quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O que explica o anti-intelectualismo de esquerda?

Uma das tragédias mais importantes de nosso tempo consiste na impaciência e na incapacidade propiciada pelo domínio da imagem, cuja causa repousa na realidade hiperconectada de nossos dias. A imagem, que passou a ter centralidade na vida de todo mundo, fez com que a reflexão laboriosa da palavra escrita fosse substituída pela instantaneidade dos vídeos.

Vivemos sob o império de um tipo de comunicação receptiva que busca emoções identificatórias que não despertem esforços por parte do receptor. Toda contradição, dificuldade ou negatividade ao receptor tem que ser tolhida para satisfazê-lo e orientar sua demanda de consumo. Com efeito, se na era da televisão a imagem já reinava soberana sobre a palavra, com a internet a imagem terá dimensões totalitárias, acentuando a repulsa pela meditação abstrata e a impaciência diante da palavra escrita, que será substituída pela comunicação publicitária.

Essa comunicação se baseia na ideia de que para ser clara é preciso antes saber da necessidade do receptor, contradizê-lo ou negá-lo provoca ruídos desnecessários, então é preciso se comunicar através da informação que se recebe dele. Eis como os toques no aplicativo e algoritmização da vida social organizam uma comunicação dirigida, que precisa ser eficaz através do trabalho com a informação do usuário. Assim, com o mundo da comunicação pela imagem — obtida pelo engajamento do próprio usuário — a argumentação lógica se torna um peso e precisa ser substituída por ritos catárticos de identificação, nos quais ele se veja representado na imagem de um produto — imagem que pode ser qualquer coisa; um livro, um coletivo, um partido, um político etc… Eis como a sociedade do espetáculo se apresenta: a imagem passa a ser a mediadora de toda vida social, adquirindo o status de realidade última e de prova real da verdade.1

Na totalitarização da imagem, organizada por uma escala planetária de conectividade virtual, a reflexão demorada e a crítica passam a ser vistas com desconfiança generalizada. O intelectual passa a ser visto como mais um dos técnicos. Se a capacidade crítica sempre se relacionou à possibilidade de tomar distância da realidade para analisá-la; se a reflexão sempre teve a ver com uma parada e o silêncio; o convite pseudocrítico para a comunicação clara que imponha respostas prontas para problemas “concretos” é mais uma faceta ideológica das transformações operadas pela gestão de crise do capitalismo pós-fordista, que atua sob o mandamento da eficácia e da satisfação. Comunique-se com eficácia para produzir satisfação no público alvo.

Eis, o ponto.

Nos últimos dias tenho sido constantemente atacado com o mesmo pressuposto: a dificuldade com que expresso a crítica que faço na relação entre identidade e identitarismo (como se ambos os conceitos estivessem disponíveis em vitrines). Os que me acusam dizem que sou prolixo, pedante e que deveria rebaixar meu discurso à língua do povo (sabe-se lá o que querem com isso dizer). Eu poderia me fazer de rogado e simplesmente ignorar essa crítica pífia, dúbia, desonesta e falaciosa, se não fosse ela própria mais um sinal da vida social sob neoliberalismo. Mas, insisto, isso é só mais uma das facetas desse modo de gestão.

·        Uma esquerda rendida ao espetáculo

Em nenhum momento da história humana a atenção subjetiva foi tão disputada, tendo se tornado, ela própria, uma mercadoria. A reboque está a aceleração da vida social, aquilo que Hartmut Rosa chamará de tardo-modernidade, que causou uma deficiência na possibilidade de concentração (o chamado déficit de atenção), gerando um verdadeiro e lucrativo mercado da saúde mental. Em dez anos, a importação e a produção de metilfenidato — mais conhecido como Ritalina — cresceram 373% no país. A maior disponibilidade do medicamento no mercado nacional impulsionou um aumento de 775% no consumo da droga, usada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

Eis aí uma pandemia da qual quase ninguém fala a respeito, e que parte hegemônica da esquerda simplesmente ignora. Um tipo de problema que poderia facilmente ser vinculado ao capital e à vida infernal que ele nos dá hoje. Sim, porque tudo isso tem a ver com a dinâmica de uma vida social depauperada e cada vez mais acelerada. Uma contínua aceleração do tempo social que tornou o espaço social um local indiferente ao indivíduo. Tornou-o um mero detalhe, um pano de fundo que sustenta a virtualidade das relações garantidas cada vez mais por dispositivos eletrônicos.

Se antes da pandemia os espaços careciam de laços cada vez mais, depois dela, com a avalanche das mudanças na relação do trabalho, que se tornou virtual, passamos a entender o deslocamento como um empecilho para aquilo que realmente queríamos fazer. “Ter que ir” e “ter que visitar” se tornaram tarefas “torturantes” uma vez que basta ligar a câmera do notebook. Espaços de intensa sociabilidade pública se tornaram fantasmagóricos e o isolamento se tornou mais do que comum: se tornou uma espécie de demanda.

Mesmo os locais que na modernidade clássica sustentavam o sentido de ação e orientavam as expectativas de milhares de pessoas, como universidades e escolas, indústrias e lojas, hospitais e hotéis, aparecem agora como lugares sem experiências, restando cada vez mais homogeneizados. Ter que lidar com o outro se tornou trabalhoso, frustrante, além de algo não satisfatório, já que muitas vezes o outro nega a nossa demanda egóica.

