quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Jeferson Miola: O mal-estar com o neoliberalismo e o voto na direita e no extremismo

São muitas as interrogações sobre o resultado eleitoral desfavorável para as esquerdas nas eleições municipais face os indicadores positivos da economia com Lula.

Afinal, o crescimento do PIB supera previsões, o desemprego encontra-se num dos níveis mais baixos das últimas décadas, o salário mínimo está sendo valorizado e aumentaram os orçamentos das famílias de baixa renda – seja pela criação de novas oportunidades de trabalho, seja devido aos programas sociais e previdenciários.

Apesar da situação econômica do país, isso não se traduziu, contudo, em ampliação ou confirmação do potencial do “voto lulista” para a esquerda nos municípios.

Na realidade, o eleitorado que deu a vitória a Lula em 2022 em inúmeras cidades de médio e grande porte nesta eleição se pulverizou, e se distribuiu também entre candidatos de direita e extrema-direita.

Além do alerta das urnas, pesquisas de opinião mostram a persistente dificuldade do governo em conseguir melhorar seus índices de aprovação e reduzir sua reprovação, em que pese tudo o que vem sendo feito desde 1º de janeiro de 2023.

Fosse na época dos seus dois primeiros governos, a aprovação de Lula estaria em níveis muito superiores em consequência deste esforço monumental que realiza para reconstruir o país devastado por seis anos pós-golpe com Temer e, depois, com Bolsonaro e os militares. Lula terminou seu segundo mandato em 2010 sendo avaliado como ótimo e bom por 87% da população.

No entanto, hoje se observa um equilíbrio renhido entre as percepções positivas e negativas acerca do governo e do próprio Lula, em grande medida devido à polarização ideológica.

Este não é, porém, um fenômeno exclusivamente brasileiro; é observado internacionalmente. Marcos Coimbra, do Vox Populi, avalia que no atual momento político no mundo, são raros os presidentes que realizam boas gestões e conseguem alcançar índices de popularidade de 60% ou mais e serem reeleitos ou elegerem sucessores.

Analisando a eleição estadunidense, o cientista político e professor da UFRJ Josué Medeiros avalia que o mal-estar das pessoas com sua condição econômica precária sob o neoliberalismo foi um dos fatores que contribuíram para a vitória de Donald Trump.

“Embora o governo de Joe Biden tenha bons números para apresentar –especialmente na redução do desemprego e no aumento da renda– as pessoas não sentem essa melhora. Em parte, por conta da inflação. Em parte, por conta da polarização política, que afeta profundamente as percepções e os comportamentos políticos, especialmente entre os republicanos”, diz ele.

Para Josué, “a principal razão é que a vida da população não melhora dentro da dinâmica neoliberal que organiza a democracia estadunidense. A privatização dos direitos e a destruição dos laços de solidariedade promovem um cansaço e uma frustração que as estatísticas não conseguem alterar”.

Na visão dele, “o trabalhador pode até estar empregado, mas vive um contexto de superexploração no trabalho, com jornadas extenuantes, péssima qualidade de vida e uma competição feroz com seus pares, estimulada pelos superiores. Sua renda de fato aumentou, mas seus gastos com saúde dispararam, ou então precisei recorrer a serviços de saúde de pior qualidade porque é o que meu orçamento permite. Tudo isso gera estresse, depressão, angústia, raiva. E só quem se fortalece com esses sentimentos é a extrema-direita”.

A hipótese do professor Josué sobre a eleição nos EUA é uma chave explicativa útil para se interpretar o revés eleitoral sofrido pelas esquerdas no Brasil e, ainda, para tentar entender a estagnação da popularidade do presidente Lula nas pesquisas.

Aqui no Brasil, mesmo a situação econômica positiva não consegue aplacar este mal-estar da população, em sua maioria pobre, e que leva uma vida “invivível” devido às condições impostas pelo neoliberalismo, que concentra renda nas mãos de rentistas e penaliza a imensa maioria trabalhadora com baixos salários e carestia de serviços públicos privatizados e mercantilizados.

