela Jamaica, e a região de Abyei, reivindicada pelo Sudão e pelo Sudão do Sul.

O Rio Mosel e seus afluentes Sauer e Our formam um condomínio fluvial compartilhado entre a Alemanha e Luxemburgo. Já o Golfo de Fonseca é um condomínio tripartite entre Honduras, El Salvador e Nicarágua.

Por fim, a Antártida é o maior e mais importante condomínio, teoricamente continental, governado pelos 29 signatários do Tratado da Antártida, que possui status consultivo.

No dia da minha visita à Ilha dos Faisões, o território estava sob administração espanhola. Um grupo de pessoas explorava os recantos da ilha de caiaque e, em terra, apenas uma pessoa parava para tirar fotografias.

Além de administrar o jardim, fazer a manutenção do atracadouro dos barcos, discutir direitos de pesca e monitorar a qualidade da água, não há muito para os espanhóis fazerem.

Visitantes só são autorizados na ilha em raras ocasiões, como nos dias de transferência semestral de poder, quando a ilha fica repleta de atividades com a cerimônia oficial, bandeiras, delegados, diplomatas e toda a pompa oficial; ou em tours ocasionais específicos para visita ao patrimônio local.

Mas um fenômeno alarmante que reverbera entre as comunidades fronteiriças é a quantidade de imigrantes tentando cruzar ilegalmente o rio da Espanha para a França. No dia anterior à minha chegada, um cidadão estrangeiro havia se afogado ao tentar atravessar o rio a nado. E, enquanto Sorondo e eu conversávamos sobre a história e a política do País Basco, um barco da polícia vasculhava as águas em busca do corpo.

 Dados atuais da ONG Irungo Harrera Sarea, com sede em Irun, no lado espanhol, estimam que até 30 migrantes cheguem todos os dias buscando uma passagem segura para o norte, até a França.

Como um canal de maré, o Rio Bidasoa tem uma diferença de altura brutal de 3 a 4 metros, fluindo para um lado e para o outro da fronteira oficial, na ponte da rodovia nacional, como um ataque direto.

"Este ainda é um lugar de renovação da esperança para muitas pessoas", observa Sorondo, "mas também é uma armadilha mortal."

Com estas palavras dolorosas pairando no ar, apenas um pensamento passa pela minha cabeça enquanto deixo o local.

A Ilha dos Faisões pode ser uma nota de rodapé histórica esquecida. Mas, no nosso mundo matizado e imprevisível de disputas por fronteiras e apropriações de terras, é um símbolo de paz que precisa ser sempre lembrado.

 

Ø  Costa da Morte: como um pescador descobriu mais de 1.000 barcos naufragados no litoral da Espanha

 

Acidentada e traiçoeira. Assim é a Costa da Morte, testemunha de inúmeros naufrágios que foram, anos depois, encontrados por um pescador no noroeste da Espanha.

Antes da popularização do GPS, um pescador nascido em Sardiñeiro, litoral da Galícia, em 1941 foi responsável por descobrir mais de mil escombros de embarcações no fundo do mar.

Ele é José López Redonda, mais conhecido como Pepe de Olegario. Uma figura importante, principalmente entre os galegos que vivem perto do mar.

“Após quarenta anos no mar e mais de mil naufrágios, ainda me faltaram barcos por encontrar” conta à BBC Brasil.

Ao contrário de outras histórias fantásticas de pescador, as de Pepe costumam ser bastante realistas e estão muito bem documentadas. São mais de 1.000 naufrágios cartografados, formando um mapa de tesouros e de tragédias.

Alguns dos acidentes marítimos mais conhecidos do mundo, como o do barco britânico HMS Serpent e o do navio petroleiro Prestige ocorreram na Costa da Morte e, antes de pesquisadores e cientistas mapearem esta região do Atlântico Norte, ela já havia sido estudada por um Pepe de Olegario.

“Me ofereciam trabalhos na terra para ganhar mais, mas eu não aceitava. E, quando tinha que voltar para casa aos domingos, ficava triste”, conta à BBC News Brasil.

Mas Pepe de Olegario nunca foi um pescador de tilápias. Ele dedicou sua vida a encontrar uma espécie única: o carrancudo e misterioso mero. Este peixe era tão difícil de ser encontrado que se tornou quase uma lenda.

O quilo do mero era um dos mais caros nas feiras galegas, o que aumentava sua fama. Então, pescadores impressionados decidiram seguir Pepe em um de seus dias de trabalho e descobriram o segredo de seu sucesso.

Os meros são peixes com mais de 100 quilos que podem viver em profundidades superiores a 200 metros. Estas condições impedem a formação de refúgios naturais, como algas e corais. Então, estes animais acabam vivendo dentro de cascos, âncoras e pedaços de barcos naufragados.

"Eu trocava dias de pesca para caçar naufrágios. Naquela época, já sabia que, se encontrasse algum, encontraria também os meros”, afirma.