Paul Virilio, que foi de fato uma Cassandra, sabia que o excesso de informação seria fundamental para desestimular nossa observação e sensibilidade. A comunicação como algo límpido e direto, sem a necessidade da reflexão por parte do receptor, para ele, causaria uma infantilização na cognição em nome da satisfação: o receptor-consumidor tem sempre que estar satisfeito com o que recebe. Isso implica que a informação deva ser algo que ele espere e já saiba. Eis a infantilização da capacidade reflexiva ordenada pela ideia de que esse receptor é um consumidor e precisa imediatamente identificar a informação que recebe. Mas há outra volta no parafuso aí: não se trata só de informar, de comunicar, mas de criar a atenção consumista naquilo que é comunicado. Portanto, nada deve negá-lo.

E, assim, qualquer estrutura desafiadora de raciocínios detidos e de conceitos elaborados será vista como excesso de “elitismo deslocado da vida real”. (Não é exatamente do que me acusam?) Para parte da esquerda, com um discurso pseudo-radical e muito tacanho, o que importa é se tornar inteligível às “massas” imaginárias, que na realidade são consumidores em potencial de uma nova ideia que precisa estar “clara”. E, portanto, a forma suplanta o conteúdo de maneira integral: são as emoções, e a capacidade de despertá-las, que passam a organizar a finalidade do trabalho “intelectual”. Um fosso e um pesadelo.

·        O tempo morto da conexão

O tempo conectado é um tempo sem experiência, um tempo morto abrigado num arsenal de dispositivos on-line que canalizam a atenção através de imagens e engajam o indivíduo de maneira inconsciente a rolar com o dedo para a próxima cena. Vídeos de 30 a 60 segundos no TikTok e os cortes no Reels do Instagram tornaram antiquado o exercício do olhar contemplativo e da vida imaginativa. A captura do olhar, o automatismo que dirige esse olhar, mudou de maneira dramática nossa vivência temporal redefinindo uma sensibilidade cada vez mais insensível à experiência com a alteridade.

Se já não temos uma vida profissional, mas especializações; se já não temos espaço para reflexão ante os locais que habitamos, mas uma observação orientada por algoritmos de afinidades eletivas, pode-se afirmar que a aceleração tecnológica nos levou aos grilhões da hiperconectividade, que sempre demanda nosso engajamento ativo capturando diuturnamente nossa atenção. E, assim, com a passagem à era da especialização, a ideia de “formação” se reduz à noção de estar apto à vida a partir de uma educação moldada às necessidades do estudante enquanto consumidor que precisa estar satisfeito.

Diante disso se perdem as contradições, as dificuldades e os desafios inerentes ao processo de formação. Aliás, aprender se correlaciona, nessa dinâmica narcisista, à satisfação: algo que de saída precisa excluir a dificuldade e o esforço do aprendizado. Aprender tem que ser divertido, e o professor deve se tornar um animador de palco: fazer palhaçadas que provisoriamente façam o usuário esquecer da sua dose de satisfação. Num importante artigo no Opera Mundi, Cian Barbosa demonstra como “a digitalização nos impõe o reflexo de uma versão reduzida de nós mesmos”. Quando a mediação dos conteúdos que visitamos passa pelas plataformas digitais, que automatizam nossas escolhas pela informação que fornecemos, nossa própria cognição, encerra Cian, permanece ensimesmada. Ou seja, há um processo da identificação de nossas demandas, organizadas por algoritmos, que nos dá o que se supõe que buscamos, enquanto aquilo que as nega e as contradiz sai do horizonte.

A economia da atenção, portanto, reduz a cognição à fruição do tempo de tela. O resultado, sem dúvida, é a diminuição reflexiva para lidarmos com problemas complexos. Mesmo filmes se tornam insuportáveis por terem mais de uma hora de duração, livros são cada vez mais vistos como produtos museológicos e, desse modo, qualquer raciocínio mais denso é visto como uma ofensa. Algumas pessoas demonstram-se radicalmente afrontadas com qualquer trabalho do conceito, a ponto de xingar quem o faz.

·        Debord cantou a bola

Se há um crítico que permanece atual para entender nossa complexidade, ele é, sem dúvida, Guy Debord. Para o autor, o espetáculo não constituía apenas o conteúdo das mídias ou aquilo que se expõe na tela do cinema; suas garras são mais profundas porque se enraízam na estrutura da própria sociedade de classes. O espetáculo toma conta, por meio das imagens, da vida social A contemplação das imagens torna passivo seu espectador, retira dele a capacidade de determinar os acontecimentos ou de refletir sobre eles. Isso é possibilitado não pela forma das imagens em si, mas por aquilo que as estrutura e as organiza, ou seja, os modos de produção e reprodução da vida social.

Em imaginar que escreveu tudo isso nos anos 1960…

O exercício do espetáculo não se respalda em oferecer formas de ver o mundo, mas se traduz na própria visão de mundo administrada pela economia. É resultado do modo de produção existente no capitalismo, que não só constitui, como reforça o modelo da vida dominante. Sua força consiste em efetivar a dominação do horizonte social geral, dominando a totalidade da realidade a ponto de fazer parecer que a finalidade da vida é o próprio espetáculo. Assim, a imagem de si e do mundo precisa passar pelas formas de captura direcionada pelos dispositivos conectados. Acreditamos inconscientemente naquilo que a imagem de alguém expressa, e eis que somos capturados fazendo o mesmo: nos produzindo enquanto mercadorias vendáveis.

A manutenção das relações de submissão ao capital se dá pelo espetáculo. Ele precisa garantir que o processo de exploração ocorra por um engajamento ativo dos sujeitos. Então, toda a política se vê enquadrada cada vez mais nas tendências econômicas e nas manipulações do mercado, tornando-se não apenas uma simulação aberta organizada pela democracia liberal e seu mercado eleitoral como ainda uma forma de gestão técnica.

