segunda-feira, 11 de novembro de 2024

“Se não agirmos rapidamente, o número de pessoas que sofrem de fome extrema aumentará”, garante Lola Castro

Um relatório recente alerta para um aumento nos países nos quais há regiões onde a falta de alimentos e água é praticamente total, uma crise em grande parte impulsionada por conflitos e danos climáticos.

O panorama é sombrio. O número de pessoas que não têm nada para comer hoje ou amanhã aumentará entre agora e maio de 2025. Os conflitos, mas também a devastação climática, alimentam a fome, que é usada em alguns casos como arma de guerra, e os recursos que são atribuídos à prevenção e a assistência humanitária diminuíram em 2024, pelo segundo ano consecutivo. “Temos um problema gravíssimo em 22 países e em cinco deles a situação é catastrófica. Se não agirmos rapidamente, o número de seres humanos que sofrem de fome extrema aumentará significativamente nos próximos meses”, alerta Lola Castro, diretora regional para a América Latina e o Caribe do Programa Alimentar Mundial da ONU (PMA).

O tempo é curto. O PMA, que fornece alimentos a mais de 120 países e territórios, e outra agência da ONU, a FAO, acabam de publicar um relatório no qual apontam a gravíssima situação em cinco países: SudãoPalestinaSudão do SulHaiti e Mali , onde, se nada acontecer, o conflito, as deslocações em massa, a devastação climática e a ajuda humanitária insuficiente colocarão em risco a vida de centenas de milhares de pessoas que não têm acesso aos alimentos mínimos necessários. A eles se somam outros 17 Estados que já estão próximos da catástrofe por falta de alimentação e água adequadas. A ONU chama-os de “pontos críticos” da fome.

<><> Eis a entrevista.

·        Na ONU, avaliam a fome de 1 a 5. O que significa na prática estar na fase 5 ou catastrófica?

Significa que você acorda de manhã e não tem nada para o café da manhã. O dia avança e ainda não há nada para comer, quando muito algo que se conseguiu ao sair para a rua, muitas vezes ervas cozidas, como aconteceu em Gaza, para dar às crianças e evitar que chorem de fome. Pais e mães não comem. E assim dias e dias. São famílias que vivem superlotadas, em sua maioria deslocadas em locais inadequados, como barracas precárias. São pessoas que, além de não conseguirem comer, não conseguem beber água em boas condições e não têm acesso a qualquer saneamento. Não existem banheiros dignos desse nome para fazer suas necessidades e isso afeta principalmente as mulheres. Ou seja, eles não têm chance de ter uma vida razoavelmente normal. É uma situação desesperadora.

·        Que alerta este relatório envia?

Temos um problema muito grave em 22 países, mais quatro do que no nosso último relatório de maio, e em cinco deles a situação é catastrófica. Se não agirmos rapidamente, o número de seres humanos que sofrem de fome extrema aumentará significativamente nos próximos meses. Os conflitos, as alterações climáticas e as dificuldades econômicas estão a mergulhar muitas pessoas em problemas que não serão resolvidos rapidamente e que poderão piorar. Precisamos de acesso seguro e de mais recursos para agir, porque em termos proporcionais, a percentagem da população destes países que sofre de fome extrema é muito elevada. Por exemplo, em Gaza quase ninguém come todos os dias e no Haiti quase metade da população sofre de insegurança alimentar. É a segunda vez na história da América Latina e do Caribe que uma população entra em situação de fome extrema, depois da registrada em 2022, também no Haiti.

O conflito é uma das maiores causas da fome, porque limita o acesso aos alimentos e é por isso que a fome pode ser considerada, em alguns casos, uma arma de guerra.

·        A senhora enfatiza que os conflitos são o grande acelerador da fome. A fome se tornou uma arma de guerra?

Neste momento, o conflito é uma das maiores causas da fome, porque limita o acesso aos alimentos e é por isso que a fome pode ser considerada em alguns casos uma arma de guerra. Em muitos lugares, vemos como as infraestruturas básicas foram destruídas para que as pessoas possam ter acesso a alimentos e água. Estou falando de estradas, mercados, centros de apoio nutricional para crianças...

·        Neste momento, confirma-se a fome no campo de deslocados de Zamzam, no Sudão, mas a senhora reconhece no seu relatório que existem outras situações igualmente graves, que, por falta de dados, não podem ser classificadas como tal.

Para declarar fome, certas condições têm de ser cumpridas e há critérios que temos de confirmar. No Zamzam essas informações foram coletadas. Temos de ter cuidado quando tomamos como certo algo que não conseguimos explicar, mas sim, há claramente zonas de catástrofe com uma possibilidade real de já estar a ocorrer fome. Nosso objetivo é tirar o maior número de pessoas dessa fase crítica, para prevenir. A prevenção é muito difícil de orçamentar e avaliar, mas deve centrar o nosso trabalho. É necessário encontrar soluções duradouras para evitar a necessidade de prestar ajuda humanitária às populações que sofrem diariamente de fome.

