Tarso Genro: ‘Uruguai e a Frente ampla —
motivos para lutar e vencer’
Não tenho certeza se
ainda é possível falar em “ciclos históricos”, naquele sentido concebido pelas
grandes narrativas da teoria da história, cujas ações desenvolvidas pelos
atores mais importantes de cada época se situavam, politicamente, a partir da
análise dos interesses materiais em confronto, mais facilmente visíveis. Parece
obvio que as classes e a luta entre elas não despareceram, bem como permanece
válido o mesmo sentido da ideia de nação. Mas parece certo, todavia, que o
fenômeno da imigração em massa e a brutalidade da transição climática
adicionaram complexidades novas, para entender e situar-se com humanidade, no
âmbito das grandes lutas emancipatórias, culturais, ambientais e econômicas do
século XXI.
Em momentos de
mudanças, que ainda não apareceram nitidamente no cenário, a história mais
parece um túnel — com fantasmas do passado e novos personagens indefinidos do
presente — do que propriamente se parece com o horizonte de um amanhecer ou de
um crepúsculo tardio. é que o “cedo” e o “tardio”, na história, não estão
vinculados a nossa curta existência, mas ao período que a humanidade, como
conjunto, faz-se para o universo.
Penso no sul do Cone
Sul, neste momento onde um pequeno ponto luminoso antes da Antártida, o Uruguai
— de costas para a sordidez de Javier Milei e de frente para o Rio Grande —
brilha como contraponto ao fantasma alaranjado de Hitler na direção do norte do
continente.
Num artigo publicado
em 04 de novembro de 2024, o articulista do jornal Folha de S. Paulo Bruno
Boghossian publicou uma síntese do programa que Donald Trump aplicaria, se
fosse eleito, como o foi um dia depois, com uma vitória arrasadora que obteve
sobre Kamala Harris: “guinada autoritária, desfiguração de leis, construção de
um círculo de lealdade absoluta e asfixia de agentes capazes de resistir as
suas ideias, distorcer leis antigas para perseguir imigrantes (…) e uso de
força para punir seus rivais e, se vencer, provavelmente dirá que obteve o aval
das urnas para governar como um autocrata.” E obteve, em uma enorme dimensão,
que faz impossível dizer que os pobres, operários e miseráveis americanos, que
votaram nele, “foram enganados”.
Faltou ali, todavia, a
mais violenta promessa de Donald Trump, para a extrema direita local e mundial:
as deportações em massa, que o presidente eleito reiterou logo depois da sua
vitória, o que significa — somados estes pontos programáticos — uma destruição
completa da democracia liberal americana e ainda a demonstração de uma nítida
tendência política nazifascista da maioria do seu povo, demonstrada pelas
urnas.
Para fazer deportações
em massa — lembremo-nos da Alemanha de Hitler e da “democracia militarizada” em
Israel com seu genocídio em Gaza — é necessário instalar em qualquer país, uma
autoridade de fato, acima das leis internas e internacionais, seja com apoio
nas urnas pervertidas pelo dinheiro, seja com apoio de aliados impiedosos no
cenário internacional.
Com as eleições
realizadas na Alemanha, quinze anos depois da derrota alemã na Primeira Guerra,
foi feita a nomeação de Hitler como Chancelar do Reich, para formar o novo
Governo (janeiro de 1933) com o Führer fortalecido por dois
pleitos eleitorais. As urnas, em julho e novembro de 1932 — já embaladas pelo
terror nazista — permitiram legitimar os ataques aos judeus e a toda oposição
das forças de esquerda, de centro-esquerda e de centro, a partir de uma eleição
em que a representação parlamentar do Partido Nazista subiu de 107 para 230
deputados, com o nacional-socialismo fazendo apenas 37% dos votos.
Tanto Hitler como
Donald Trump disseram o que fariam antes das eleições. Não há nenhum engano,
não há nenhuma dissimulação, não ocorreu nenhuma mistificação programática para
conquistar a opinião dos eleitores, pois ambos os conquistaram brandindo contra
os valores do velho humanismo democrático-burguês, em seu momento de estafa,
dizendo que as suas promessas políticas de progresso em liberdade fracassaram
rotundamente: as liberdades se tonaram cada vez mais formais, os desejos de
igualdade cada vez mais ressequidos e a paz social sendo refutada pelas
guerras. Matam, torturam, chacinam e assassinam sem dó nem piedade!