Por isso, o espetáculo transforma o mundo em aparência e representação. O império de sua ação se dá na positividade de seus conteúdos, que são aceitos passivamente. Na era da conectividade global, em que o tempo se torna um tempo real da conexão, o espetáculo guia a saída do ter para o parecer; não importa mais apenas o ter, mas o parecer ter. Ter a imagem de revolucionário é muito mais satisfatório do que ser um revolucionário de fato. As imagens tornam-se seres reais, motivações eficientes que traduzem um comportamento apaziguado e hipnótico. O imperativo de se fazer ver é um mandamento para direita e esquerda.

O imperativo de ver e produzir o que deve ser visto tornou-se a dinâmica da sociabilização. E então “não há mais uma necessidade de dominação coercitiva direta porque ela já está articulada na própria estrutura do processo de produção que governa o tempo”. São os engajados nesse processo que vão implorar por sua reprodução. A dominação imposta transforma-se no desejo de ser dominado, e qualquer um que questionar mais profundamente essa adesão será posto como inimigo. Com a imagem totalitária, a palavra escrita torna-se quase um acinte. Ai daqueles que dela fazem uso! E, assim, o tempo pseudocíclico do capitalismo tardio — aquele que oferece um eterno presente para a reposição do mesmo — se entranhou à experiência individual ordinária; ele cria o dia e a noite, o trabalho e o descanso, as férias e o lazer etc. Mas com uma diferença fundamental: impõe o engajamento ativo dos sujeitos, a despeito do espectro político. Trata-se sempre disso: um simulacro vulgarizado do ativismo reduzido à eleição. Trata-se sempre de pseudo-acontecimentos políticos mediados pela equipe de publicidade. Aqui, grande parte da esquerda, que ainda acredita existir campo para a ação no interior dos aparatos do Estado, é capturada, e mais: organiza ela própria a repressão e o policiamento.

 

Fonte: Por Douglas Barros, no Blog da Boitempo

 

Tataravô de Fernando Henrique Cardoso teria usado escravizados em corrida por ouro

Em diversas ocasiões, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso afirmou sua ascendência negra, que teria sido comprovada pelo trabalho da genealogista Marta Maria Amato, falecida em 2020. Segundo o trabalho de Amato, a bisavó paterna do ex-presidente, Joana Antonia da Rosa, seria identificada como uma pessoa mulata, filha miscigenada de uma mãe negra e um pai branco. A mãe de Rosa, Maria Hermenegilda da Conceição, trisavó de FHC, pode ter sido escravizada. Já o pai, um português de posses, foi José Antonio da Rosa.

A árvore familiar de Cardoso também tem outros ramos que não apontam para antepassados negros – antes o contrário. O tataravô do ex-presidente do Brasil era um coronel que teria usado pessoas escravizadas em uma trágica expedição motivada por ouro. A empreitada teria terminado com a morte de várias dessas pessoas, que, diferentemente dos antepassados célebres da família de FHC, permaneceram anônimas nos registros históricos.

A reportagem procurou o ex-presidente para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O político não respondeu à Pública até a publicação.

<><> Quem é Fernando Henrique Cardoso

Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro em 1931. É professor, sociólogo, cientista político, escritor e político brasileiro. Foi presidente do Brasil entre 1995 e 2003. Antes, como ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, implantou o Plano Real (1994), um marco na estabilização econômica do país.

<><> O antepassado célebre que morreu de forma inusitada

Fernando Henrique Cardoso é tataraneto do coronel José Manoel da Silva e Oliveira, um brasileiro filho de pai português, nascido por volta de 1771 em Glaura, ou Casa Branca, hoje distrito de Ouro Preto, Minas Gerais. Assim como Cardoso, Oliveira foi um homem de muito poder na política brasileira, com influência nas importantes capitanias de Minas e Goiás, atuando como comandante militar e líder de expedições para encontrar novas minas auríferas nos sertões, similar ao que fizeram os bandeirantes paulistas.

O ápice político de Oliveira teria sido sua nomeação a capitão-general e governador do Pará. O cargo era, na prática, responsável por administrar a capitania. A informação foi compilada por uma genealogia feita pelo primo de FHC, Paulo Roberto Cardoso, atualizada em 2018. A Pública acessou documentos reunidos por Paulo César de Castro Silveira, também parente de FHC, que é autor de um blog que reúne a história da família. Parte das transcrições vem do trabalho do historiador e genealogista Hildebrando Pontes, que viveu entre 1879 e 1940 em Minas.

Contudo, o antepassado não teria chegado a ocupar o posto de governador no Pará devido à sua morte esdrúxula, em 1814, próximo à data em que teria ganho o cargo. Os registros indicam que Oliveira engasgou com um osso de frango. Ele seria atendido pelo médico que viajava na sua comitiva, que teria usado uma vela para empurrar o corpo estranho para o estômago do coronel. “O fato é que não se sabe se o osso foi ou não retirado e poucos momentos depois o ilustre enfermo se estorcia em agudíssimas dores no ventre e garganta e exalava o derradeiro alento”, descreve um dos livros de Pontes.

As circunstâncias peculiares que levaram à morte de Oliveira ainda levantaram a suspeita de assassinato, visto que o militar viajava justamente para o Pará, onde tomaria posse como novo governador. Na época, a capitania era regida por uma junta governativa e a nomeação de Oliveira nunca chegou a se efetivar. Segundo os registros, a suspeita recaiu justamente sobre o médico que atendeu o coronel no engasgo, e que teria sido morto por um dos irmãos do falecido algum tempo depois.