·        No Haiti, um dos cinco países em situação catastrófica, 18% da população sofre de extrema insegurança alimentar e 6.000 pessoas estão em situação catastrófica, talvez de fome. O que é o acesso às áreas mais vulneráveis e violentas?

O acesso é negociado dia a dia. Com as comunidades, com as ONG, com as associações católicas e também com as gangues (gangues criminosas). Se nos garantirem que respeitarão a ajuda humanitária, vamos em frente. Das 175 mil pessoas deslocadas em Porto Príncipe, a capital, já tivemos acesso a cerca de 130 mil ou 135 mil, mas o número aumenta a cada dia. Desde 2017, a situação piorou. Há um ano, a fome assolava os habitantes da capital, mas agora o conflito avança.

Os conflitos, as alterações climáticas e as dificuldades econômicas estão a mergulhar muitas pessoas em problemas que não serão resolvidos rapidamente e que poderão piorar. Precisamos de acesso seguro e de mais recursos para agir

·        Então, a fome também.

Sim. As bandas começam a atuar em zonas produtivas do país onde até agora era possível ter uma vida mais ou menos normal. As pessoas não têm acesso aos seus campos, não podem viajar pelas estradas, não podem vender os seus produtos e são frequentemente extorquidas por criminosos. Se não pagarem, eles os matam. Estamos a falar de pessoas que antes eram autossuficientes e que agora se juntam às fileiras dos famintos. Até então, só haviam sofrido falta de alimentos devido a furacões ou terremotos.

·        Haverá algumas notícias positivas em meio a este desastre?

Há. Por exemplo, a Grande Muralha Verde contra a desertificação, no Sahel. Meio milhão de pessoas deixaram de passar fome graças a este novo sistema de trabalho, do qual participam vários governos e agências da ONU. Outra observação que nos infunde otimismo é que na África grande parte dos alimentos adquiridos para prestar ajuda humanitária são produzidos localmente. E outro aspecto positivo são os manguezais, que em muitos lugares foram cortados e se os replantarmos evitamos que a água entre nas culturas costeiras e incentivamos peixes e mariscos próprios para consumo naquela vegetação. Estamos fazendo isso na América Latina e no Caribe.

·        É também uma forma de aliviar os estragos das alterações climáticas, outra das causas da fome.

Antes fenômenos como El Niño e La Niña ocorriam a cada dois ou três anos, agora chegam todos os anos. É muito preocupante. Este ano, na América Latina e no Caribe tivemos incêndios na Amazônia, inundações causadas por furacões que ocorrem fora de época, secas na América Central que causaram a perda de 25% das colheitas e estão sendo seguidas de inundações... Ninguém pode agora questionar o terrível efeito das alterações climáticas em todos os nossos países.

·        Já há algum tempo que está em cima da mesa a necessidade de descentralizar a cooperação e dar mais destaque aos intervenientes locais no trabalho de prevenção e implementação de soluções duradouras.

Trabalhamos cada vez mais com as comunidades para melhorar a vida das pessoas. Os sistemas alimentares não funcionam bem, estão cheios de desigualdades e contradições. Os sistemas agrícolas devem ser adaptados e diversificados para torná-los mais resilientes às alterações climáticas, para que a produção não seja paralisada em caso de fenómeno extremo. Damos grande importância ao conhecimento ancestral para resolver problemas alimentares. Por exemplo, na América do Sul existem cerca de 600 cereais, mas as pessoas comem três ou quatro. E as comunidades também são cruciais no respeito pela biodiversidade. Todos os dias perdemos sementes, plantas ou animais que podem nos ajudar a sobreviver.

·        A ajuda humanitária diminui. Para 2024, a ONU lançou um apelo para cerca de 49 mil milhões de dólares e em agosto apenas 29% deste montante tinha sido alcançado. O valor é ainda menor que o alcançado em 2023 nesse mesmo período. Somos menos generosos ou há mais necessidades?

O dinheiro existe, mas talvez não esteja sendo colocado no lugar certo e as necessidades continuam aumentando. Os fundos estão sendo utilizados principalmente em conflitos, que parecem estar em concorrência direta com pessoas afetadas pela fome, pelas alterações climáticas ou por crises econômicas.