Na Alemanha, Hitler
cresceu pela derrota da Revolução Alemã, mas nos Estados Unidos Donald Trump
cresceu porque o “sonho americano” foi reformado pela utopia de direita, de
buscar “um lugar à sombra”, um lugar ilusório — para cada um — ao lado dos
brancos, ricos e perversos, junto às garras da águia americana, mas distantes
dos campos de golfe onde a elite celebra o poder, a vida e a glória dos seus
negócios.
Nos EUA, parece que a
luta de classes dos pobres contra os ricos foi cooptada pela extrema direita,
para transformá-la numa luta de classes dos pobres contra os mais pobres (ou
mais excluídos) da sociedade de classes tradicional. Só isso já deve mudar muito
das nossas análises do período contemporâneo.
A situação da esquerda
pensante, que está em busca de novos caminhos para reencontrar sua base social
perdida, por múltiplos fatores que não cabem analisar aqui, é muito semelhante
ao que ocorre com um personagem num conto definitivo do uruguaio Mario Benedetti.
No seu livro Insomnios e Duermevelas (Seix Barral), num conto
denominado “Tunel e duermevela”, um túnel ferroviário — misterioso e
alucinante na minúscula cidade de São Jorge — está fechado nas suas duas bocas,
o que há muitos anos impedia “o acesso de curiosos e de eventuais fantasmas”.
Nele estão depositados
personagens que são recordados por um menino que ousa penetrar no seu interior,
que parece o bravo Uruguai, onde a extrema direita é irrelevante. País dos
túneis e das torturas, da resistência armada e agora da fé na democracia mais
exemplar na América do Sul.
Marquitos — filho de
don Marcos — e Lucas Junior filho de don Lucas, conversavam seguidamente sobre
o enigma daquele vazio imenso e misterioso de onde saía — assim dizia a lenda —
um cavalo branco sem ginete e, com a ajuda de “algun empujón de viento, uma
sábana pálida y sin arrugas que planeaba um rato como um techo imóvel y se
desmoronaba luego sobre los pastizales”.
Ambos, Marquitos e
Lucas Junior, estavam vinculados à mística do Túnel, fazendo especulações de
toda a ordem, quando numa dessas conversas Lucas Junior disse: “viste que agora
ele está aberto, mas ninguém se atreve a entrar nesse grande oco”. Foi quando Marquitos
anunciou: “vou atrever-me!” E ficou escravo seu próprio anúncio, no “gesto mais
heroico que projetara na sua vida.”
E os encontros no
escuro do Túnel então se sucedem, primeiro com um homem chamado Servando que se
apresenta como um delinquente acusado de ter batido numa velha, mas que na
verdade, sustenta o homem, foi espancado por ela; depois, com Marisa, que
informa que estava ali porque seu marido, melhor dito, “meu macho”, se foi com
uma amante e seus dois filhos, para que ela se suicidasse; logo encontra um
cachorro que passa ao seu lado, sem ladrar ou mover o rabo, seguido pelo seu
tutor que lhe diz que “não tenha medo, pois esta escuridão acovarda o cão”,
embora ele já tenha mordido até uma criança de três anos. E segue Marquito que
agora já tropeça numa menina, que tem medo de dormir, mas que não retrocede
porque não quer se dar “por vencida” e lhe diz, ainda, que não se preocupe com
ela, pois aos solitários vocacionais, como ambos, nunca ocorre nada.
No momento em que se
prepara para sair do outro lado do Túnel passa-lhe um rosto familiar de um já
velho amigo de seu pai, Fernandez, pilotando uma moto, que lhe pergunta: “Don
Marcos, que fazes aí tão solitário?” Marquitos responde, então meio perplexo e
muito confuso, “não sou Don Marcos, sou Marquitos!” A resposta não é aceita
pelo amigo do seu pai, Fernandez, que simplesmente lhe diz “Esse túnel faz
loucos a todos. Deveriam fechá-lo para sempre!
Nos momentos da
história em que os ciclos se encerram, sempre há um lugar especial onde uma
faísca da consciência humana, formatada por décadas e séculos pode adiantar uma
nova era, seja como experimentos desafiantes, seja como novas resistências
contra a exploração e a infâmia. Benedetti e muitos homens e mulheres de todas
as classes atravessaram juntos este Túnel e vislumbraram, mais além das
singularidades de cada encontro no escuro dos subterrâneos da ditadura, motivos
fortes para lutar e vencer.
