O que
explica o anti-intelectualismo de esquerda?
Uma
das tragédias mais importantes de nosso tempo consiste na impaciência e na
incapacidade propiciada pelo domínio da imagem, cuja causa repousa na realidade
hiperconectada de nossos dias. A imagem, que passou a ter centralidade na vida
de todo mundo, fez com que a reflexão laboriosa da palavra escrita fosse
substituída pela instantaneidade dos vídeos.
Vivemos
sob o império de um tipo de comunicação receptiva que busca emoções
identificatórias que não despertem esforços por parte do receptor. Toda
contradição, dificuldade ou negatividade ao receptor tem que ser tolhida para
satisfazê-lo e orientar sua demanda de consumo. Com efeito, se na era da
televisão a imagem já reinava soberana sobre a palavra, com a internet a imagem
terá dimensões totalitárias, acentuando a repulsa pela meditação abstrata e a
impaciência diante da palavra escrita, que será substituída pela comunicação
publicitária.
Essa
comunicação se baseia na ideia de que para ser clara é preciso antes saber da
necessidade do receptor, contradizê-lo ou negá-lo provoca ruídos
desnecessários, então é preciso se comunicar através da informação que se
recebe dele. Eis como os toques no aplicativo e algoritmização da vida social
organizam uma comunicação dirigida, que precisa ser eficaz através do trabalho
com a informação do usuário. Assim, com o mundo da comunicação pela imagem —
obtida pelo engajamento do próprio usuário — a argumentação lógica se torna um
peso e precisa ser substituída por ritos catárticos de identificação, nos quais
ele se veja representado na imagem de um produto — imagem que pode ser qualquer
coisa; um livro, um coletivo, um partido, um político etc… Eis como a sociedade
do espetáculo se apresenta: a imagem passa a ser a mediadora de toda vida
social, adquirindo o status de realidade última e de prova real da verdade.1
Na
totalitarização da imagem, organizada por uma escala planetária de
conectividade virtual, a reflexão demorada e a crítica passam a ser vistas com
desconfiança generalizada. O intelectual passa a ser visto como mais um dos
técnicos. Se a capacidade crítica sempre se relacionou à possibilidade de tomar
distância da realidade para analisá-la; se a reflexão sempre teve a ver com uma
parada e o silêncio; o convite pseudocrítico para a comunicação clara que
imponha respostas prontas para problemas “concretos” é mais uma faceta ideológica
das transformações operadas pela gestão de crise do capitalismo pós-fordista,
que atua sob o mandamento da eficácia e da satisfação. Comunique-se com
eficácia para produzir satisfação no público alvo.
Eis,
o ponto.
Nos
últimos dias tenho sido constantemente atacado com o mesmo pressuposto: a
dificuldade com que expresso a crítica que faço na relação entre identidade e
identitarismo (como se ambos os conceitos estivessem disponíveis em vitrines).
Os que me acusam dizem que sou prolixo, pedante e que deveria rebaixar meu
discurso à língua do povo (sabe-se lá o que querem com isso dizer). Eu poderia
me fazer de rogado e simplesmente ignorar essa crítica pífia, dúbia, desonesta
e falaciosa, se não fosse ela própria mais um sinal da vida social sob
neoliberalismo. Mas, insisto, isso é só mais uma das facetas desse modo de
gestão.
·
Uma esquerda rendida
ao espetáculo
Em
nenhum momento da história humana a atenção subjetiva foi tão
disputada, tendo se tornado, ela própria, uma mercadoria. A reboque está a
aceleração da vida social, aquilo que Hartmut Rosa chamará de
tardo-modernidade, que causou uma deficiência na possibilidade de
concentração (o chamado déficit de atenção), gerando um verdadeiro
e lucrativo mercado da saúde mental. Em dez anos, a importação e a
produção de metilfenidato — mais conhecido como Ritalina — cresceram 373% no
país. A maior disponibilidade do medicamento no mercado nacional impulsionou um
aumento de 775% no consumo da droga, usada no tratamento do transtorno de déficit
de atenção e hiperatividade (TDAH).
Eis
aí uma pandemia da qual quase ninguém fala a respeito, e que parte hegemônica
da esquerda simplesmente ignora. Um tipo de problema que poderia facilmente ser
vinculado ao capital e à vida infernal que ele nos dá hoje. Sim, porque tudo
isso tem a ver com a dinâmica de uma vida social depauperada e cada vez mais
acelerada. Uma contínua aceleração do tempo social que tornou o espaço social
um local indiferente ao indivíduo. Tornou-o um mero detalhe, um pano de fundo
que sustenta a virtualidade das relações garantidas cada vez mais por
dispositivos eletrônicos.
