quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Isabel Seta: Por trás da COP29 - governo prende jornalistas e ativistas que criticam questões climáticas

“É uma boa oportunidade para as autoridades encobrirem esses problemas de liberdade de expressão e liberdades políticas.” Foi assim que a jornalista Leyla Mustafayeva definiu a 29ª Conferência da ONU sobre mudanças climáticas (COP29), que começou na nesta segunda-feira (11 de outubro) para o governo do Azerbaijão.

Enquanto diplomatas e organizações ambientalistas veem o evento como a data mais importante do calendário global sobre o clima, para a mídia independente e ativistas do Azerbaijão, a COP29 é um problema.

Mustafayeva se referia à onda de prisões de jornalistas, ativistas, pesquisadores e lideranças políticas no país, já denunciadas como arbitrárias pela organização internacional Human Rights Watch (HRW) e condenadas, no final de outubro, pelo Parlamento Europeu.

“É como se esses problemas não existissem e como se o Azerbaijão fosse muito aberto a resolver as questões ambientais e climáticas. Eles [as autoridades do governo] estão se escondendo e escondendo suas atividades ilegais com a Conferência do Clima”, disse a jornalista em setembro, ao receber um prêmio em nome da Abzas Media, organização que ela dirige do exílio, em Berlim, por seu trabalho pela liberdade de imprensa.

Desde o ano passado, pelo menos 15 jornalistas já foram presos no país e podem ser condenados a longas sentenças, segundo o Comitê para Proteção dos Jornalistas (CPJ). Muitos deles trabalhavam para a Abzas Media, que também enfrenta acusações criminais. Além deles, vários defensores de direitos humanos e ativistas políticos foram encarcerados. Em setembro, Mustafayeva falou em um total de mais de 300 presos políticos.

“Os detidos arbitrariamente incluem um ativista anticorrupção crítico do setor de petróleo e gás do país e um defensor dos direitos humanos que cofundou uma iniciativa para advogar liberdades cívicas e justiça ambiental no Azerbaijão antes da COP29”, afirmou a Human Rights Watch.

Segundo organizações de direitos humanos, as autoridades do país têm um longo histórico de retaliação contra críticos do governo, comandado há 21 anos pelo presidente Ilham Aliyev – em 2003, ele sucedeu o pai, que presidiu o Azerbaijão por uma década.

Agora, essas organizações denunciam uma nova onda de detenções mal fundamentadas antes da COP29. “A repressão e o ambiente legal altamente restritivo para as operações de organizações sociais independentes ameaçam erradicar todas as formas de dissenso e o trabalho legítimo de direitos humanos”, afirmaram mais de 20 organizações em um comunicado emitido em setembro.

Em uma resolução aprovada em outubro, o Parlamento Europeu declarou que os abusos contra os direitos humanos no país são incompatíveis com a realização da conferência sobre o clima.

A crítica à onda de repressão se soma às preocupações ambientais com a realização do evento em um país altamente dependente de petróleo, que, junto com o gás natural, respondem por mais de 90% das exportações do Azerbaijão. O país, localizado nas montanhas do Cáucaso, é o 11º maior exportador de combustíveis fósseis do mundo (atrás do Brasil, que é o nono).

Segundo uma pesquisa da organização sem fins lucrativos Oil Change International, a estimativa é que a produção azerbaijana de gás e petróleo aumente 14% até 2035 – apesar de o país ter se comprometido a reduzir suas emissões de gases do efeito estufa em 35% nos próximos seis anos na comparação com 1990.

Em abril, o presidente chegou a dizer que o petróleo é um “presente dos deuses” e que defendia o direito do seu e de outros países de continuarem investindo na produção de combustíveis fósseis.

Às vésperas do evento, o diretor-executivo da COP29, o azerbaijano Elnur Soltanov, foi flagrado em uma gravação negociando “oportunidades de investimento” na companhia estatal de petróleo – segundo a consultoria Rystad Energy, a empresa tem 11 novos campos e projetos de expansão para serem aprovados até o final da década.

·        Economista preso criticava dependência dos fósseis

Entre as detenções denunciadas está a do economista Farid Mehralizada, conhecido por analisar indicadores econômicos do governo em canais da TV e colaborar como pesquisador para a organização europeia Radio Liberty. O economista publicava textos sobre temas como o impacto da pandemia na educação nacional, as reformas econômicas do governo, a migração interna e as privatizações.

Mehralizada falava abertamente sobre o problema econômico representado pelo setor petroleiro e sobre o desperdício de água nos sistemas de irrigação do país, castigado por secas severas.

“Eu acredito que a detenção dele foi motivada por vários fatores, um deles é a crítica pública que ele fazia sobre as políticas econômicas do Azerbaijão. Ele sempre alertou que a forte dependência de combustíveis fósseis representa sérios riscos para as pessoas e para o meio ambiente”, afirmou a esposa dele, Nargiz Mukhtarova.