¨ O gigantesco escândalo sexual que abala a sucessão presidencial
de um país da África Central
Nas últimas duas
semanas, dezenas de vídeos – as estimativas variam de 150 a mais de 400 – foram
vazados, mostrando um alto funcionário público da Guiné Equatorial fazendo
sexo em seu escritório e em outros lugares com diferentes mulheres.
Mas o que o resto do
mundo vê como apenas um escândalo de vídeos vazados pode, na verdade, ser o
episódio mais recente de um verdadeiro drama da vida real sobre quem se tornará
o próximo presidente do país da África Central.
Os vídeos inundaram
as redes sociais, chocando
e excitando as pessoas no pequeno país africano e além.
Muitas das mulheres
filmadas são esposas e parentes de pessoas próximas ao centro do poder.
Aparentemente, algumas
sabiam que estavam sendo filmadas fazendo sexo com Baltasar Ebang Engonga, que
também é conhecido como "Bello" por conta de sua aparência.
Tudo isso é difícil de
verificar, pois a Guiné Equatorial é uma sociedade altamente restrita, onde não
existe imprensa livre.
Mas uma teoria é que
os vazamentos são uma forma de desacreditar o homem no centro do escândalo.
Engonga é sobrinho do
presidente Teodoro Obiang Nguema e um dos que supostamente esperam
substituí-lo.
Obiang é o presidente
mais antigo do mundo, estando no poder desde 1979.
Hoje com 82 anos, ele
governou o país durante um período de forte crescimento econômico, que se
transformou em colapso como resultado de reservas de petróleo agora em
declínio.
Há uma elite pequena e
extremamente rica no país, mas muitos de seus 1,7 milhão de habitantes vivem na
pobreza.
A administração de
Obiang é duramente criticada por seu histórico de violações de direitos
humanos, incluindo assassinatos arbitrários e tortura, de acordo com um
relatório do governo dos Estados Unidos.
A gestão também teve
sua cota de escândalos – incluindo as revelações sobre o estilo de vida luxuoso
de um dos filhos do presidente, agora vice-presidente, que já teve uma luva
incrustada de cristais de US$ 275 mil (R$ 1,6 milhão) usada por Michael
Jackson.
Apesar das eleições
regulares, não há oposição real na Guiné Equatorial, pois ativistas foram
presos e exilados e aqueles com planos de ocupar cargos eletivos são
monitorados de perto.
- Intrigas palacianas
A política no país é
rica em intrigas palacianas e é aí que o escândalo envolvendo Engonga se
encaixa.
Ele era o chefe da
Agência Nacional de Investigação Financeira e trabalhou no combate a crimes
como lavagem de dinheiro. Mas descobriu-se que ele próprio estava sob
investigação.
Ele foi preso em 25 de
outubro acusado de desviar uma grande quantia de dinheiro dos cofres públicos e
depositá-la em contas secretas nas Ilhas Cayman. Ele não comentou a acusação.
Engonga foi então
levado para a infame prisão de Black Beach na capital, Malabo, onde há
denúncias de que os oponentes do governo seriam submetidos a tratamento brutal.
Seus telefones e
computadores foram apreendidos e alguns dias depois os vídeos íntimos começaram
a aparecer online.
A primeira referência
que a BBC encontrou sobre eles no Facebook é de 28 de outubro na página do Diario Rombe, um site
de notícias administrado por um jornalista exilado na Espanha, que disse que
"as redes sociais explodiram com o vazamento de imagens e vídeos
explícitos".
Uma postagem no X (antigo
Twitter) no dia seguinte se referiu a um "escândalo monumental que abalou
o regime", enquanto "vídeos pornográficos inundavam as redes
sociais".
Mas acredita-se que
eles tenham aparecido originalmente alguns dias antes no Telegram, em um dos
canais da plataforma conhecidos por publicar imagens pornográficas.
Eles foram então
baixados para os telefones das pessoas e compartilhados entre grupos do
WhatsApp na Guiné Equatorial, onde causaram uma tormenta.
Engonga foi
rapidamente identificado junto com algumas das mulheres nos vídeos, incluindo
parentes do presidente e esposas de ministros e altos oficiais militares.
O governo não
conseguiu ignorar o que estava acontecendo e, em 30 de outubro, o
vice-presidente Teodoro Obiang Mangue deu às empresas de telecomunicações 24
horas para encontrar maneiras de impedir a disseminação dos vídeos.