 

¨      “O tema da segurança alimentar veio para ficar, como aconteceu com a crise climática”, diz Mario Lubetkin

Mario Lubetkin (Montevidéu, 63 anos) tem bem poucas razões para se mostrar otimista, mas após um bom tempo lidando com números pavorosos, que indicam que apesar dos avanços tecnológicos, a fome no mundo só piora, deixa escapar um fio de otimismo. Em suas idas e vindas pelo globo, o subdiretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) detectou que talvez alguma coisa esteja mudando. Se antes era enviado para tratar com o ministro da Agricultura da vez, agora, são os chefes de Estado que recorrem a organizações como a sua.

Em entrevista para Ana Carbajosa, publicada por El País, Lubetkin considera que estão cada vez mais conscientes de que a fome e o seu reverso, a obesidade, são uma fábrica de insatisfação e instabilidade política e de que a solução é transversal e passa irremediavelmente pelos Estados. A tempestade perfeita de desigualdade, crise climática, guerra e inflação requer soluções que transcendam os vaivéns políticos.

<><> Eis a entrevista.

·        Aumenta o número de pessoas que passam fome no mundo, apesar de sermos capazes de produzir mais e melhores alimentos. O que está acontecendo?

Os dados são negativos. Falam de 828 milhões de pessoas que passam fome e cerca de 700 milhões que sofrem obesidade ou sobrepeso. Não é possível pensar em segurança alimentar sem pensar em todo o circuito, que vai do manejo da terra à qualidade das sementes, o uso da água e o apoio aos agricultores familiares que representam mais de 80% dos produtores.

·        Sabemos o que é necessário fazer, mas não agimos. A política está falhando?

Nos anos 1990, 1 bilhão de pessoas passavam fome. Isso diminuiu para 600 e, agora, voltou a aumentar. Há uma causa clara que são os conflitos militares. No Sudão, na Somália... desde 2004, os conflitos militares aumentaram dramaticamente, mas há mais fatores, como o desperdício de alimentos. Temos capacidade de produzir para 8 bilhões de pessoas do planeta, mas um terço da produção se perde ou não chega ao consumidor.

·        Não mencionou a guerra na Ucrânia, o bloqueio à exportação de grãos e o alto custo dos fertilizantes russos.

Não se pode analisar como um fato isolado. É uma situação que arrastamos há muitos anos. É preciso levar em conta o cenário anterior à guerra, porque é uma combinação explosiva. Junto às desigualdades, somaram-se a covid e à crise climática, que é a primeira causa. A Ucrânia é só um pedaço dessa história. Os fertilizantes russos continuarão chegando, só que mais caros. Ainda não sabemos quantas terras na Ucrânia continuam férteis, nem quantas estão minadas.

·        Na América Latina e no Caribe, o aumento da fome é especialmente alto.

Nessa região, existem 26 países que dependem de grãos importados e 85% dos fertilizantes vêm de fora. Os alimentos, aqui, têm uma incidência maior na inflação do que em outros lugares. É inadmissível. Temos capacidade de produzir alimentos para 1,3 bilhão de pessoas e uma população que não passa de 700 milhões e, no entanto, 7,5% das crianças menores de cinco anos passam fome.

·        Quais são as consequências políticas da fome? Crescem a insatisfação e a polarização, bem como a possibilidade de explosões sociais.

Existe algo que é novo. Nunca antes vi tantos presidentes preocupados com a alimentação. Antes, o diretor regional da FAO se reunia apenas com os ministros da Agricultura, com institutos especializados, mas, agora, sabem que existe uma relação cada vez maior entre a segurança alimentar e a estabilidade socioeconômica e política. Não é uma questão de partidos políticos. É um tema transversal. O tema da segurança alimentar veio para ficar, como aconteceu com a crise climática. Qualquer Governo que surja terá que lidar com isso. É uma mudança profunda.

·        Os governantes estão mais conscientes?

A covid ajudou a aumentar a consciência, a grande questão é se os números no futuro refletirão esta nova tomada de consciência. Se não se restringirá apenas a declarações. Nessa região, com a covid, passou-se de 43 milhões para 56 milhões de pessoas que passam fome, ou seja, um aumento de 30%. Mas, há lições aprendidas. O Caribe, por exemplo, vivia do turismo e com as receitas importava alimentos. Com a pandemia, o turismo despencou e agora cogitam produzir um mínimo de 25% dos alimentos, dentro dos países, porque possuem condições perfeitas de terra, de água.

·        Mais produção interna, menos globalização.

Eu não usaria o termo “menos globalização”. Seria uma globalização diferente.

·        Nesse novo cenário, qual seria o papel da cooperação internacional?

Acabar com a fome não passa apenas pela ajuda da cooperação internacional de países sensíveis que sempre ajudaram, passa pelos orçamentos dos Estados.

·        Aí, entram em jogo as leis e os parlamentos nacionais.