<><> Vidas escravizadas e a cobiça pelo ouro

Segundo os registros que reúnem a história da família de FHC, parte do sucesso político do coronel Oliveira foi alcançada graças às suas expedições para encontrar ouro. Com isso, ele foi nomeado governador superintendente-geral das minas de Goiás.

Ávido por encontrar mais riquezas na região, ele teria partido com um numeroso contingente de pessoas escravizadas em direção à serra das Pitombas, nome dado à formação que hoje integra a serra do Caiapó, em Caiapônia, município no sudoeste de Goiás. A data da expedição é incerta, mas provavelmente ocorreu entre 1804 e 1814, ano de sua morte.

De acordo com o trabalho transcrito por Silveira, a expedição de Oliveira acabou custando a vida de muitas dessas pessoas escravizadas, que acabaram morrendo devido a febres, obrigando o que restou do grupo a retroceder. Já para o coronel, apesar do fracasso dessa expedição, a descoberta de minas na região teria sido proveitosa para futuras empreitadas.

A escravidão foi usada extensivamente no Brasil para a mineração no Brasil. Como resgatou o historiador Francisco Vidal Luna, em um capítulo da sua extensa pesquisa a respeito da demografia no período da consolidação da atividade mineradora, em Minas Gerais, por exemplo, havia um número significativo de senhores de escravos que atuavam com a exploração de ouro.

Além disso, o próprio arraial do Desemboque – área onde hoje está o município de Sacramento, no Triângulo Mineiro, e que foi comandado pelo coronel Oliveira por volta do ano de 1788 – teria sido um antigo quilombo. Segundo a pesquisa de doutorado de Cláudia Damasceno Fonseca, defendida na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais (EHESS), na França, toda a região era conhecida pelos bandeirantes por ser ocupada por poderosos quilombos e pela resistência dos índios Caiapó, que adiaram a colonização branca da área.

“Somente depois de muitas expedições punitivas – organizadas e financiadas por particulares e por diversas câmaras da capitania – é que tais populações puderam ser definitivamente submetidas ou aniquiladas, dando início efetivo à colonização e à ‘conversão’ dos sertões do Campo Grande”, afirma o trabalho.

A pesquisa de Fonseca mostra como a colonização da região foi baseada num esforço do governo colonial de expulsar, matando ou escravizando os povos indígenas e negros quilombolas que ali viviam – inclusive aproveitando-os para a atividade mineradora, com a qual o antepassado de FHC fez sua fama. “Os que não morriam nos combates eram levados de volta para as minas e fazendas de onde haviam fugido, ou tornavam-se objeto de contrabando”, resgata.

Um dos registros históricos do Desemboque mostra que, na área, chegaram a viver 660 escravizados. Segundo escritos de Pontes, o coronel Oliveira foi apontado como guarda-mor do arraial do Desemboque. O guarda-mor era uma autoridade que surgiu em Portugal. A principal função do guarda-mor das minas era apaziguar todo tipo de conflito relativo aos trabalhos de mineração. Era o cargo mais importante na administração local, com atribuições como conceder licenças, repartir as lavras e até mesmo mandar executar quem não pagasse valores devidos.

<><> Escravizados em casa, no testamento, nas posses

A Pública encontrou registros de que a mãe do coronel Oliveira, Joana Francisca de Paiva, a pentavó do ex-presidente, também teria escravizados.

De acordo com uma carta escrita por descendentes de Paiva, ela teria pessoas escravizadas em sua residência, em Glaura, onde nasceu o coronel Oliveira. Na época, o local era chamado de Freguesia Santo Antônio da Casa Branca do Ouro Preto. “Seus companheiros de velhice foram seus fiéis escravos, um casal já velhinho, um ‘preto véio’, como se dizia naqueles tempos, sua mulher já velhinha também, e mais alguns escravos: Clemente, pardo, 32 anos, Pedro, congo, 40 anos. Teodora, 60 anos, crioula. Joaquim, 36 anos, crioulo, Victória, 76 anos parda, e Águida, 73 anos, parda”, diz o texto.

Referência à mão de obra escrava aparece também no testamento de outro filho de Paiva, o capitão Domingos da Silva e Oliveira, irmão do coronel Oliveira. Segundo transcrição do documento, ele teria escrito “declaro que deixo forra a minha escrava Felipa pelos serviços que me tem feito” e “declaro que os bens que possuo são a Fazenda da Conquista com escravos que existem e gado e três moradas de casas nesta Vila”. O capitão Domingos, que segundo os registros se vestia à moda do rei da França Luís XV, com calção de veludo, capa, espada e chapéu de penas, morreu em 1852 em Uberaba, Minas.

 

•                                    Antepassado de Collor teria escravizados em engenho na região do Quilombo dos Palmares

Se existe um termo que pode ser usado para a família Collor de Mello é: política. O ex-presidente brasileiro Fernando Affonso Collor de Mello e seus parentes formam um emaranhado de linhagens tradicionais do estado de Alagoas, que marcaram a história política do país, incluindo episódios que envolvem corrupção e assassinato. E agora, segundo a Agência Pública apurou, esse passado familiar também está relacionado à escravidão e às terras que restaram da destruição do quilombo mais conhecido da história do Brasil, Palmares.

O membro mais notório da família é, provavelmente, o próprio Collor, atualmente condenado a oito anos e dez meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por receber uma propina de R$ 20 milhões para influenciar contratos na BR Distribuidora com a empresa UTC Engenharia, entre 2010 e 2014. A defesa do político nega o crime. Um recurso apresentado pelo ex-presidente foi negado no dia 14 de novembro. O primeiro presidente brasileiro que perdeu o cargo por um processo de impeachment após o fim da ditadura de 1964, Collor foi o responsável por impulsionar o neoliberalismo e as privatizações e confiscar poupanças. A despeito disso, ele foi eleito senador por Alagoas duas vezes depois de ter sido retirado da Presidência.

