Como
carências na infância afetam a renda futura
Resolver
carências básicas das crianças brasileiras mais pobres, como dar óculos às que
têm problemas de visão ou levar saneamento às casas onde moram, melhora não só
a sua vida imediata, mas também sua renda na idade adulta e o potencial de o
país como um todo se desenvolver.
Isso
é o que apontam duas pesquisas divulgadas em outubro. Uma mediu qual é o
impacto de não ter óculos nos anos escolares na futura vida profissional, e
outra investigou a associação entre falta de saneamento e expectativa de renda.
Ambas
mostram que priorizar o cuidado na infância traz benefícios individuais e
coletivos no longo prazo, com custo baixo, e comprovam que deixar as crianças
desatendidas prejudica seu desenvolvimento cerebral e físico e pode fadá-las a
uma vida inteira de dificuldades.
• Falta de óculos derruba
aprendizado pela metade
Crucial,
o acesso a óculos para crianças com miopia, astigmatismo ou hipermetropia é
deficiente no Brasil. Há problemas para marcar consulta com oftalmologistas do
Sistema Único de Saúde (SUS) em muitas cidades – e, mesmo que haja o
diagnóstico, não há uma política pública nacional que ofereça óculos gratuitos
às famílias mais pobres. Sem enxergar bem, as crianças não conseguem ler
corretamente lousas e livros e ficam para trás no aprendizado.
Uma
pesquisa da Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira (IAPB) estimou
qual é o efeito de fornecer óculos a crianças com problemas de visão a partir
dos 5 anos de idade. O resultado: aquelas que recebem óculos terão ao longo da
vida uma renda em média 78% superior às que não receberam.
Para
chegar a esse resultado, a IAPB primeiro analisou os resultados de quatro
grandes ensaios clínicos realizados na China com participantes escolhidos de
forma aleatória, que coletaram dados sobre o impacto no aprendizado de fornecer
óculos a crianças com problemas de visão. A conclusão foi de que uma criança
sem a visão corrigida aprende cerca de metade do que aprendem as demais.
Depois,
o estudo calculou estimativas para diversos países, tendo em vista as condições
econômicas de cada um deles. No Brasil, há cerca de 380 mil crianças de 5 a 11
anos e 410 mil adolescentes de 12 a 17 anos com problemas de visão não
corrigidos, segundo o estudo global Global Burden of Disease de 2021. Se essas
crianças recebessem óculos, o Brasil seria o terceiro país mais beneficiado do
mundo, atrás de China e Índia.
Uma
maior escolaridade geral se reflete também em crescimento econômico. No cenário
de todas as crianças com os problemas de visão corrigidos, o Brasil teria um
incremento anual no seu Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 21,9 bilhões, estimou
a pesquisa.
• "Minha visão começou a
embaçar"
Ir
para a escola sem enxergar direito a lousa era um problema diário para Dhavi
Pietro da Silva, de 12 anos, morador de Campina Grande, na Paraíba. Com
astigmatismo e miopia, e sem condições de realizar exames e comprar óculos, a
dificuldade de aprendizado se impunha.
"Minha
visão começou a embaçar, e eu forçava muito a vista. Comecei a sentar mais na
frente, mas mesmo assim não conseguia enxergar o quadro. Era complicado para
fazer as atividades", disse ele à DW.
No
ano passado, Dhavi Pietro participou de um projeto de sua cidade que coletava
cartas das crianças para o Papai Noel, e uma ótica local atendeu ao pedido e
doou um exame e óculos para ele. "Mudou muito, mesmo sentando em qualquer
canto da sala conseguia enxergar o quadro, as notas melhoraram, minha vida
melhorou", afirma.
"Queria
que outras crianças pudessem ter o mesmo acesso que tive", diz. Mas ele
sabe do risco de voltar a ter problemas, e diz que sua mãe tem dificuldade para
agendar consulta com oftalmologista no SUS para fazer os exames periódicos.
Caio
Abujamra, presidente do Instituto Suel Abujamra, que oferece atendimento
oftalmológico a pessoas em situação de vulnerabilidade e é parceiro da IAPB,
confirma à DW que faltam oftalmologistas do SUS em diversas áreas do país.
Mesmo
quando há um profissional disponível, muitos pais não sabem da importância de
levar os filhos pequenos para uma consulta. "Podem achar que a criança tem
ansiedade, TDAH, quando às vezes ela só não está prestando atenção à aula
porque não está conseguindo enxergar e não tem óculos", diz.
