sábado, 9 de novembro de 2024

Paulo Fernandes Silveira: ‘O direito à vida digna para pessoas e animais’

Como leitor leigo do assunto, sempre me chamou a atenção a quantidade de filósofos, romancistas e poetas judeus que, após o Holocausto, investigaram temas relacionados aos animais. Essa mesma impressão foi manifestada pelo filósofo judeu Jacques Derrida (2006) no livro: O animal que logo sou. Alguns desses autores sofreram diretamente os efeitos da barbárie e do genocídio judaico.

No início dos anos 2000, o historiador norte-americano Charles Patterson (2009) publicou um livro que se tornou uma referência sobre esse tema: Eterna Treblinka: nosso tratamento aos animais e o Holocausto.

O título desse livro evoca uma passagem do conto “O escritor de cartas”, do romancista judeu Isaac Bashevis Singer (1984), prêmio Nobel de literatura, em 1978.

O conto é centrado na personagem de Herman Gombiner, um editor e tradutor vegetariano que perdeu a família para os nazistas. Gombiner mora sem a companhia de outras pessoas num pequeno apartamento no norte de Nova Iorque. Toda noite, ele deixa um pedaço de pão, uma fatia de queijo e um pires com água para Huldah, uma rata que vive com ele em sua quitinete.

O nome que Gombiner deu à rata refere-se a uma personagem bíblica conhecida por sua sabedoria. Ao adoecer, Gombiner deixa de dar alimento a Huldah. Imaginando que a rata teria morrido de fome, ele faz um encomio em sua homenagem:

“O que sabem todos esses eruditos, todos esses filósofos, todos esses líderes mundiais sobre alguém como você? Eles se convenceram de que o homem, o pior transgressor de todas as espécies, é a coroa da criação. Todas as outras criaturas teriam sido criadas, simplesmente, para lhe fornecerem comida e peles, para serem atormentadas e exterminadas. Em relação a eles, todas as pessoas são nazistas; os animais vivem numa eterna Treblinka” (SINGER, 1984, p. 271; SINGER, 2004, p. 323).

Ao comparar o genocídio dos judeus à matança dos animais, o livro de Patterson sofreu inúmeras críticas. Esse debate se intensificou em 2003, quando a organização não governamental PeTA (Pessoas para o Tratamento Ético dos Animais) promoveu a campanha fotográfica: “O Holocausto no seu prato” (KLEIN, 2011). Um dos painéis reproduzia a frase: “para os animais, todas as pessoas são nazistas”. Na mesma imagem, prisioneiros de Auschwitz apareciam ao lado de frangos engaiolados.

Uma parte da comunidade judaica ficou ofendida e indignada com essa comparação. Assumindo uma posição diferente, Derrida sustenta que existem genocídios animais, pois há um grande número de espécies em via de desaparecimento por causa do homem. Nesses termos, afirma o filósofo: “da figura do genocídio não se deveria nem abusar nem se desembaraçar rápido demais” (DERRIDA, 2006, p. 46).

Num dos capítulos do seu livro, Patterson (2009) traça um amplo panorama histórico da violência justificada pela animalização e desumanização das pessoas. Os colonizadores referiram-se aos indígenas da América como sendo bestas selvagens, os escravocratas associaram os africanos aos macacos e os nazistas relacionaram os judeus aos vermes, aos ratos e aos parasitas.

Concebido por Joseph Goebbels, ministro da propaganda do governo de Hitler, o filme O Eterno Judeu, dirigido por Fritz Hippler, em 1940, é uma boa síntese do projeto nazista de animalização dos judeus (KERSHAW, 2018). O Eterno Judeu é um documentário que expõe imagens acompanhadas de um texto narrado.

Uma passagem do filme contrasta imagens de ratos com imagens fortes da degradação física dos judeus no gueto de Lodz, na Polônia: “Um paralelo a esta imigração judaica por todo o mundo é a imigração em massa de um animal igualmente inquieto: o rato. Como parasitas, os ratos acompanham os humanos desde o início. (…) Onde quer que apareçam, trazem ruína para a terra, destruindo os bens e a alimentação da humanidade. É assim que espalham doenças: peste, cólera, disenteria, lepra, febre tifoide e assim por diante. Eles são astutos, covardes e cruéis. Geralmente, surgem em grandes bandos. Entre os animais, os ratos representam o elemento de destruição insidiosa e subterrânea, como os judeus entre os seres humanos” (HIPLER, 1940, 16m 56s-17m 36s; FISCHLOCK, 2010, p. 39).

Na sequência, o narrador apresenta supostos dados sobre a porcentagem mundial de judeus envolvidos numa série de crimes: “34% do tráfico de drogas, 47% dos roubos, 47% dos jogos de azar fraudulentos, 82% das organizações criminosas internacionais e 98% do tráfico de prostitutas” (FISCHLOCK, 2010, p. 39-40).