Senador foi também o cargo que seu pai, Arnon Afonso de Farias Mello, alcançou. Nascido em 1911 na capital de Alagoas, Maceió, ele foi eleito ao Senado três vezes, entre 1963 e 1983. Na primeira delas, quando estava no extinto Partido Democrata Cristão (PDC), ele protagonizou uma das cenas mais esdrúxulas e trágicas da história da Casa.

Durante uma discussão com o senador Silvestre Péricles (PTB-AL), Arnon disparou e acabou acertando – e matando – outro colega, que nada tinha a ver com a querela: José Kairala (PSD-AC), um suplente que estava no seu último dia de substituição do senador eleito nas urnas. O crime aconteceu em 4 de dezembro de 1963 e Arnon, apesar de brevemente detido, não foi condenado pelo Tribunal do Júri de Brasília após ter alegado legítima defesa e a Justiça entender que se tratou de “crime acidental”. Arnon se filiaria à Arena, partido de apoio à ditadura, em 1966.

<><> Collor, Mello e Bittencourt: famílias que se perpetuam na política

A família de Collor se divide em dois ramos de políticos a partir de Arnon, seu pai.

Do lado materno, de onde vem o sobrenome Collor, está o avô Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor, que viveu entre 1890 e 1942. Ex-deputado estadual e federal pelo Rio Grande do Sul e ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, ele era descendente de alemães que migraram para o Sul do país. É dessa imigração que surge o sobrenome pelo qual ficou conhecido o ex-presidente: Collor é uma versão brasileira de Köhler.

Já do lado paterno, dos Mello, está a linhagem de políticos alagoanos da qual descende o avô Manoel Afonso de Mello Filho, usineiro que viveu entre 1904 e 1995. Ele era dono de uma propriedade chamada Cachoeirinha, em Rio Largo, próximo a Maceió, onde Arnon nasceu. A informação foi confirmada pelo Instituto Arnon de Mello, entidade ligada a um grupo empresarial que controla diversos veículos de comunicação e que tem como um dos sócios o próprio ex-presidente.

Manoel foi casado com Lúcia de Farias Cardoso, que, por sua vez, também vem de uma linhagem tradicional do estado, a família Bittencourt. É nesse tronco que documentos apontam um histórico relacionado à escravidão.

<><> Mãos negras e indígenas na colheita do algodão

O bisavô de Lúcia e tataravô de Collor foi o coronel João de Farias Bittencourt, que viveu entre 1788 e 1886. A Pública encontrou um registro do jornal A Actualidade, de 16 de janeiro de 1864, no qual ele teria chegado ao posto de chefe do estado-maior do comando superior da guarda nacional dos municípios de Pilar e Atalaia, próximos de Maceió.

O coronel foi dono também do engenho São Miguel, em Atalaia. Segundo o livro O Banguê nas Alagoas, de Manuel Diegues Júnior – cientista social que escreveu diversas obras sobre o passado econômico da produção de açúcar no estado -, o engenho teria funcionado com mão de obra de pessoas escravizadas de origem africana e indígenas de aldeias locais. A relação foi apontada também pela dissertação de mestrado de Eric Nilson da Costa Oliveira, na pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Essas pessoas seriam usadas para um trabalho de manufatura de algodão. Segundo a obra de Diegues, o coronel Bittencourt teria conseguido com o ouvidor José de Mendonça Matos Moreira – que comandou a comarca de Alagoas entre 1779 e 1798, que na época já havia se separado de Pernambuco – a construção de uma feitoria no engenho para comercializar a produção.

“Nessa feitoria trabalhavam escravos africanos e ‘índios’ das aldeias de Santo Amaro e Cabeça do Cavalo; sua instalação data dos começos do século 19. São informações que se podem colher na valiosa memória do professor Joaquim Inácio Loureiro sobre o algodão nas Alagoas. Também na feitoria plantavam-se café, jaqueiras e outras fruteiras”, diz trecho do livro.

A identidade das pessoas escravizadas, como em tantos outros documentos históricos, ficou anônima no registro sobre o engenho do coronel Bittencourt.

De acordo com as pesquisas de Diegues, o algodão, junto à cana de açúcar, eram as principais fontes da economia de Alagoas nessa época, sendo que o algodão chegou a superar o açúcar em meados do século 19. A mão de obra dos escravizados, por sua vez, fazia girar a economia que beneficiava os senhores de engenho de tal forma que a abolição do tráfico no Atlântico, em 1850, deixou os escravizadores preocupados com seus negócios.

Diversos presidentes da província de Alagoas chegaram a falar sobre os “problemas” que o fim do tráfico trouxe à mão de obra para as plantações. Em 1860, o então presidente provincial Pedro Leão Veloso “acentuou a crise advinda com a repentina cessação do tráfico de africanos”, acrescentando que “fora da indústria agrícola nenhuma outra fonte de riqueza temos”, como relatou Diegues em seu livro. O presidente seguinte, Souza Carvalho, também teria apontado, em 1861, a progressiva “falta de braços escravos como a questão que mais deve preocupar”.

A reportagem procurou o ex-presidente para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O político não respondeu à Pública até a publicação.

•                                    O município erguido ao lado dos escombros de Palmares

Atalaia, onde o antepassado de Collor tinha engenho, não é um município qualquer. A cidade, que hoje tem cerca de 48 mil habitantes, foi erguida próximo à área onde antes ficava o quilombo mais famoso da história do Brasil, o de Palmares.