Associado
a outras duas organizações, o instituto firmou uma parceria com a cidade de São
Paulo para examinar as 420 mil crianças do ensino fundamental da cidade e
fornecer gratuitamente óculos às que precisam – o mutirão começou em fevereiro
e deve ser concluído em junho de 2025.
"Não
é o olho que enxerga, é o cérebro, o olho é só uma ferramenta, mas temos que
aprender a usá-lo. E temos mais aptidão para ensinar o cérebro até os 7 anos de
idade, por isso é crucial fazer a triagem cedo. Tem um impacto para o resto da
vida", afirma Abujamra.
• Sem saneamento, renda menor
Outro
carência durante a infância e a adolescência que afeta a renda na vida adulta é
a falta de saneamento básico. Na primeira infância, isso expõe os bebês a mais
casos de diarreias e outras doenças transmitidas pela água ou pela proximidade
com o lixo, impactando seu desenvolvimento físico e cognitivo. Mais tarde,
surgem também os problemas de saúde bucal, que causarão novos problemas e
afastamentos da escola.
Um
estudo encomendado pelo Instituto Trata Brasil mediu qual é o atraso escolar
associado à falta de esgoto, água tratada e banheiro, a partir de dados do
Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que a cada dois anos aplica
testes e questionários a estudantes da rede pública e privada. A pesquisa
concluiu que, ao final do ensino médio, um jovem que mora em local sem
saneamento básico terá uma defasagem escolar de 1,8 ano em relação a um jovem
com acesso ao saneamento – o que, por si só, levaria a uma queda de 12,7% na
sua remuneração futura.
Com
base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estudo também estimou
que, entre dois jovens de 19 anos com o mesmo gênero, raça e área de
residência, o que mora numa casa sem saneamento tem renda média mensal 33,4%
inferior ao que dispõe desses serviços. A pesquisa então projetou que a falta
de saneamento é associada a uma renda 46,1% menor na vida adulta.
A
partir de uma estimativa matemática, a pesquisa conclui que a renda média de um
jovem de 19 anos de idade sem saneamento ao longo de 35 anos de vida
profissional será R$ 126 mil menor do que a de um com saneamento – valor
suficiente para dar entrada num imóvel, por exemplo.
A
advogada Isabela Minelli, do Instituto Alana, lembra que saneamento básico
envolve, além de água tratada e coleta de esgoto, o manejo de resíduos sólidos
e a drenagem pluvial – e está associado a outras carências. E cita a chamada
Equação Heckman, do economista James Heckman, Nobel de Economia em 2000:
"A cada dólar investido na primeira infância, sete dólares retornam para a
sociedade, por exemplo com redução de gastos médicos, menor índice de evasão
escolar e violência."
• Estudo de longo prazo em
Ribeirão Preto
Um
dos maiores pesquisadores brasileiros que se dedica à estudar a relação entre
infância e desenvolvimento é Naercio Menezes, professor da Cátedra Ruth Cardoso
do Insper e membro do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI).
Ele
diz que a ciência vem apresentando seguidas evidências de que uma criança que
vive em condições ideais na primeira infância – com estímulo familiar, renda
suficiente para a compra de alimentos e roupas e um ambiente sem violência –
irá se desenvolver melhor e mais rapidamente, com efeitos cumulativos ao longo
da vida. Ela terá melhor educação, maior probabilidade de entrar na faculdade
ou abrir um negócio, e maior produtividade e renda futura.
Menezes
está conduzindo com o Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira
Infância (CPAPI) uma pesquisa de longo prazo para entender melhor como o
desenvolvimento infantil afeta o aprendizado, que pretende acompanhar 2 mil
crianças nascidas no segundo semestre do ano passado em Ribeirão Preto por toda
a sua vida, aplicando testes periódicos sobre diversas variáveis.
"O
baixo aprendizado é um dos principais problemas do Brasil. Não conseguimos
melhorar a posição dos jovens, um quarto deles não estuda nem trabalha, é uma
juventude com pouca esperança no mercado de trabalho e no futuro. Queremos
entender como o desenvolvimento infantil está relacionado com essas
questões", afirma.
Os
resultados dessa pesquisa ainda vão demorar para sair, mas a orientação já é
clara: "Os recursos gastos com políticas públicas na primeira infância têm
um retorno muito grande para a sociedade, pois isso evita uma série de
problemas no futuro."
Fonte:
DW Brasil
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