Na parte final, o filme mostra cenas do ritual judaico do abate Kosher, que não utilizava anestesia nos animais. O narrador afirma que o Nacional Socialismo era “contra esta tortura cruel de animais indefesos” (FISCHLOCK, 2010, p. 48). De fato, o nazismo incorporou algumas demandas do movimento conservacionista (UEKOETTER, 2006). Em novembro de 1933, já com Hitler no poder, foi aprovada a Lei de Proteção Animal, que proíbe o abate sem anestesia (ANIMAL PROTECTION LAW, 1933).

Para os nazistas, não havia contradição entre defender um tratamento digno aos animais e transformar os judeus em “animais humanos” (Menschentiere), sujeitos a toda forma de violência e humilhação (MOHNHAUPT, 2022). Na hierarquia criada pelos nazistas, os judeus foram equiparados a parasitas que precisavam ser exterminados.

Mais conhecido por seus livros sobre sua experiência como prisioneiro em Auschwitz, Primo Levi também escreveu crônicas, ensaios e poesias sobre diversos temas relacionados aos animais (MENEZES, 2023).

A animalização e desumanização dos judeus pelos nazistas também faz parte dos textos de Primo Levi sobre os campos de concentração. No ensaio “Intolerância racial”, Levi narra um momento em Auschwitz, no qual jovens hitleristas foram visitar o campo para verem o estado dos prisioneiros: “Eram levados lá, em visita guiada, para nos verem recolhendo os escombros; e o discurso dos instrutores – eles não se preocupavam em fazer segredo, em falar baixo, era o seguinte: – Estão vendo, é claro que os mantemos no campo de concentração e os obrigamos a trabalhar, porque não são homens, se olharem bem; têm barba comprida, não se lavam, são sujos, não sabem nem falar, só servem para usar pá e picareta, portanto, é claro que somos forçados a tratá-los desse modo, como se trata um animal doméstico” (2016a, p. 195).

Em suas crônicas e poemas sobre os animais, Primo Levi demonstra compaixão por sofrimentos semelhantes aos que ele teve em Auschwitz. Na crônica “O esquilo”, Levi descreve o martírio de um pequeno animal num teste de laboratório sobre a insônia. Preso numa gaiola, o esquilo era obrigado a correr sem parar numa esteira elétrica para que os cientistas pudessem acompanhar e registrar os efeitos em seu corpo da ausência de descanso e de sono:

“O esquilo estava exausto: trotava pesadamente naquela estrada sem fim e me fazia lembrar dos remadores das galés e daqueles que eram obrigados, na China, a caminhar por dias e dias dentro de gaiolas parecidas com aquela para elevar a água destinada aos canais de irrigação. Não havia ninguém no laboratório; desliguei o interruptor do motor, a gaiola parou e o esquilo dormiu no mesmo instante” (LEVI, 2016b, p. 108).

Impactado pelo filme O Eterno Judeu, na novela gráfica Maus: a história de um sobrevivente, o cartunista e escritor Art Spiegelman conta a experiência do seu pai, como prisioneiro em Auschwitz (SPIEGELMAN, 2011). O título da novela traz uma das palavras alemãs que traduzem “rato”. É provável que ela tenha sido escolhida pelo fato da sua sonoridade lembrar a da palavra inglesa “mouse”, apontando para uma comparação com Mickey Mouse (MENEZES, 2023).

Os traços dos ratos de Spiegelman são simples, sem sorrisos, sem raiva, sem expressão: “cabeças de rato que são basicamente triângulos sem boca, apenas o nariz e os olhos, muito diferente do Mickey Mouse com seu rosto sorridente de tenha-um-bom-dia” (SPIEGELMAN, 2011, p. 145).

A maior exceção a isso é o desenho que retrata uma das terríveis formas de extermínio em Auschwitz: “Estavam trazendo os judeus da Hungria. Era gente demais. Aí fizeram esses poços. (…) Os prisioneiros que trabalhavam lá jogavam gasolina nos vivos e mortos. Coavam a gordura dos corpos e jogavam de novo para queimar melhor” (SPIELGELMAN, 1995, p. 72). Segundo Spiegelman, “a boca que grita recobre a face, este é um modo de torná-la humana” (2011, p. 145).

As faces sem expressão sugerem que a figura do rato é apenas uma máscara que pode ser retirada. Esse recurso abre um caminho para que as personagens dessa história, inclusive os sobreviventes do Holocausto, como Vladek Spiegelman, pai do cartunista, possam questionar as máscaras que lhes foram impostas.