Há registros de que Palmares já existiria desde o fim do século 16, a partir da fuga de pessoas escravizadas por senhores de engenho na capitania de Pernambuco. Elas encontraram um refúgio nas terras ao longo da serra da Barriga. O apogeu de Palmares teria ocorrido por volta do final do século seguinte, após a invasão holandesa no Nordeste ter desarticulado os engenhos de açúcar e intensificado a fuga de escravizados.

Após a expulsão dos holandeses, o governo pernambucano intensificou os ataques contra Palmares. Foi sob as armas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo que o estado autônomo de Palmares cairia. Em 20 de novembro de 1695, Zumbi, então líder do quilombo, foi emboscado e morto. A data marca o feriado da Consciência Negra, que se tornaria lei nacional apenas em 2003, mais de 300 anos após o assasinato de Zumbi.

O próprio bandeirante paulista foi um dos beneficiados com a repartição das terras onde antes ficava o quilombo. De acordo com a Secretaria da Cultura de Alagoas, Domingos Velho fundou o arraial dos Palmares, onde mandaria construir a capela de Nossa Senhora das Brotas, que daria nome ao arraial. Quase 70 anos após a morte de Zumbi, em 1764, o local seria promovido a vila e rebatizado de vila de Atalaia.

A vila de Atalaia seria, no futuro, governada por outro antepassado do ex-presidente Collor. Segundo livro “Atalaia, último reduto dos palmarinos”, de Vandete Pacheco Cavalcante, o capitão Francisco Guilherme Bittencourt, filho do coronel João de Farias (que teria usado mão de obra escrava no seu engenho), foi nomeado o primeiro intendente (espécie de prefeito) de Atalaia, em 1890, após o fim do Império do Brasil, na época da Primeira República. O capitão foi o trisavô de Collor e faleceu em 1914.

O município de União dos Palmares, onde hoje se localiza o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, foi criado a partir do desmembramento de Atalaia em 1831.

 

Fonte: Por Bruno Fonseca, da Agencia Pública

 

Transtorno do jogo: o que acontece no cérebro de pessoas viciadas em bets

Uma vontade irresistível de arriscar. Uma certeza de que, dessa vez, a sorte vai sorrir. Uma falta de controle sobre gastos. Uma ausência de preocupação sobre as dívidas acumuladas.

Essas são algumas frases que podem descrever o que se passa com uma pessoa com dependência em apostas, como as bets — algo que é descrito nos manuais de medicina como transtorno do jogo.

A Associação Americana de Psiquiatria diz que esse quadro é marcado por "um padrão de apostas repetidas e contínuas, apesar do ato gerar vários problemas na vida do indivíduo".

A entidade lembra que o problema vai além, e afeta também a família do paciente e toda a sociedade.

Mas o que acontece na cabeça de um indivíduo que é acometido pelo transtorno do jogo? Por que algumas pessoas que fazem apostas desenvolvem esse distúrbio — e outras não? E o que está disponível para ajudar a lidar com esse vício?

A BBC News Brasil ouviu especialistas e detalha a seguir as respostas para essas e outras perguntas relacionadas a essa doença.

•                                    Um mergulho no cérebro do apostador compulsivo

O psiquiatra Lucas Spanemberg, pesquisador do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), destaca que a dependência em fazer apostas apresenta uma raiz parecida a de outros vícios, como aqueles relacionados às substâncias (álcool, nicotina, cocaína…) e aos comportamentos (como sexo, alimentação, compras etc.).

"A gente tem uma área no cérebro chamada sistema límbico, em que uma série de estruturas interconectadas formam um circuito de recompensa. Elas são responsáveis por trazer uma sensação de gratificação", detalha o médico, que também é professor da Escola de Medicina da PUC-RS.

Qualquer coisa que nos traga prazer — a atividade sexual, comer um alimento que gostamos muito, estar próximo de pessoas queridas, etc. — provoca a liberação do neurotransmissor dopamina nesse circuito.

"E esse mecanismo é muito importante para a nossa sobrevivência e evolução como indivíduo e espécie", observa Spanemberg.

O problema é que existem substâncias e comportamentos que despejam uma quantidade muito maior da dopamina neste sistema do cérebro.

"Há certos fatores que entram no circuito de recompensa e pervertem toda essa experiência", aponta o psiquiatra.

"Vamos supor que, numa situação prazerosa normal, a dopamina é liberada numa intensidade 10. Quando estamos diante de um elemento aditivo, essa intensidade sobe para 100", compara ele.

De acordo com o psiquiatra, essa diferença "inaugura um parâmetro diferente de satisfação química no cérebro", que "distorce a cognição" e "traz uma sensação de que é necessário repetir esse comportamento".

"Aos poucos, a pessoa deixa de fazer coisas que seriam gratificantes e trariam uma escala de satisfação química normal para o cérebro, para algo que é aditivo e traz muito mais dopamina para esse circuito", pontua Spanemberg.

•                                    Área do cérebro responsável por resolução de problemas tem atividade reduzida

O médico Vinícius Andrade, da Comissão de Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria, lembra que outras regiões do cérebro além do sistema límbico estão envolvidas no transtorno do jogo.

"Podemos citar áreas do córtex pré-frontal, que fica perto da testa, e é responsável pela tomada de decisões e resolução de problemas", diz o especialista, que também é médico assistente do Ambulatório de Transtornos de Impulso da Universidade de São Paulo (USP).

"Em estudos que avaliam indivíduos com transtorno do jogo, foi observada também uma redução na conectividade de áreas como o córtex medial orbitofrontal, o striatum e o córtex cingulado anterior", detalha ele.

