'Trump não é liberal' como pensam: as
polêmicas propostas do novo presidente dos EUA para a economia
A retórica do Estado
mínimo, até recentemente muito associada à imagem
que o mundo tinha do liberalismo americano, ficou em
segundo plano no debate eleitoral que levou Donald Trump à Presidência pela segunda vez.
O republicano
concorreu prometendo aumentar as barreiras ao comércio internacional e expandir
subsídios e isenções de impostos para os americanos, uma plataforma que se aproximou do populismo econômico e
rompeu com a ideologia que até recentemente predominava em Washington, a do
livre mercado.
A ideia de que o
Estado deve restringir sua atuação a funções básicas, desregulamentar a
economia e não interferir no comércio entre países ganhou força com o fim da
Guerra Fria e chegou a ser promovida pelos EUA em regiões como a América Latina
por meio de organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial.
Mas entrou em crise na
última década, dizem os especialistas ouvidos pela reportagem, o que ajuda a
explicar a mudança representada por Trump no primeiro mandato e seu retorno ao
poder.
"Liberal [ele]
não é, né?", diz Luciano Sobral, economista-chefe da Neo Investimentos, em
entrevista à BBC News Brasil. "Pensando em política econômica, no que a
gente costuma associar ao liberalismo econômico, Trump está sinalizando na direção
contrária. Um governo que está aparentemente pouco preocupado com a austeridade
fiscal, que não defende o livre comércio, muito pelo contrário", completa.
"A política de
aumento de tarifa de importações, de fechamento da economia ao comércio
internacional, a política pública de reindustrialização, que envolve uma
atuação do governo mais firme… tudo isso vai no sentido contrário do
liberalismo econômico", concorda Armando Castelar, coordenador de economia
aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas
(Ibre-FGV) e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (IE/UFRJ).
Se não é liberal, a
agenda de Trump também não se encaixa exatamente nas ideologias econômicas
clássicas, dizem os economistas ouvidos pela reportagem.
"Keynes dizia que
os homens práticos são escravos de algum economista morto, mas não tem nenhum
economista morto guiando [a agenda de Trump]", observa Sobral,
referindo-se ao fato de que não parece haver um ideólogo por trás da plataforma
econômica do republicano. "É um monte de coisa misturada", completa.
A política comercial
protecionista e a ideia de que o país precisa ter saldo positivo na balança
contra todos os seus parceiros comerciais, ele exemplifica, se aproximam do
mercantilismo, modelo que vigorou na Europa antes da Revolução Industrial.
"É um discurso
nacionalista", acrescenta diz Armando Castelar. "As propostas têm
como linha mestra a ideia de que são voltados para favorecer os cidadãos e as
empresas americanas. Aumentar tarifa é algo que, na minha leitura, acaba
prejudicando mais do que ajudando, mas o discurso é nacionalista."
·
Agenda Trump
A promessa de elevação
generalizada das tarifas de importação praticadas
pelos Estados Unidos é
uma das que suscitam maior preocupação entre especialistas, inclusive por seus
possíveis impactos na economia global.
Trump falou em
aumentar as alíquotas para um patamar entre 10% e 20% para todos os parceiros
comerciais, além de 60% para produtos da China, e prometeu sobretaxas de mais
de 100% em circunstâncias específicas.
Na visão do
republicano, o "tarifaço" incentivaria as empresas a produzirem mais
localmente e a criar empregos no país.
A maioria dos
especialistas discorda. Em uma consulta realizada pelo jornal americano The
Wall Street Journal com 39 economistas, todos desaprovaram a medida, a única
unanimidade diante de uma lista de propostas polêmicas das candidaturas tanto
do republicano quanto de sua oponente derrotada, a democrata Kamala Harris.
A avaliação é de que a
medida pode reduzir o fluxo do comércio global, com desaceleração da atividade
econômica em diversos países, e aumentar a inflação nos EUA, processo que, em
última instância, fortalece o dólar e deixa a moeda americana mais cara.
O protecionismo
tarifário, como é chamado no jargão econômico, "ou vira inflação ou vira
redução de demanda", pontua José Francisco de Lima Gonçalves,
economista-chefe do Banco Fator.
Ele explica com um
exemplo ilustrativo da China. Os americanos ou não fabricam ou têm capacidade
reduzida para produzir o que importam do país asiático.
Se, de uma hora para
outra, esses importados forem sobretaxados, o americano ou vai topar pagar mais
caro para ter acesso ao produto de qualquer forma (o que os economistas chamam
de demanda pouco elástica), processo que alimenta a inflação, ou vai deixar de
comprar porque acha que ele ficou caro demais, com impacto na redução do
consumo.
·
Subsídios, isenções e
deportação em massa
Outra proposta que
teve apelo entre eleitores e desagrada economistas é a de tornar permanente uma
série de cortes de impostos que Trump instituiu em 2017, em seu primeiro
mandato, e que deveriam ser temporários, com previsão para perderem a validade
em 2025.