Os mais de quarenta anos cartografando os destroços perdidos no litoral da Galícia renderam a Pepe uma forte parceria com embarcações da região.

Capitães franceses, espanhóis e portugueses avisavam diretamente o pescador quando voltavam com suas redes rasgadas do mar.

“Todos me conheciam, eles me ligavam e diziam ‘Pepe, enganchei minha rede’, mas, mesmo com as indicações, eu demorava dias para encontrar [os naufrágios]”.

Seguindo direções entre faróis e praias, Pepe de Olegario encontrou pontos que passaram a ser desviados pelos navios e desejados por pescadores de meros.

Porém, por mais que o pescador ganhasse a vida buscando destroços, nunca deixou de se lembrar que se tratavam de grandes tragédias, com muitas vítimas.

“Quando estava pescando, pensava na tragédia desse barco e, quando chegava na costa, perguntava sobre a história por trás e assim fui aprendendo”, conta à BBC.

·         O cemitério dos ingleses na Costa da Morte

A região mais perigosa da Costa da Morte é a chamada Ponta do Boi, em Camariñas. Nestas águas, três grandes naufrágios marcaram para sempre a memória dos galegos. O Iris de Hull (1883), o HMS Serpent (1890) e o SS Trinacria (1893).

Iris de Hull era um navio inglês que havia saído de Cardiff (Reino Unido) com destino à Índia, passando ao largo do estreito de Gibraltar. Porém, em novembro daquele ano, o barco de carga a vapor tripulado por mais de 30 homens se chocou com os chamados Baixos de Antón, o que iniciou uma tragédia que deixaria um único sobrevivente: Geoge Chirgwin.

Os meses de outubro e novembro marcam o fim do outono na Europa e, neles, o mar na Costa da Morte fica mais perigoso. Além do vento nordeste que empurra os barcos de volta para a terra, suas estruturas rochosas são como icebergs - mais perigosas do que aparentam ser à primeira vista.

Foi também em novembro, mas de 1890, que outro acidente terrível ocasionaria um naufrágio na Ponta do Boi. O navio militar britânico HMS Serpent se dirigia à Serra Leoa, mas teve seu trajeto interrompido e terminou com a morte de 172 dos seus 175 tripulantes.

“A tripulação era jovem, três deles conseguiram nadar com muita dificuldade e avisar a vizinhança que, infelizmente, não conseguiu ajudar”, conta Virginia Barros, guia turística no local.

Por vários dias, o mar devolveu os corpos à terra e foram aproximadamente 140 recuperados. Para que tivessem um enterro digno, construiu-se uma necrópole. O Cemitério dos Ingleses, hoje, faz parte da Rota Europeia de Cemitérios Singulares, e está cercado de uma paisagem composta pelo som das ondas e névoa, sobre um descampado rochoso.

“Até meados do século passado, sempre que um navio da marinha britânica passava pela Costa da Morte, soltava salvas em honra às vítimas destes grandes naufrágios”, conta Virginia.

·         O desastre ambiental do Prestige

A tragédia mais midiática da Costa da Morte foi, sem dúvidas, a do navio petroleiro Prestige, em 2002.

Mesmo com novos faróis e cartografias, o litoral galego segue, até os dias de hoje, exigindo respeito.

Este desastre foi marcado por uma cortina negra de fumaça e pela contaminação de mais de 2 mil quilômetros de costa por grande parte das 77 mil toneladas de petróleo que o Prestige carregava.

Cenas de aves e peixes cobertos por petróleo circularam o mundo e, como resposta, o governo espanhol decidiu construir o complexo hoteleiro Parador Costa da Morte, que foi inaugurado quase 20 anos depois do desastre, em 2020.

"O conselho de ministros de A Coruña decidiu, entre as ações econômicas para recuperar o litoral, investir no turismo”, conta Julio César Castro Marcote, diretor do Parador Costa da Morte.

Além de fomentar o turismo na região galega, que é tão bonita quanto perigosa, o Parador também assumiu o papel de contar histórias regionais.

A fotografia de Xurxo Lobato, que captura o momento exato do acidente do petroleiro Prestige, está pendurada logo na entrada do Parador, além de outros retratos de pescadores.

Através do olhar de Ramón Caamaño e Virxilio Viétez, é possível admirar os rostos curtidos de sol de uma geração de 1930, que chamava o mar de “la mar”, no feminino, como sinal de respeito.

“O quinto andar do edifício projetado por Alfonso Peneda foi o escolhido para a exposição perene das cartas náuticas de Pepe de Olegario” afirma o diretor.

O galego que descobriu mais de mil restos de naufrágios ao longo de décadas no mar apresenta com orgulho suas cartografias feitas à mão, agora emolduradas. Mesmo aposentado, ainda se lembra dos nomes da tripulação, tipos de carga, destino do navio, ano e motivos dos acidentes. O trabalho de Pepe de Olegario ajuda, assim, a reconstituir partes da memória da Galícia.

 

Fonte: BBC Travel

 

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