Se
antes da pandemia os espaços careciam de laços cada vez mais, depois dela, com
a avalanche das mudanças na relação do trabalho, que se tornou virtual,
passamos a entender o deslocamento como um empecilho para aquilo que realmente
queríamos fazer. “Ter que ir” e “ter que visitar” se tornaram tarefas
“torturantes” uma vez que basta ligar a câmera do notebook. Espaços de intensa
sociabilidade pública se tornaram fantasmagóricos e o isolamento se tornou mais
do que comum: se tornou uma espécie de demanda.
Mesmo
os locais que na modernidade clássica sustentavam o sentido de ação e
orientavam as expectativas de milhares de pessoas, como universidades e
escolas, indústrias e lojas, hospitais e hotéis, aparecem agora como lugares
sem experiências, restando cada vez mais homogeneizados. Ter que lidar com o
outro se tornou trabalhoso, frustrante, além de algo não satisfatório, já que
muitas vezes o outro nega a nossa demanda egóica.
Paul
Virilio, que foi de fato uma Cassandra, sabia que o excesso de informação seria
fundamental para desestimular nossa observação e sensibilidade. A comunicação
como algo límpido e direto, sem a necessidade da reflexão por parte do
receptor, para ele, causaria uma infantilização na cognição em nome da
satisfação: o receptor-consumidor tem sempre que estar satisfeito com o que
recebe. Isso implica que a informação deva ser algo que ele espere e já saiba.
Eis a infantilização da capacidade reflexiva ordenada pela ideia de que esse
receptor é um consumidor e precisa imediatamente identificar a informação que
recebe. Mas há outra volta no parafuso aí: não se trata só de informar, de
comunicar, mas de criar a atenção consumista naquilo que é comunicado. Portanto,
nada deve negá-lo.
E,
assim, qualquer estrutura desafiadora de raciocínios detidos e de conceitos
elaborados será vista como excesso de “elitismo deslocado da vida real”. (Não é
exatamente do que me acusam?) Para parte da esquerda, com um discurso
pseudo-radical e muito tacanho, o que importa é se tornar inteligível às
“massas” imaginárias, que na realidade são consumidores em potencial de uma
nova ideia que precisa estar “clara”. E, portanto, a forma suplanta o conteúdo
de maneira integral: são as emoções, e a capacidade de despertá-las, que passam
a organizar a finalidade do trabalho “intelectual”. Um fosso e um pesadelo.
·
O tempo morto da
conexão
O
tempo conectado é um tempo sem experiência, um tempo morto abrigado num arsenal
de dispositivos on-line que canalizam a atenção através de imagens e engajam o
indivíduo de maneira inconsciente a rolar com o dedo para a próxima cena.
Vídeos de 30 a 60 segundos no TikTok e os cortes no Reels do Instagram tornaram
antiquado o exercício do olhar contemplativo e da vida imaginativa. A captura
do olhar, o automatismo que dirige esse olhar, mudou de maneira dramática nossa
vivência temporal redefinindo uma sensibilidade cada vez mais insensível à
experiência com a alteridade.
Se
já não temos uma vida profissional, mas especializações; se já não temos espaço
para reflexão ante os locais que habitamos, mas uma observação orientada por
algoritmos de afinidades eletivas, pode-se afirmar que a aceleração tecnológica
nos levou aos grilhões da hiperconectividade, que sempre demanda nosso
engajamento ativo capturando diuturnamente nossa atenção. E, assim,
com a passagem à era da especialização, a ideia de “formação” se reduz à noção
de estar apto à vida a partir de uma educação moldada às necessidades do
estudante enquanto consumidor que precisa estar satisfeito.
Diante
disso se perdem as contradições, as dificuldades e os desafios inerentes ao
processo de formação. Aliás, aprender se correlaciona, nessa dinâmica
narcisista, à satisfação: algo que de saída precisa excluir a dificuldade e o
esforço do aprendizado. Aprender tem que ser divertido, e o professor deve se
tornar um animador de palco: fazer palhaçadas que provisoriamente façam o
usuário esquecer da sua dose de satisfação. Num importante artigo no Opera Mundi, Cian Barbosa
demonstra como “a digitalização nos impõe o
reflexo de uma versão reduzida de nós mesmos”. Quando a mediação dos conteúdos
que visitamos passa pelas plataformas digitais, que automatizam nossas escolhas
pela informação que fornecemos, nossa própria cognição, encerra Cian, permanece
ensimesmada. Ou seja, há um processo da identificação de nossas demandas,
organizadas por algoritmos, que nos dá o que se supõe que buscamos, enquanto
aquilo que as nega e as contradiz sai do horizonte.