"Não podemos
continuar a assistir famílias se desintegrarem sem tomar nenhuma
atitude", ele escreveu no X.
"Enquanto isso, a
origem dessas publicações está sendo investigada para encontrar o autor ou
autores e fazê-los responder por suas ações."
Como o equipamento de
informática estava nas mãos das forças de segurança, a suspeita recaiu sobre
alguém de lá, que, talvez, tenha tentado destruir a reputação de Engonga antes
de um julgamento.
A polícia pediu que as
mulheres se apresentem para abrir um novo processo contra Engonga pelo
compartilhamento não consensual de imagens íntimas. Uma delas já anunciou que
está processando ele.
O que não está claro é
por que Engonga fez as gravações.
Mas ativistas
apresentaram o que poderiam ser outros motivos por trás do vazamento explosivo.
Além de ser parente do
presidente, Engonga é filho de Baltasar Engonga Edjo'o, chefe da Comunidade
Econômica e Monetária da África Central (Cemac), e muito influente no país.
"O que estamos
vendo é o fim de uma era, o fim do atual presidente, e há uma [questão] de
sucessão e esta é a luta interna que estamos vendo", disse o ativista
equato-guineense Nsang Christia Esimi Cruz, atualmente morando em Londres.
Falando ao podcast BBC
Focus on Africa, ele alegou que o vice-presidente Obiang estava tentando
eliminar politicamente "qualquer um que pudesse desafiar sua
sucessão".
- Disputa pelo poder
O vice-presidente,
junto com sua mãe, são suspeitos de estar afastando qualquer um que ameace seu
caminho para a presidência, incluindo Gabriel Obiang Lima (outro filho do
presidente Obiang de uma esposa diferente), que foi ministro do petróleo por
dez anos e depois passou para um papel secundário no governo.
Acredita-se que
aqueles na elite saibam coisas uns sobre os outros que prefeririam que não
fossem tornadas públicas, e vídeos foram usados no passado para humilhar e
desacreditar oponentes políticos.
Há também acusações
frequentes de conspiração de golpe, o que alimenta ainda mais a paranoia.
Mas Cruz também alega
que as autoridades querem usar o escândalo como uma desculpa para reprimir as
redes sociais, que é como muitas informações sobre o que realmente está
acontecendo no país vazam.
Em julho, as
autoridades suspenderam temporariamente a internet após protestos na ilha de
Annobón.
Para ele, o fato de um
alto funcionário estar fazendo sexo fora do casamento não é surpreendente, pois
faz parte do estilo de vida decadente da elite do país.
O vice-presidente, que
foi condenado por corrupção na França e teve bens luxuosos apreendidos em
vários países, quer ser visto como o homem que reprime a corrupção e os
malfeitos em casa.
No ano passado, por
exemplo, ele ordenou a prisão de seu meio-irmão por alegações de que ele vendeu
um avião de propriedade da companhia aérea estatal.
Mas neste caso, apesar
dos esforços do vice-presidente para impedir a disseminação dos vídeos, eles
continuam a ser vistos.
Esta semana, ele
tentou parecer mais resoluto pedindo a instalação de câmeras de segurança em
escritórios do governo "para combater atos indecentes e ilícitos",
informou a agência de notícias oficial.
Dizendo que o
escândalo havia "prejudicado a imagem do país", ele ordenou que
qualquer funcionário encontrado envolvido em atos sexuais no trabalho fosse
suspenso, pois isso seria uma "violação flagrante do código de
conduta".
Ele não estava errado
ao dizer que a história atraiu muito interesse externo.
Pelos dados do Google,
pesquisas com o nome do país dispararam desde o início desta semana.
Na segunda-feira
(4/11), no X, "Guiné Equatorial" foi um dos principais termos de
tendência no Quênia, Nigéria e África do Sul – superando às vezes o interesse
na eleição dos EUA.
Isso deixou alguns
ativistas que tentavam contar ao mundo o que realmente está acontecendo no país
frustrados.
"A Guiné
Equatorial tem problemas muito maiores do que esse escândalo sexual",
disse Cruz, que trabalha para uma organização de direitos humanos chamada GE
Nuestra.
"Este escândalo
sexual para nós é apenas um sintoma da doença, não é a doença em si. Apenas
mostra o quão corrupto o sistema é."
Fonte: A Terra é
Redonda/BBC News
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