Os dados falam por si. Mais de 70% da população ganha até três salários mínimos por mês, valor evidentemente insuficiente para cobrir os gastos com transporte, água, energia elétrica, gasolina, remédios, saúde, educação, alimentação, moradia. E, além disso, parcelas significativas vivem endividadas e pagando taxas obscenas de cartão de crédito.

Quase um terço da população [31,6%, ou 70 milhões de pessoas] vive na pobreza, dos quais 5,9% [12,5 milhões] encontram-se na pobreza extrema.

O IBGE apurou que em 2023 27,6% dos lares brasileiros viviam com algum grau de insegurança alimentar, 4,1% deles padecendo de insegurança alimentar grave, que corresponde à escassez de alimentos.

O país tem 16,4 milhões de pessoas morando em favelas e áreas sem infra-estrutura e equipamentos sociais –8,1% da população–, afora outras dezenas de milhões vivendo em condições muito precárias.

A estafa e a rebeldia das maiorias sociais com essa condição penosa de vida assumem a forma de uma revolta silenciosa que se manifesta nas urnas e penaliza as “forças do sistema”. É preciso decifrar este enigma.

 

•                                    EUA e Brasil: vitórias do sistema. Por Aldo Fornazieri

Leituras de setores liberais e de esquerda acerca dos resultados das eleições presidenciais dos Estados Unidos, que marcaram o retorno de Trump à presidência, e das eleições municipais do Brasil, que garantiram vitórias dos setores de centro-direita, sugerem que os resultados, ao menos em parte, se devem aos discursos antissistema dos candidatos e políticos desses agrupamentos ideológicos. As análises enfatizam, particularmente, que a extrema-direita que cresce em vários países é antissistema. Trata-se de um equívoco que pode levar ao aprofundamento dos graves erros políticos que as esquerdas vêm cometendo. Além da direita não ser antissistema, toma-se o efeito pela causa.

Incapazes de autocrítica e de olharem para seus próprios erros representantes e intelectuais de esquerda buscam uma profusão de explicações para as derrotas eleitorais: culpa do individualismo dos empreendedores da periferia, dos evangélicos, dos pobres de direita, das políticas e dos movimentos identitários etc. O sociólogo Jesse de Souza contou com a concordância de Guilherme Boulos na afirmação da tese de que o Brasil pode se tornar uma espécie de Irã fundamentalista. Como se trata de uma afirmação espantosa, voltemos à ideia de que a extrema-direita é antissistema.

A essência do discurso de Trump e das variações de extrema-direita em vários países não é e nunca foi de sentido rupturista, mas restauracionista. O restauracionismo de extrema-direita tem alguns vértices: a restauração religiosa que busca valores e modos de vida no passado, a restauração política de sentido nacionalista e neofascista, a restauração da vez, de vozes, de empregos e de condições de vida de pessoas que foram sendo deixadas de lado pelas mudanças econômico-sociais no trânsito do século XX para o século XXI. Os trabalhadores brancos, mas também negros e latinos, responderam ao chamado de Trump radicado em promessas restauradoras de um passado melhor do que o presente legado pelo Partido Democrata.

Os perdedores da Era da sociedade industrial tendem a apoiar a extrema-direita. Os vencedores da globalização e da transição digital tendem a apoiar a centro-direita liberal. Isto ocorre tanto nos Estados Unidos, quanto na França. As esquerdas ficam nas margens desse jogo, pois não têm programa para abordar esses interregnos, essas conjunturas de transição.

O discurso de Trump se dirigiu menos contra o sistema institucional ou capitalista e mais contra o poder das elites corruptas que abandonaram o sonho americano, a prosperidade americana e a primazia nacional. O ódio aos imigrantes, a misoginia e outras formas de preconceitos, em parte, integram o arcabouço ideológico do trumpismo evangélico e, em parte, se trata de ardis de campanha do candidato.

Agora, no processo de formação de sua equipe de transição e de sua futura equipe de governo, o que mais predomina no em torno de Trump são representantes das grandes corporações dos país, tendo como expressão máxima Elon Musk. 