O Comitê para Proteção dos Jornalistas e a Radio Liberty já se manifestaram pedindo a soltura do economista.

Em entrevista exclusiva à Agência Pública, Mukhtarova, que atua como ativista e pesquisadora dos direitos das mulheres no país, falou sobre a prisão do marido, o histórico de repressão no Azerbaijão e os impactos socioambientais do modelo econômico baseado em combustíveis fósseis.

A Pública questionou o governo do Azerbaijão sobre as detenções. A embaixada do país ainda não respondeu à reportagem – o texto será atualizado caso haja posicionamento. Em resposta à imprensa dos Estados Unidos, a embaixada azerbaijana em Washington contestou o relatório da Human Rights Watch e afirmou que todos os casos estão sendo analisados de forma apropriada. Disse, ainda, que o país é vítima de uma “campanha orquestrada de desinformação”.

·        Você escreveu um artigo sobre a prisão do seu marido, em maio. Pode contar o que aconteceu naquele dia e desde então?

No dia 30 de maio, meu marido, Farid, foi violentamente detido no centro de Baku [capital do país] por policiais à paisana. Eles colocaram um saco na cabeça dele e, mais tarde naquele dia, um grupo de policiais fez uma busca no nosso apartamento, confiscando o equipamento dele.

Farid foi levado para o principal departamento de polícia da cidade, onde foi interrogado por dois dias antes de o tribunal sentenciá-lo a quatro meses de prisão preventiva. Ele foi acusado de contrabando, em conexão com o caso da Abzas Media, mas não apresentaram evidências para essa acusação [a Abzas Media já declarou que Farid não tinha qualquer conexão com a organização]. Farid me contou, depois, que a prisão foi violenta, com ameaças e intimidações.

Na época, eu estava grávida de cinco meses, e o estresse daquele dia foi insuportável. Desde então, a prisão dele foi estendida para seis meses, e nossas vidas mudaram totalmente. Nós tivemos nossa filha durante esse período, mas Farid ainda não teve a chance de conhecê-la, perdendo esses primeiros meses preciosos da vida dela. Em agosto de 2024, adicionaram mais acusações, incluindo empreendimento ilegal, evasão fiscal, falsificação de documentos, o que estendeu a prisão até dezembro.

·        Você já falou sobre o trabalho crítico do Farid e os comentários públicos dele sobre a dependência do Azerbaijão de combustíveis fósseis. Você acredita que isso estaria por trás da prisão dele?

Eu acredito que a detenção dele foi motivada por vários fatores, um deles é a crítica pública que ele fazia sobre as políticas econômicas do Azerbaijão. Ele sempre alertou que a forte dependência de combustíveis fósseis representa sérios riscos para as pessoas e para o meio ambiente.

Farid dizia que essa abordagem é insustentável, não só porque contribui para a degradação ambiental, mas porque torna a população mais vulnerável à pobreza. Ele falava das secas crescentes impactando a nossa região, enfatizando como elas ameaçam a agricultura, reduzem a produtividade, aumentam a insegurança alimentar.

As críticas dele questionam os fundamentos da abordagem do governo, fazendo com o que o trabalho dele seja inerentemente arriscado no clima político atual.

·        O caso dele não é isolado. Como era a relação do governo com o jornalismo independente e com o ativismo climático e de direitos humanos há alguns anos atrás, antes do Azerbaijão ser anunciado como anfitrião da COP29? E como você vê a influência da conferência nessa relação?

A restrição de vozes independentes não é nova. Desde 2013, o governo do Azerbaijão mantém uma postura dura contra o jornalismo independente e o ativismo. Ao longo da última década, muitos veículos de comunicação foram forçados a fechar suas redações em Baku, enfrentando ações na Justiça e outras formas de intimidação.

A Radio Liberty, organização com a qual o Farid colabora, agora opera no exílio. Jornalistas e ativistas que falam de questões críticas – principalmente aquelas relacionadas a preocupações ambientais ou direitos humanos – são muito pressionados. O caso do Farid é emblemático de uma repressão maior contra vozes independentes.

·        Você pesquisa direitos das mulheres no Azerbaijão. Eu assisti a uma entrevista sua de quatro anos atrás sobre uma série de feminicídios e abusos contra mulheres no país. Alguma coisa mudou nesses últimos anos? Qual a situação hoje?

Existe uma dinâmica similar no caso dos direitos das mulheres, e, infelizmente, pouca coisa mudou nos últimos anos. As autoridades no Azerbaijão demonstram pouca preocupação com a segurança das mulheres, e o nosso sistema jurídico não é estruturado para apoiar as vítimas de forma efetiva.