Alguns trabalhos também citam alterações na amígdala, que está relacionada com a regulação do estresse.

Na prática, todas essas diferenças dificultam a tomada de decisões razoáveis ou conscientes — como, por exemplo, gastar ou não muito dinheiro em apostas que envolvem um alto grau de incerteza sobre eventuais ganhos futuros.

Temos, então, um cenário danoso por diversos caminhos: por um lado, há um enorme despejo de dopamina nos sistemas de recompensa, algo que é literalmente viciante; por outro, ocorre uma "bagunça" nos circuitos neuronais que deveriam tomar decisões racionais e ponderadas (como não gastar o dinheiro do aluguel ou das contas em apostas, por exemplo).

Mas será que esses efeitos são os mesmos diante de todas as modalidades de jogos — da aposta feita numa casa lotérica ao cassino e o joguinho instalado no celular?

Segundo os especialistas, a questão aqui está relacionada à disponibilidade.

Enquanto no caso da loteria é preciso se deslocar até um outro local, os aplicativos de aposta estão "grudados" na pessoa o tempo todo, já que o smartphone virou um apetrecho essencial.

"Antigamente, a pessoa tinha que ir até um local para poder jogar. Agora, ela é bombardeada o tempo todo com possibilidades de ganho e recompensa. Isso muda tanto o tempo de exposição quanto a intensidade com que isso acontece", avalia Andrade.

"Além disso, sabemos que essas empresas de tecnologia coletam dados do usuário, o que aprimora as ferramentas para ampliar cada vez mais o estímulo e prender a atenção", complementa ele.

•                                    Por que algumas pessoas desenvolvem o transtorno do jogo — e outras não?

Uma revisão de artigos publicada em 2019 na revista Nature Reviews e assinada por especialistas da Universidade Yale, nos EUA, e outras instituições americanas, canadenses e australianas, calcula que o transtorno do jogo afeta entre 0,4 e 0,6% da população.

O número varia consideravelmente de acordo com o local em que levantamentos do tipo são feitos. Em Hong Kong, essa porcentagem fica em 1,8%, enquanto na Austrália pode chegar a 2%.

Em linhas gerais, os especialistas e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) concordam que o distúrbio afeta ao redor de uma a cada 100 pessoas.

Mas e dentro do universo de indivíduos que fazem apostas com regularidade? Há uma tendência de o transtorno do jogo ser mais frequente neste grupo?

A resposta é sim. O médico Hermano Tavares, coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico e do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, lembra de um trabalho feito há uma década, que mostrou que 12 a 15% dos brasileiros apostam regularmente.

Na visão dele, esse número deve ter aumentado recentemente, com a liberação das bets e a maior disponibilidade desses serviços em aplicativos de celular.

"Das pessoas que jogam regularmente, em torno de 15% desenvolvem dificuldades com o jogo", calcula Tavares.

"Ou seja, de sete pessoas que gostam de fazer uma fezinha de vez em quando, uma desenvolve esse tipo de problema", detalha o especialista.

O psiquiatra destaca que essa é uma taxa média, pois o nível de adição pode variar de acordo com o tipo de jogo.

"Um jogo como o do tigrinho ou do aviãozinho é mais aliciante, então essa porcentagem tende a ser maior. Já uma aposta de loteria é algo mais protegido, porque o indivíduo faz a aposta e demora uma semana para ter acesso ao resultado", compara ele.

Por trás do desenvolvimento do transtorno do jogo, há uma predisposição genética — embora não tenham sido identificados genes específicos por trás do problema — e também uma série de fatores ambientais.

Além da modalidade de jogo e o tipo de aposta, questões como idade e a presença de outras doenças psiquiátricas podem influenciar por aqui.

"Uma exposição mais precoce, antes dos 18 anos, quando o sujeito ainda não possui um freio inibitório bem desenvolvido no cérebro, é um importante fator de vulnerabilidade", destaca Spanemberg.

"Pessoas que já têm um outro transtorno, como uma depressão, por exemplo, também apresentam maior risco de desenvolver dependência", acrescenta ele.

O especialista pondera que todos esses elementos — genética, idade, doenças psiquiátricas, entre outros — não determinam se alguém vai necessariamente ter um problema relacionado ao jogo.

Mas eles aumentam a probabilidade de "desenvolver um comportamento pernicioso, danoso e patológico", segundo o psiquiatra.

•                                    O que define o transtorno do jogo

A Associação Americana de Psiquiatria explica que uma pessoa pode ser diagnosticada com o transtorno do jogo quando tem pelo menos quatro sintomas da lista a seguir:

•                                    Pensamentos frequentes sobre apostas (como relembrar apostas no passado ou planejar apostas futuras);

•                                    Necessidade de apostar, com aumento na quantia gasta para alcançar o mesmo nível de excitação;

•                                    Esforços repetidos e frustrados para controlar, diminuir ou parar de apostar;

•                                    Inquietação ou irritabilidade ao tentar reduzir ou parar de jogar;

•                                    Ver o jogo como uma tentativa de escapar de problemas ou do estresse;

•                                    Após perder dinheiro ou algo de valor com apostas, sentir a necessidade de continuar no jogo para “se vingar” — algo também conhecido como "perseguir" as próprias perdas para superá-las;

•                                    Após perder dinheiro ou algo de valor com apostas, sentir a necessidade de continuar no jogo para “empatar” — ou seja, recuperar aquilo que perdeu;

•                                    Jogar quando sentir algum tipo de angústia;

•                                    Mentir para esconder o quanto está envolvido com jogos de azar;

•                                    Perder oportunidades importantes relacionadas com a vida pessoal e profissional por causa do jogo;

•                                    Contar com a ajuda de outras pessoas para lidar com problemas financeiros causados pelo jogo.