Nem Marine Le Pen, nem Giorgia Meloni, nem Bukele e monos ainda Bolsonaro são antissistema. A ideia de que a extrema-direita é antissistema está levando setores de esquerda a uma acomodação ao sistema. O fato de que é necessário defender a democracia e o Estado de Direito não significa que é preciso abandonar a perspectiva de tensionamento do status quo da democracia liberal, que é elitista e excludente. O risco que as esquerdas correm é o de se tornarem coadjuvantes de um sistema opressor e corrupto, que exclui, que depreda o meio ambiente, que marginaliza, que empobrece e que mata as pessoas por diversas e perversas formas.

O prefeito de Araraquara, Edinho Silva, provável futuro presidente do PT, concedeu uma entrevista ao UOL News, criticado a suposta polarização promovida pelo partido, pois ela faria crescer o discurso antissistema da extrema-direita. Diz-se “suposta” porque, de fato, o PT não polariza. No Congresso, lugar por excelência dos embates políticos, os parlamentares petistas se tornaram caudatários de Arthur Lira. As ruas foram abandonadas pelas organizações de esquerda, que abriram mão também dos territórios das periferias entregues aos evangélicos, aos movimentos assistencialistas e ao crime organizado.

Edinho propõe “romper o ambiente de polarização”. Mas como ficar fora da polarização em face de um inimigo que aposta na radicalização? Em jogos de futebol quando os zagueiros recuam e correm para trás diante de um ataque inimigo veloz e eficiente, normalmente o time defensivo leva gols. Edinho está propondo que o PT e as esquerdas corram para trás. Não tem sentido político. Os vencedores das eleições municipais são os partidos mais arraigados defensores do sistema.

Sugerir que as esquerdas precisam ir mais para o centro, abandonar a polarização, porque o eleitorado se inclina à direita, significa atribuir os partidos e os líderes o papel de conduzidos, caudatários, do movimento eleitoral. Líderes e partidos existem para dirigir, comandar, conferir direção e sentido à sociedade. Claro que é preciso compreender as mudanças, a sociedade, a economia e o nosso tempo. Que o governo procure se apresentar como o ponto de unidade nacional, tudo bem. Mas que os partidos recuem perante o avanço da extrema-direita e da direita trata-se de apostar na ampliação da derrota.

Não foi o antissistema que derrotou os partidos de esquerda. Nem a abstenção é o antissistema. Ela é desencanto, desmotivação e desilusão com o sistema político-partidário. Uma eleição tem múltiplos fatores que determinam vitórias ou derrotas: rejeição, leituras equivocadas da conjuntura, marketing, política na internet e nas redes, capacidade de mobilização, compreensão das demandas sociais, presença e representação social etc.

Adotar uma postulação programática clara, firme e mudancista não significa que não se possa fazer alianças pontuais com setores de centro para derrotar a extrema-direita quando se faz necessário. Foi isso que a esquerda fez para evitar a vitória da Reunião Nacional no segundo turno das eleições francesas.

O embate com a extrema-direita não pode ser confundido com uma retórica formalística e vazia. Precisa fundar-se em valores humanistas contrapostos aos valores tradicionalistas e conservadores, na universalização dos direitos humanos, na articulação da transição ecológica com a transição digital, em programas que estruturem cidades digitais que forneçam serviços eficientes às periferias e aos grupos vulneráveis, desenvolvendo práticas de compartilhamento e a economia do bem comum. É preciso integrar as cidades com espaços ecológicos e adotar um programa de desenvolvimento sustentável no sentido forte, imbricado com rupturas com as formas capitalistas predadoras e opressoras nas relações com a natureza e dos seres humanos entre si.

Os trabalhadores sempre enfrentaram dificuldade para viver. Agora as classes médias também enfrentam vicissitudes. Se a sua renda é maior, os gastos também o são. Manter educação, saúde, habitação, inúmeras taxas de serviços, cultura, alimentação esgota quase toda a renda dos setores médios. Muitos trabalhadores e perderam renda e direitos pelo recuo da sociedade industrial. Os novos trabalhadores e as classes médias têm suas rendas saqueadas pela sociedade digital. Tudo isso gera ressentimento, medo e incertezas, terrenos propícios para a proliferação do ódio. Essa é a realidade do nosso tempo. As esquerdas não podem ficar fora do tempo.