Ainda existem lacunas significativas na legislação que deixam as mulheres vulneráveis. Por exemplo, feminicídio não é reconhecido como um crime distinto [diferente de homicídio], as autoridades não reconhecem sua natureza de gênero, o que obscurece a escala e o impacto do problema.

Assim, o número de vítimas continua alto, mas medidas de proteção não são implementadas. A falta de ação do governo sobre o assunto reflete um padrão mais amplo de desrespeito aos direitos humanos e à segurança.

·        Você escreveu que o Azerbaijão é comumente descrito como um “Estado rentista”. Em que aspectos?

A dependência estrutural do Azerbaijão de recursos naturais, particularmente petróleo e gás, é um traço distintivo da economia e da governança. A economia do Azerbaijão depende da receita da venda externa de recursos, e não de atividades produtivas dentro do país. Essa dependência molda a economia de várias maneiras.

Primeiro, a estabilidade econômica é vulnerável às flutuações nos mercados de energia, já que a maior parte da nossa receita se deve às exportações de petróleo e gás. A diversificação econômica é limitada, o que faz com que o país seja muito suscetível a crises quando os preços desses mercados caem.

E há muitas consequências ambientais e sociais desse modelo. A extração de recursos já levou a uma degradação ambiental significativa, incluindo poluição do ar e da água, com impactos negativos para a saúde e agricultura. Ao focar na riqueza dos combustíveis fósseis, o governo tem desviado a atenção de necessidades sociais, como educação, saúde e infraestrutura.

É nesse sentido que o Azerbaijão exemplifica as características de um Estado rentista, em que os sistemas político e econômico são moldados principalmente pela riqueza de recursos em vez de pelo crescimento sustentável e inclusivo.

·        Os países que vão participar da COP29 se manifestaram pouco sobre a repressão no Azerbaijão, com exceção do Parlamento Europeu, que aprovou uma resolução em outubro condenando as violações de direitos humanos. É o suficiente?

Só isso não é o suficiente. A comunidade internacional precisa fazer mais para garantir que os direitos humanos sejam priorizados junto com os objetivos ambientais.

Direitos humanos não são apenas uma questão periférica – eles são fundamentais para alcançarmos uma resposta significativa e justa para a crise climática. Esforços internacionais mais fortes e coordenados são necessários para tornar esse alinhamento uma realidade, principalmente com o Azerbaijão sediando a COP29.

 

¨      COP29: “Estou ciente da decepção que os EUA às vezes causam”, diz enviado americano à COP 29. Por Giovana Girardi

29ª Conferência do Clima da ONU (COP) começou nesta segunda-feira (11) em Baku, no Azerbaijão, sob a sombra da vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Enquanto todo mundo tem pela frente duas semanas de difíceis negociações para resolver o problema de financiamento de ações climáticas, paira no ar o fato de que o maior emissor histórico do planeta – e um dos que mais deveriam colocar dinheiro na mesa – deve abandonar esse barco a partir do ano que vem.

Ao menos essa é a promessa que Trump fez diversas vezes ao longo da campanha, e, como disse John Podesta, conselheiro do presidente Joe Biden para Política Climática Internacional, “nós devemos acreditar nele”.

Organizações não governamentais debateram a questão nesta segunda pela perspectiva de que as demais nações devem tentar suprir essa lacuna a todo custo e não deixar que um país – por mais que sejam os Estados Unidos – estrague tudo. Mas vieram de Podesta as declarações mais contundentes a esse respeito.

O conselheiro da Casa Branca substituiu John Kerry como enviado especial dos Estados Unidos nas conferências de clima, liderando a equipe de negociadores pela primeira vez justo neste ano, quando estão todos prestes a deixar o cargo. Eles estão em uma posição que, em inglês, é apelidada como a de patos mancos, sem muita efetividade, visto que tudo o que eles fizerem ou propuserem aqui em Baku poderá ser desfeito imediatamente por Trump.

Talvez até por isso, em entrevista coletiva – a mais disputada do dia –, Podesta não poupou palavras e quase pediu desculpas ao mundo pelas ações de seu país. “Estou muito ciente da decepção que os Estados Unidos às vezes causam às partes do regime climático, que já vivenciaram lideranças fortes, engajadas e eficazes dos EUA, seguidas de um desengajamento repentino após uma eleição presidencial nos EUA”, afirmou.

Podesta se referiu não somente aos eventuais retrocessos que virão agora aos atos da administração Biden, mas também a outros dois momentos importantes. Ao primeiro mandato de Trump, que, tão logo assumiu o cargo, em 2017, deu início ao processo para tirar os Estados Unidos do Acordo de Paris – e depois desmantelou vários dos atos ambientais e climáticos de seu antecessor, o democrata Barack Obama.