Andrade chama a atenção para a importância do apoio da família e de amigos nesse processo de diagnóstico.

“Quando a gente fala de jogo, algo muito comum é o indivíduo mentir e mascarar as perdas ou a quantidade de vezes que aposta”, observa o médico.

“Ao mesmo tempo, ele tem uma grande vontade de jogar, num comportamento de fissura muito intenso. É como se você estivesse com fome e não pudesse comer”, compara ele.

O psiquiatra aponta que, se o paciente não conta com esse apoio de todos que o cercam, a busca por uma ajuda profissional acontece muito tardiamente.

"E isso gera um enorme prejuízo econômico e familiar", lamenta Andrade.

•                                    Como tratar o transtorno do jogo

Feito o diagnóstico, é possível lançar mão de uma série de medidas para lidar com a dependência.

"A abordagem depende muito das características do paciente", diz Spanemberg.

"A maioria deles possui algum outro transtorno psiquiátrico associado, como uma depressão, que também precisa de tratamento", acrescenta ele.

"O jogo muitas vezes é uma estratégia, um subterfúgio para lidar com um sentimento negativo que está relacionado com outro distúrbio", reforça Spanemberg.

Ao tratar a doença de base (como depressão ou ansiedade, por exemplo), a tendência é aliviar esses sentimentos negativos — e, por consequência, diminuir aos poucos a necessidade de fazer apostas.

Em linhas gerais, o transtorno do jogo pode ser trabalhado na terapia cognitivo-comportamental, um tipo de psicoterapia em que o paciente e o profissional de saúde avaliam e discutem comportamentos e pensamentos, para que eles possam ser modificados com o passar do tempo.

"Também há a entrevista motivacional, uma abordagem usada para entender o estágio de consciência que o indivíduo está em relação à dependência. Ele pode se encontrar numa fase de negação do problema ou contemplar o que está vivendo. Há também aqueles que já estão na etapa de ação, de trabalhar para sair daquela situação", complementa Spanemberg.

Em alguns casos, os médicos podem também prescrever medicações.

"Sabemos que remédios da classe dos antagonistas opioides podem ajudar a segurar aquele comportamento típico da aposta", cita Andrade.

O psiquiatra também lembra dos grupos de apoio. "No Brasil, temos os Jogadores Anônimos e o Gaming Addicts, que fazem um trabalho muito bom", sugere ele.

•                                    Transtorno de jogo: a demanda por tratamento vai aumentar?

Diante da popularidade das bets — que, por exemplo, hoje patrocinam a maioria dos clubes de futebol da Série A do Campeonato Brasileiro —, existe um temor em termos de saúde pública sobre o aumento de casos de transtorno do jogo.

Entre os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa preocupação é clara.

"Precisamos discutir não apenas as repercussões sociais do jogo, mas também todas as questões de saúde mental", concorda Spanemberg.

Tavares lembra que, em meados dos anos 1990, o Brasil viveu a febre dos bingos e das máquinas caça-níquel.

"Em 1996, os casos começaram a chegar lá no Instituto de Psiquiatria da USP. Eu era professor auxiliar e ouvi uma primeira pessoa dizer que gastava todo dinheiro nos bingos, se arrependia, ficava péssimo e depois tentava recuperar”, lembra ele.

“Resolvi transformar esse e outros relatos no meu objeto de estudo. Em 1998, após terminar meu doutorado, abri o Ambulatório de Jogo, onde fazia longas entrevistas com jogadores compulsivos e oferecia tratamento a eles.”

Com o passar do tempo, o serviço foi formalizado e precisou ser ampliado.

“A depender da época, chegamos a ter entre 5 a 10 profissionais contratados e outros 60 a 70 voluntários no ambulatório. No auge, contamos com cerca de 80 colaboradores”, estima Tavares.

Essa demanda foi reduzida com o fechamento dos bingos, em meados de 2004. Mesmo assim, ela nunca chegou a cessar.

Mais recentemente, de 2018 em diante, com a inundação das bets e outros jogos onlines no Brasil, a procura pelos serviços do ambulatório voltou a subir.

“Com a nossa estrutura atual, conseguimos atender 80 casos novos por ano, além de acompanhar outros 160 pacientes que fazem um seguimento por cerca de dois anos”, informa o psiquiatra.

“Mas diante de um fenômeno como esse que vivemos agora, ficamos com o triplo de pacientes na fila de espera.”

“É claro que esses números não retratam a realidade do Brasil, são apenas gotinhas num oceano muito maior”, avalia o especialista.

Para Tavares, o aumento do acesso às apostas está relacionado a uma demanda na frequência do transtorno do jogo entre a população — e será necessário criar um aparato no Sistema Único de Saúde (SUS) para absorver essa demanda de pacientes.

“O jogo sempre existiu e sempre vai existir. O que varia é a forma como se regulamenta esse setor”, avalia o médico.

“Podemos permitir uma maior ou menor penetração deles na sociedade. Se proibimos tudo, isso diminui a demanda por tratamento, embora sempre exista o mercado ilegal.”

“Agora, caso o jogo seja liberado por uma questão de equilíbrio das contas fiscais e economia, será necessário fazer um investimento equivalente na saúde pública. Isso precisa virar uma política de Estado”, opina ele.

"Se esse investimento não acontecer, o tiro sai pela culatra. A arrecadação com eventuais impostos não será suficiente para tapar o buraco do adoecimento mental e das mazelas financeiras relacionadas ao jogo", conclui o psiquiatra.

 

Fonte: BBC News Brasil