Esse é um roteiro
bastante conhecido no Brasil: benefícios fiscais que nascem com data de
validade e acabam se perpetuando indefinidamente. Um exemplo é a desoneração da folha de pagamentos, instituída em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, com
caráter provisório, mas que acabou sendo ampliada e segue em vigor mais de uma
década depois.
"Eles
[americanos] não estão muito acostumados com isso porque não é da natureza do
debate político deles de curto prazo. A gente [o Brasil] é catedrático nesse
tema, infelizmente", diz Livio Ribeiro, pesquisador associado do Ibre-FGV
e sócio da BRCG Consultoria.
Além da perenização do
Tax Cuts and Jobs Act — o pacote de 2017 que deveria caducar em 2025 —, o
republicano lançou uma série de outras propostas que preveem subsídios e
isenções, ressalta o economista Steven Kamin, pesquisador sênior do centro de
pesquisa American Enterprise Institute.
Entre elas está a de
isentar de impostos as gorjetas
de quem trabalha no setor de serviços, ideia
que acabou sendo também abraçada pela campanha de Kamala Harris.
Além do custo para as
contas do governo, economistas avaliam que a medida pode distorcer o mercado de
trabalho, já que beneficiaria uma quantidade pequena de trabalhadores de baixa
renda.
Outra promessa
considerada populista que fez sucesso com o eleitorado trumpista e que Kamin
considera que pode produzir grande impacto negativo na economia americana é a
de deportar milhões de imigrantes sem documentos.
A mão de obra dos
imigrantes, ele argumenta, é hoje a base de setores como a construção e
diversos segmentos de serviços, especialmente os que pagam menores salários.
A redução dessa força
de trabalho, além de criar um problema para essas indústrias no curto prazo,
alimentaria mais inflação.
·
Liberalismo no divã
O rompimento que Trump
representa se encaixa em um processo mais amplo, dizem os economistas ouvidos
pela BBC News Brasil, com repercussões que vão além dos EUA.
A globalização
provocou profundas transformações na estrutura da economia americana: a
indústria perdeu importância, parte da produção foi reorientada principalmente
para a Ásia e os serviços passaram a ser o principal motor de crescimento,
respondendo hoje por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) americano pelo lado da
oferta.
Em paralelo, países
como a China viram suas economias crescerem e ganharem importância geopolítica.
Os EUA continuam sendo
o país mais rico do mundo, mas perderam o protagonismo e a influência que
tiveram no pós-Segunda Guerra e no período logo depois do colapso da União
Soviética.
"Os EUA promoviam
o liberalismo quando eram os grandes competidores internacionais na produção de
manufaturados", pontua Armando Castelar.
"Queriam promover
porque eram exportadores. Conforme essa competitividade vai desaparecendo, a
motivação vai desaparecendo também."
Do ponto de vista dos
eleitores, a transição de uma economia baseada na manufatura para uma economia
de serviços é "dolorosa", diz o economista-chefe da Genial
Investimentos José Márcio Camargo, e ajuda a explicar porque o discurso do
republicano tem apelo entre uma fatia grande da população.
"Não é uma
transição suave. A demanda por trabalho pouco qualificado diminui, e isso vira
um problema político", ele completa, referindo-se ao desemprego gerado
pela transferência de parte da produção para outras regiões do planeta.
Nesse sentido, para o
economista Francis Fukuyama, o grande recado das urnas neste 5 de novembro foi
a rejeição dos americanos ao liberalismo.
Em um artigo no no
jornal britânico Financial Times, ele avalia que a história americana vive uma
nova fase e que o segundo mandato de Trump tem potencial ainda maior do que o
primeiro para ser um divisor de águas.
"A extensão da
vitória republicana, da Presidência ao Senado e provavelmente também à Câmara
dos Deputados, será interpretada como um forte mandato político que confirma
estas ideias e permitirá a Trump agir como bem entender."
¨ A necessidade de rever os fundamentos da economia. Por Luís
Nassif
Uma nova crise que se
avizinha, e repete-se mais uma vez o ocorrido no início nas três últimas
décadas do século 19 e nas primeiras do século 20.
Há uma revolução
industrial em curso, abrindo enormes possibilidades de negócios para os
detentores de capital. Vende-se o peixe do livre fluxo de capitais e há uma
invasão do capital gafanhoto nos países emergentes. Abrem-se negócios com
endividamento dos entes públicos, investimentos em serviços públicos
(regiamente remunerados pelo governo, como foi o caso das ferrovias). E o
excesso de liquidez leva a uma apoteose de novas formas de especulação até um
fato qualquer provocar a explosão da bolha.
Hoje em dia, o mercado
está cada vez mais coalhado de toda sorte de operações, dos ETFs ou fundos de
índices, contratos de opções (apostas em torno de cotações futuras de ativos),
carry trade (pegar emprestado em uma moeda de juros baixos para aplicar em
outra de juros altos), culminando com o mercado de blockchains. E toda essa
balbúrdia controlada por fundos de investimentos que não respondem aos bancos
centrais nacionais – como o sistema bancário convencional.