A
economia da atenção, portanto, reduz a cognição à fruição do tempo de tela. O
resultado, sem dúvida, é a diminuição reflexiva para lidarmos com problemas
complexos. Mesmo filmes se tornam insuportáveis por terem mais de uma hora de
duração, livros são cada vez mais vistos como produtos museológicos e, desse
modo, qualquer raciocínio mais denso é visto como uma ofensa. Algumas pessoas
demonstram-se radicalmente afrontadas com qualquer trabalho do conceito, a
ponto de xingar quem o faz.
·
Debord cantou a bola
Se
há um crítico que permanece atual para entender nossa complexidade, ele é, sem
dúvida, Guy Debord. Para o autor, o espetáculo não constituía apenas o conteúdo
das mídias ou aquilo que se expõe na tela do cinema; suas garras são mais
profundas porque se enraízam na estrutura da própria sociedade de classes. O
espetáculo toma conta, por meio das imagens, da vida social A contemplação das
imagens torna passivo seu espectador, retira dele a capacidade de determinar os
acontecimentos ou de refletir sobre eles. Isso é possibilitado não pela forma
das imagens em si, mas por aquilo que as estrutura e as organiza, ou seja, os
modos de produção e reprodução da vida social.
Em
imaginar que escreveu tudo isso nos anos 1960…
O
exercício do espetáculo não se respalda em oferecer formas de ver o mundo, mas
se traduz na própria visão de mundo administrada pela
economia. É resultado do modo de produção existente no capitalismo, que não só
constitui, como reforça o modelo da vida dominante. Sua força consiste em
efetivar a dominação do horizonte social geral, dominando a totalidade da realidade
a ponto de fazer parecer que a finalidade da vida é o próprio espetáculo.
Assim, a imagem de si e do mundo precisa passar pelas formas de captura
direcionada pelos dispositivos conectados. Acreditamos inconscientemente
naquilo que a imagem de alguém expressa, e eis que somos capturados fazendo o
mesmo: nos produzindo enquanto mercadorias vendáveis.
A
manutenção das relações de submissão ao capital se dá pelo espetáculo. Ele
precisa garantir que o processo de exploração ocorra por um engajamento ativo
dos sujeitos. Então, toda a política se vê enquadrada cada vez mais nas
tendências econômicas e nas manipulações do mercado, tornando-se não apenas uma
simulação aberta organizada pela democracia liberal e seu mercado eleitoral
como ainda uma forma de gestão técnica.
Por
isso, o espetáculo transforma o mundo em aparência e representação. O império
de sua ação se dá na positividade de seus conteúdos, que são aceitos
passivamente. Na era da conectividade global, em que o tempo se torna um tempo
real da conexão, o espetáculo guia a saída do ter para o parecer;
não importa mais apenas o ter, mas o parecer ter. Ter a imagem de
revolucionário é muito mais satisfatório do que ser um revolucionário de fato. As
imagens tornam-se seres reais, motivações eficientes que traduzem um
comportamento apaziguado e hipnótico. O imperativo de se fazer ver é
um mandamento para direita e esquerda.
O
imperativo de ver e produzir o que deve ser visto tornou-se a dinâmica da
sociabilização. E então “não há mais uma necessidade de dominação coercitiva
direta porque ela já está articulada na própria estrutura do processo de
produção que governa o tempo”. São os engajados nesse processo que vão implorar
por sua reprodução. A dominação imposta transforma-se no desejo de ser
dominado, e qualquer um que questionar mais profundamente essa adesão será
posto como inimigo. Com a imagem totalitária, a palavra escrita torna-se quase
um acinte. Ai daqueles que dela fazem uso! E, assim, o tempo pseudocíclico do
capitalismo tardio — aquele que oferece um eterno presente para a reposição do
mesmo — se entranhou à experiência individual ordinária; ele cria o dia e a noite,
o trabalho e o descanso, as férias e o lazer etc. Mas com uma diferença
fundamental: impõe o engajamento ativo dos sujeitos, a despeito do espectro
político. Trata-se sempre disso: um simulacro vulgarizado do ativismo reduzido
à eleição. Trata-se sempre de pseudo-acontecimentos políticos mediados pela
equipe de publicidade. Aqui, grande parte da esquerda, que ainda acredita
existir campo para a ação no interior dos aparatos do Estado, é capturada, e
mais: organiza ela própria a repressão e o policiamento.
Fonte:
Por Douglas Barros, no Blog da Boitempo