E ao governo de George W. Bush, que nunca ratificou o protocolo de Kyoto (o primeiro acordo que visava à redução de emissões de gases de efeito estufa). Ele foi adotado em 1997, com a anuência dos EUA, então comandados por Bill Clinton.

Mas o acordo só passaria a valer em 2005 e, quando Bush assumiu, em 2001, ele retrocedeu. A justificativa, como hoje, era que cumprir as metas comprometeria o desenvolvimento econômico dos EUA. Anos antes, em 1992, quando toda essa ideia de que os países precisavam se unir para combater o aquecimento global surgiu, na Rio-92, outro Bush, o pai, já tinha dificultado as coisas e quase impediu um acordo: “O modo de vida dos americanos não está aberto a negociações”, dizia.

Podesta continuou: “E sei que essa decepção é mais difícil de suportar à medida que os perigos que enfrentamos se tornam cada vez mais catastróficos. Mas essa é a realidade. Em janeiro, vamos dar posse a um presidente cuja relação com a mudança climática é capturada pelas palavras ‘farsa’ e ‘combustíveis fósseis’”.

Trump é um notório negacionista do clima e inúmeras vezes disse que o aquecimento global é uma farsa e que vai dar mais incentivos, em seu mandato, para que o país aumente sua exploração de petróleo e gás. Um dos seus lemas de campanha foi “drill, baby, drill”, em referência à perfuração de novos campos.

O chefe da delegação americana buscou, no entanto, afirmar que o comprometimento do país com o combate à crise climática vai além do trabalho de quem ocupa a Casa Branca. E tentou tranquilizar os jornalistas – e provavelmente os delegados dos outros países que estão na COP: apesar de o ritmo provavelmente diminuir a partir do ano que vem, os esforços não vão parar.

“Enquanto o governo federal dos Estados Unidos sob Donald Trump pode colocar a ação climática em segundo plano, o trabalho para conter a mudança climática vai continuar nos Estados Unidos com compromisso, paixão e convicção”, disse.

E seguiu: “Como o presidente Biden disse na semana passada, retrocessos são inevitáveis, mas desistir é imperdoável. Este não é o fim da nossa luta por um planeta mais limpo e seguro. Os fatos ainda são fatos. A ciência ainda é ciência. A luta é maior que uma eleição, um ciclo político em um único país. Essa luta é ainda maior porque todos nós estamos vivendo um ano definido pela crise climática em todos os países do mundo”.

Ele citou os furacões Helene e Milton que atingiram recentemente os Estados Unidos, a pior seca em décadas no sul da África, que “põe 20 milhões de crianças sob risco de desnutrição e morte por fome”, como ele disse. Citou também a seca histórica e as queimadas que atingiram a Amazônia e o Pantanal; as chuvas torrenciais na Espanha e o supertufão Yagi, que atingiu o Sudeste Asiático.

“Nada disso é uma farsa. É real. É uma questão de vida ou morte. Felizmente, muitos em nosso país e ao redor do mundo estão trabalhando para preparar o mundo para essa nova realidade e para mitigar os efeitos mais catastróficos da mudança climática”, complementou.

Ele lembrou que, após a primeira eleição de Trump, foi criada uma coalizão de governos subnacionais para continuarem agindo pelo clima independentemente do governo nacional, a We Are Still In (nós ainda estamos dentro). Hoje, disse Podesta, o movimento conta com mais de 5 mil membros, entre estados, empresas, governos locais, nações tribais, universidades, entre outros, e ele conta que serão eles que continuarão os trabalhos.

“Porque o apoio à energia limpa se tornou bipartidário nos Estados Unidos. Cinquenta e sete por cento dos novos empregos em energia limpa criados desde a aprovação da Lei de Redução da Inflação [IRA, na sigla em inglês, a mais importante lei de ação climática dos EUA] estão localizados em distritos representados por republicanos”, disse. “Muitos republicanos, especialmente governadores, sabem que toda essa atividade é uma coisa boa para seus distritos, estados e para suas economias.”

“É justamente porque a IRA tem força que estou confiante de que os Estados Unidos continuarão a reduzir emissões, beneficiando nosso próprio país e o mundo. A economia da transição para energia limpa simplesmente tomou conta.”

Não há muito mais, porém, que Podesta e o governo americano possam fazer agora. Ele disse que, internamente, o governo está tentando acelerar a entrega de fundos que já estavam previstos pelo IRA, além de subsídios para energia limpa. São menos de dois meses de trabalho.

Na COP, há expectativas de que talvez sua delegação não trave as negociações – como muitas vezes os Estados Unidos fizeram, mesmo em anos dominados por democratas comprometidos com a causa, como Obama e o próprio Biden. Como dizem por aí, muito ajuda quem não atrapalha.

 

Fonte: Agência Pública

 

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