Nesses anos todos de
balbúrdia financista, a economia mundial desacelerou, a desigualdade aumentou,
e a macroeconomia foi tratada como uma ciência exata, sem necessidade de
agregar conhecimento setoriais, comprovação empírica. Tornou-se dogmática, em
cima de medidas impossíveis de comprovar, como taxa de juros neutra, PIB
potencial e por aí vai.
Nos idos dos 90,
conversando com alguns físicos, me dei conta de uma diferença fundamental entre
seu método científico e o do economista. O economista – e as ciências sociais
em geral – tendem a tratar a realidade como um processo contínuo, como se o
futuro fosse uma mera extrapolação do passado. Já o físico analisa um corpo.
Qualquer mudança, por mais microscópica que seja, gera um novo corpo, com
outras características.
Daí a importância de
agregar ao conhecimento macroeconômico não apenas a visão de políticas
monetária e fiscal, mas conhecimento sobre setores econômicos, sobre a lógica
da tomada de decisão dos empresários, sobre aspectos sociais e políticos e,
principalmente, a capacidade de analisar empiricamente o momento.
Foi essa falta de
análise da realidade que levou o Real a arrebentar a economia, ao não prever o
desaquecimento acelerado de fins de 1994, e o mesmo ocorrer com o pacote de
Joaquim Levy.
É por isso que, em
muitos setores, tenta-se rever a fundamentação teórica da economia e defender a
incorporação de novas formas de conhecimento.
É o caso de Dennis J.
Snower e David Sloan Wilson – ambos ligados a duas organizações sem fins
lucrativos – em seu trabalho “Anunciando um novo paradigma para a economia”.
Nele, defendem que a economia tem que agregar outras formas de conhecimento
para dar conta das mudanças ocorridas no mundo.
Em economia, os
tomadores de decisão são famílias, empresas e governo, e eles são assumidos
como tomadores de decisão individualizados, como se fossem unidades coesas e
coerentes, dizem eles, cujas decisões se baseiam em expectativas racionais.
Hoje em dia o jogo é
outro. Quem disse que os agentes econômicos são necessariamente famílias,
empresas e governo? Quem são os agentes econômicos depende de como as pessoas
formam grupos sociais. E esses grupos sociais podem ser coesos o suficiente
para serem considerados uma unidade de tomada de decisão em algum nível. E como
todo ser humano tem algum grau de autonomia, geralmente a agência é
compartilhada entre o indivíduo e os grupos dos quais você participa.
A partir dessa visão,
eles defendem a teoria econômica multinível. Percepções, crenças e objetivos
fazem parte de um pacote, uma identidade particular, que lhes dá motivações
particulares.
Quando se vive em um
mundo competitivo, suas crenças serão pensamento de soma zero e seus objetivos
serão individuais. É o que se vê hoje com a fantasia do empreendedorismo e da
fé como saídas individuais.
E aí criam-se desafios
enormes para os objetivos de viver em harmonia com o mundo natural e em
harmonia uns com os outros. Há a necessidade de moldar grupos, níveis e
domínios de organização funcional, para que possam cooperar.
A economia neoclássica
não aceita a ideia de que só se pode entender a economia se entender a
estrutura social na qual está inserida. E o ambiente fornece o contexto no qual
se tomam as decisões.
Outra característica
desse novo pensamento é a incerteza como elemento central.
A economia neoclássica
trabalha com o conceito de risco, com base em distribuições de probabilidade.
Na economia, o
conceito básico é o da eficiência.
“Mas se você não
conhece suas restrições, não tem clareza sobre o mundo em que opera e seus
objetivos estão evoluindo em resposta ao mundo, então esse conceito de
eficiência não tem mais muita força. Outros conceitos se tornam importantes,
que geralmente são diametralmente opostos à eficiência, como resiliência,
robustez e adaptabilidade particular”
No paradigma
multinível, o ponto central é a incompreensibilidade do mundo. Portanto, a
modelagem econômica tem que ser feita em termos de pequenos mundos, pequenos
modelos mentais que podemos gerenciar e encaixar em nossas cabeças. Trazendo
para o Brasil, como pensam os evangélicos, e a Faria Lima, e os sindicatos?
Conforme você avança e
se surpreende com o que o mundo faz em contraste com o que sua teoria prevê,
você tem um espaço cognitivo mais amplo para lidar com as surpresas, dizem
eles.
A tomada de decisão
multinível opera no nível do indivíduo, mas também do bem-estar dos coletivos.
“Portanto, nosso bem-estar não depende apenas dos bens e serviços que obtemos
ou que produzimos por meio dos recursos que tomamos da Mãe Terra, mas também depende
de nossa inserção na sociedade, nossa realização pelo pertencimento social e
nosso senso de agência, ou até que ponto podemos moldar nossa vida por meio de
nossos próprios esforços”.
Com a emergência
climática, entra em cena a contribuição para o mundo natural, as formas de
preservá-lo, de se sentir administrador responsável por ele. Trata-se de
compreensão muito mais ampla de bem estar do que as funções de utilidade dos
economistas, que dependem simplesmente do consumo e do lazer, dizem eles.
Fonte: BBC News/Jornal
GGN
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