Os governos são os principais responsáveis, mas os parlamentos devem legislar e facilitar e o setor privado tem que assumir sua responsabilidade.

·        As leis tornam mais difícil a reversão das conquistas, quando ocorre uma mudança política.

Os processos não são estáticos. Olhe para o Brasil. Em 2014, tiramos o país do mapa da fome, mas, em 2022, voltou aos números de 2002. São processos dinâmicos e podem retroceder. As leis ajudam a dar maior continuidade. Na América Latina, os parlamentos votaram pelo menos 80 leis que têm a ver com elementos de segurança alimentar e que, sem dúvida, ajudaram milhões e milhões de pessoas.

 

¨      As guerras estão devorando o mundo. A fome (em aumento) multiplica as crises

Entre as primeiras causas da escassez de alimentos estão os conflitos civis. Mas também incidem fenômenos naturais ligados ao aquecimento global do planeta e aos choques econômicos agravados pela pandemia Coronavírus. A maioria dos países em sofrimento se encontra no continente africano: fragilidades que causam o êxodo de milhões de pessoas. O "Relatório Global sobre a Crise Alimentar" (Grfc) foi publicado ontem pela rede FSIN.

Comentários e análises derivadas dos estudos de diversas agências internacionais descrevem uma situação radicalmente agravada no último ano. Guerras civis, crises econômicas e desastres ambientais são as principais causas dos altos níveis de insegurança alimentar registrados durante o ano de 2022 no mundo.

A maioria dos países analisados pelo relatório está localizada no continente africano. A fragilidade desses sistemas políticos e econômicos muitas vezes causaram o êxodo de milhões de pessoas que atualmente vivem como refugiados em outros estados ou são deslocados internos do próprio país.

<><> As ajudas humanitárias

Segundo dados de 2022, 40% dos necessitados vivem na Etiópia, República Democrática do Congo (RD), Nigéria, Iêmen e Afeganistão. As tensões ainda são altas em todo o território da Etiópia que, durante cerca de dois anos, suportou uma complexa e sangrenta guerra civil. “A Etiópia hospeda mais de 800 mil refugiados principalmente do Sudão do Sul, Somália e Eritreia - afirma o Alto Comissariado da ONU para os refugiados (ACNUR). No entanto, 4,2 milhões de etíopes são deslocados internos, especialmente na região de Tigray, que precisam de ajuda alimentar".

Na Nigéria, onde recentemente foi eleito um novo presidente, Bola Tinubu, a situação continua a se gravar. Por causa da expansão jihadista e da colaboração com grupos armados do crime organizado, os deslocados no nordeste do país no ano passado foram "pelo menos 3 milhões", destacava o Programa alimentar mundial (Pam).

<><> A desnutrição

Na própria área da Nigéria, no entanto, existem mais de 8,4 milhões de civis sofrendo de desnutrição, outra das consequências que afligem grande parte do continente africano.

"Cerca de 35 milhões de crianças abaixo dos cinco anos em 30 países estudados sofrem de desnutrição – estima o Grfc que concentrou seu trabalho em 58 países do mundo. Cerca de 9,2 milhões deles sofrem de desnutrição aguda". Ambas as formas são a principal causa de mortalidade infantil na África, apesar de alguns progressos feitos no setor sanitário. Segundo o relatório, dois novos estados africanos se somaram à lista das piores situações de insegurança alimentar em curso: “A Guiné e a Mauritânia figuram pela primeira vez entre as principais crises alimentares – afirma o Grfc. Seus níveis de insegurança alimentar aguda são superiores aos relatados em 2021”.

Ambos os estados continuam sofrendo os efeitos da instabilidade política interna do país, é o caso da Guiné, ou ligada a um estado vizinho, como na relação entre a Mauritânia e o vizinho Mali envolvido em um conflito civil desde 2012. “Pelo quinto ano consecutivo, o número de pessoas atingidas pela insegurança alimentar está aumentando – afirmou Simone Garroni, diretora da Azione contra la fame (Acf). São sobretudo as guerras e os conflitos que provocam a fome".

<><> O aumento de preço

Em 38 países analisados, os pesquisadores do estudo encontraram um aumento substancial nos custos de produtos alimentares em mais de 10 por cento. A guerra entre a Ucrânia e a Rússia, grandes exportadores de trigo para a África, e os obstáculos causados pela pandemia de coronavírus renderam a situação ainda mais difícil. Mas também os vários fenômenos naturais que se abateram sobre numerosos países africanos, causando inundações, ciclones e secas, têm contribuído para o aumento dos preços dos alimentos. Caberá, portanto, à comunidade internacional agir o mais rápido possível para evitar que esse contexto se agrave em 2023.

 

Fonte: Entrevista de Beatriz Lecumberri, para o El País/Avvenire

 

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