Até hoje, a animalização de grupos adversários é utilizada para justificar genocídios. Nos anos noventa, em Ruanda, os hutus desenvolveram uma campanha para exterminar os tutsis associando-os às baratas (ADEKUNLE, 2007). Em outubro de 2023, logo após o ataque terrorista do Hamas, que resultou na morte de mais de mil civis, Yoav Gallant, ministro da defesa de Israel, fez o seguinte pronunciamento: “Ordenei um cerco completo à Faixa de Gaza. Não haverá eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível, tudo fechado! Estamos lutando contra animais humanos e agiremos de acordo com isso” (NO COMENT TV, 2023).

Em 2001, dez dias depois dos ataques de 11 de setembro, Jacques Derrida recebeu o prêmio Theodor Adorno, em Frankfurt. Em sua conferência de agradecimento, Derrida (2002) costura trechos dos textos de Adorno e de outros autores. No final da conferência, Jacques Derrida faz uma breve análise de uma passagem de Theodor Adorno sobre a filosofia kantiana e os animais.

Essa passagem é um achado de Jacques Derrida, uma vez que ela estava escondida num livro sobre a filosofia da música de Beethoven: “O que me parece tão suspeito na ética kantiana é a ‘dignidade’ que ela assinala ao homem em nome da autonomia. A capacidade para a autodeterminação moral é atribuída aos seres humanos como uma vantagem absoluta – como um ganho moral –secretamente reivindicado para legitimar a dominação. (…) A dignidade ética em Kant é uma demarcação de diferenças. Ela se dirige contra os animais. Veladamente, ela exclui o homem da natureza, de tal modo que, a todo momento, sua humanidade ameaça se transformar em desumanidade. Ela não deixa espaço para compaixão. (…) Os animais exercem no sistema idealista praticamente o mesmo papel que os judeus no fascismo. Insultar as pessoas chamando-as de animais, isso é idealismo puro” (ADORNO, 1998, p. 80).

Além do discurso proferido em Frankfurt, Jacques Derrida analisa essa passagem de Adorno em: O animal que logo sou. Nesse livro, ele realça a semelhança entre a interpretação que Theodor Adorno faz do idealismo kantiano e o nazismo: “Essa noção de insulto não envolve apenas uma agressão verbal, mas uma agressão que consiste em degradar, rebaixar, desvalorizar, enfim, contestar alguém em sua dignidade” (2006, p. 143).

No artigo “Dignidade animal na justificação dos direitos animais”, o filósofo do direito Carlos Frederico de Jesus (2022) analisa algumas das principais teorias que questionam os pressupostos da ética kantiana da dignidade, em especial, as teorias de Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione e Cristine Korsgaard. Na introdução do texto, Carlos Jesus destaca um elemento comum a essas teorias:

“Talvez em virtude da incompatibilidade teórica inicial do conceito de dignidade kantiano com a sua aplicação a seres não racionais, as tentativas de atribuir direitos aos animais geralmente partem de outro ponto: a senciência. A capacidade dos animais para a dor permite que se defenda um mínimo de proteção jurídica a eles, afinal eles podem sofrer, ainda que não possam raciocinar. Mesmo sem serem fins em si mesmos, sentem dor e essa dor tem relevância ética” (2022, p. 30).

Esse debate ético e filosófico sobre o conceito de dignidade kantiano é fundamental para qualquer possibilidade de mudança legal com relação aos direitos dos animais. Seria importante, todavia, que também promovêssemos um amplo debate educacional sobre o tratamento dos animais.

Numa conferência, Theodor Adorno (1998) indaga sobre a possibilidade de uma educação preocupada em formar pessoas que não aceitem, nem tolerem, genocídios como o promovido pelos nazistas nos campos de extermínio de Auschwitz.

Tal educação, afirma Theodor Adorno, precisaria abrir perspectivas de formação mais ricas do que aquela que tiveram os nazistas, que se mostraram pessoas manipuladoras, controladoras e completamente incapazes de levar a cabo experiências humanas diretas, assim como de cultivar e manifestar emoções (1998, p. 86).

Em contraposição a isso, o filósofo Emmanuel Levinas (2003), que passou pelos horrores dos campos de concentração, sustenta a prioridade do outro e da alteridade na formação da subjetividade (SILVA, 2017).

Segundo Lévinas, é preciso preparar-se para a alteridade, é preciso preparar-se para ter experiências humanas. Trata-se de expor-se ao outro sem máscaras e sem defesas (LEVINAS, 2003). Nessa mesma perspectiva, o filósofo da educação Jorge Larrosa compreende o sujeito da experiência a partir da paixão e do padecimento, mas também da receptividade, da disponibilidade, da abertura essencial para o outro e para nossa própria transformação.

Certamente, uma educação para alteridade também envolve a relação que estabelecemos com os animais, com suas vulnerabilidades, suas aflições, seus afetos. De certa forma, foi isso o que fizeram José do Patrocínio, Isaac Singer, Primo Levi, Art Spieguelman, Jacques Derrida e todas e todos que responderam à desumanização com a preocupação e o cuidado com os animais. 

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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