 

•                                    Identitarismo imaginário: uma nota sobre o 'esquerdomachismo'. Por Marcia Tiburi

O espectro do identitarismo imaginário ronda o Brasil. Ele foi inventado pelo ‘esquerdomachismo’ explícito, acompanhado do ‘esquerdomachismo’ oculto em posturas de diversos personagens, inclusive mulheres de esquerda que têm medo de se autodefinirem como feministas, pois nessas horas podem perder vantagens junto aos donos do poder. Uma feminista – ou seja, uma mulher com consciência da sua condição na sociedade patriarcal - incomoda muita gente. Ela nunca deveria levantar a mão para falar de direitos das mulheres e de injustiças históricas. Ela deveria ficar no seu lugar de obediência ou, pelo menos, agir como um homem, mas claro, colocando-se no seu lugar (apagado e servil) de mulher sempre que o sistema assim demandar, ou seja, a todo momento...

Essa fala contém ironia! Mas o contexto exige, desde que, na eleição nos EUA, criou-se a ideia de que a culpa é dos chamados “identitários”! Uma mistificação que vem ganhando terreno e que mostra mais a falha da velha esquerda do que um problema da nova esquerda que surge na sua forma radical, tão radical quanto a nova democracia que precisamos construir. O que vem sendo chamado de identitarismo nada mais é do que uma construção imaginária que coloca novos atores da cena pública e política como inimigos a serem combatidos. A esquerda está mirando nos próprios pés – e os pés são de seu próprio bebê que vai crescer e ficar gigante - em vez de combater o fascismo.

Para podermos avançar nessa discussão, é preciso antes explicar o que é o ‘esquerdomachismo’.

O machismo é uma postura em nível moral, ou seja, concernente à subjetividade das pessoas. Enquanto o patriarcado é o sistema estético-teológico-econômico-estatal-jurídico-midiático que funciona como uma frente de ação universal organizando a sociedade, o machismo é a forma moral, ou seja, um parâmetro de comportamento interiorizado e levado a cabo por homens – e infelizmente também por outros gêneros – que se tornam sacerdotes envolvidos na manutenção do sistema. Ora, o ‘esquerdomachismo’ é machismo igual ao machismo de direita. Contudo, mascarado de “esquerdismo”, ou seja, de valores democráticos, direitos iguais e equiparação geral – econômica e política - para os gêneros, ausência de misoginia, capacidade de distribuição e reconhecimento. Assim como há um ‘esquerdorracismo’ e um ‘esquerdocapacitismo’, há um ‘esquerdomachismo’ estrutural a ser superado.

O ‘esquerdomachismo’ é a ideologia que desponta sem vergonha e cheia de ignorância no momento em que novas atrizes e atores chegam para participar do campo político. Corpos e singularidades aparecem pontuando uma nova luta de classes, mas pouca gente percebe essa mudança como avanço da democracia. Esses corpos antes impedidos de exercer direitos, inclusive políticos, que sempre foram tratados como intrusos, chegaram para ficar. Um novo modelo de democracia surge: é a democracia radical que avança para além da democracia burguesa, branca e liberal. A democracia radical inclui todo mundo. Ela não exclui ninguém, pois excluir é antidemocrático.

Se o ‘esquerdomachismo’ exclui os corpos e suas lutas, ele se torna antidemocrático. Na verdade, talvez seja por isso que a esquerda esteja em crise. Por que a esquerda ficou velha, precisa se renovar. A caducidade da esquerda é, ao mesmo tempo, patriarcal, racial, capacitista, e até mesmo etarista! Há que se respeitar os corpos-sujeitos presentes na produção do processo democrático.

E a renovação é radical. Não é liberal, nem machista, nem racista, nem capacitista. Ao contrário, ela inclui essas lutas como paralelas à luta de classes. A luta de classes nunca deu certo, porque ela sempre escondeu alguma coisa que o momento atual vem revelar, a saber, que mulheres sempre foram exploradas no processo. Agora, elas querem o poder! Apenas para falar dessa população, é preciso ficar claro que os esquerdomachos não estão gostando disso, e se estiverem gostando, não são esquerdomachos.

Não é preciso ter medo dos novos agentes da luta. É preciso não ter medo de renovar a luta e de saber que ela pode ser mais completa e radical. Essa é a nova universalidade que precisa ser levada em consideração.

 

Fonte: Brasil 247

 

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