Richard D. Wolff: ‘A raiva das massas’
Na esteira de sua
enorme derrota em 30 de junho de 2024, quando 80% dos eleitores rejeitaram o
presidente “centrista” francês Emmanuel Macron, ele disse que entendia a raiva
do povo francês. No Reino Unido, o conservador e perdedor Rishi Sunak disse o
mesmo sobre a raiva do povo britânico; o líder trabalhista Keir Starmer diz
agora que compreende por que a raiva está explodindo em seu país. É claro que
essas frases desses políticos geralmente significam pouco ou mesmo nada; elas
não implicam numa mudança de rumo substantiva.
Esses líderes europeus
e seus partidos continuam a calcular qual seria a melhor forma de recuperar o
poder depois que o perderam. Nisso, eles são como os democratas
norte-americanos após o desempenho de Joe Biden em seu debate com Donald Trump,
agora em 2024, ou como os republicanos nos EUA após a derrota de Donald Trump,
em 2020. Em ambos os partidos, um pequeno grupo de líderes e de doadores toma
sempre todas as decisões importantes, mas organiza depois o teatro político
para ratificá-las “democraticamente”. Mesmo uma surpresa como a de Kamala
Harris, que substituiu Joe Biden na corrida eleitoral, é apenas um pequeno
desvio no rumo costumeiro da política contemporânea.
No entanto, ao
contrário de Donald Trump, essa nova candidata perdeu já a oportunidade de se
identificar e de organizar uma base de massa formada por pessoas furiosas.
Donald Trump conseguiu chegar a essa identificação dizendo em voz alta – e
grosseiramente – aquilo que políticos tradicionais pensam, mas consideram que
não devem dizer em público, sobre imigrantes, mulheres, OTAN e tabus políticos
tradicionais.
Essa situação permitiu
que Donald Trump insistisse que fora enganado e que havia vencido a eleição de
2020. A raiva massiva das populações que se sentem vitimizadas em suas vidas
cotidianas encontrou um porta-voz que alegava em voz alta ter sido vítima de um
complô dos políticos tradicionais. Donald Trump e a sua base entenderam que,
juntos, podem transformar os seus vitimadores em vítimas.
Nenhum líder
importante no Ocidente coletivo, incluindo Donald Trump, parece “entender”
realmente porque a raiva dos eleitores pode ser explorada politicamente. Ao
perderem, eles geralmente se tornam apenas capazes de culpar os seus oponentes
na próxima eleição. Joe Biden culpou Donald Trump por uma economia “ruim” em
2020, enquanto Donald Trump apontara para essa mesma culpa em 2016; em breve,
ele passará a culpar Kamala Harris. Os oponentes presidenciais culpam o outro
pela “crise da imigração”, por proteger inadequadamente a indústria
norte-americana da concorrência chinesa, dos déficits orçamentários do governo
e das exportações de empregos.
Nenhum líder
convencional “entende” (ou ousa sugerir) que a raiva massiva hoje em dia pode
ser mais do que uma coleção de reclamações e de demandas específicas (sobre
armas, aborto, impostos e guerras). Mesmo os demagogos que gostam de falar
sobre “guerras culturais” não ousam perguntar por que tais “guerras” estão em
alta agora. Os irritados que proferem o “Make America Great Again”
(MAGA) são notavelmente vagos e mal-informados, tal como os seus críticos
apontam. Raramente esses críticos oferecem explicações alternativas persuasivas
para a raiva que se expressa por meio da palavra MAGA – isto é, explicações que
não sejam nem vagas nem mal-informadas.
É de se questionar, em
particular, se a raiva que o movimento MAGA expressa diz respeito a um
sofrimento genuíno, massivo, que ainda não entendeu a sua própria causa? Essa
causa não poderia ser nada menos do que o declínio do capitalismo ocidental e
de tudo o que ele representa. Se tabus ideológicos e antolhos impedem
admiti-lo, os resultados desse declínio – ansiedade, desespero e raiva – podem
se concentrar em bodes expiatórios adequados? Trump e Biden, Macron e Sunak e
tantos outros não estariam escolhendo bodes expiatórios alternativos para
mobilizar uma raiva que eles não entendem e que não ousam investigar?
Afinal, o capitalismo
ocidental não é mais o mestre colonial do mundo. O império americano, que
sucedeu aos impérios europeus, está agora também em declínio. O próximo império
será chinês ou, então, alternativamente, a era dos impérios terminará dando lugar
a uma genuína multipolaridade global. O capitalismo ocidental também não é mais
o centro de crescimento dinâmico do mundo; eis que este se moveu para a Ásia.
O capitalismo
ocidental está claramente perdendo a posição que mantinha como poder supremo
unificado e autoconfiante, poder este que costuma atuar por trás do Banco
Mundial, das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional e do dólar
americano como moeda mundial.
Em termos de poder
econômico global, medido pelos PIBs nacionais, os Estados Unidos e seus
principais aliados (G7) estão ficando para trás; eles têm um PIB total agregado
que já é significativamente menor do que os PIBs agregados da China e de seus
principais aliados (BRICS). O tamanho dos dois blocos de poder econômico global
fora aproximadamente igual em 2020. Contudo, a diferença entre eles tem
aumentado desde então e continuará certamente a aumentar nos próximos anos.
A China e seus aliados
do BRICS cada vez mais se apresentam como o bloco mais rico da economia
mundial. Nada preparou as populações do capitalismo ocidental para essa nova
realidade e para os seus efeitos. Em especial, partes dessas populações estão
sendo forçadas a absorver os fardos pesados do declínio do capitalismo
ocidental; sentem-se, por isso, traídos, abandonados e com raiva. As eleições
são apenas um canal por meio da qual expressam esses sentimentos.
A minoria rica,
poderosa, mas pequena, que domina no capitalismo ocidental pratica uma
combinação de negacionismo e de ajustamento diante do próprio declínio. Os
políticos predominantes, a grande mídia e os acadêmicos continuam a orar,
escrever e agir como se o Ocidente ainda fosse globalmente dominante. Para
eles, ensimesmados em suas formas de pensar, o domínio global ganho na segunda
metade do século passado não terminou e não vai terminar. As guerras na Ucrânia
e em Gaza testemunham esse negacionismo, exemplificando os erros estratégicos,
por certo dispendiosos, que ele produz.
Quando não negam a
nova realidade, porções significativas dos ricos e dos poderosos que governam
as corporações do capitalismo ocidental estão fazendo reajustes na política
econômica que preferem; mantêm o neoliberalismo, mas introduzem nele doses de
nacionalismo econômico. A principal justificativa para esse tipo de ajuste é
que ele serve à “segurança nacional”, ou seja, ele pode ao menos retardar a
“agressividade da China”. Internamente, os ricos e poderosos de cada país usam
suas posições e recursos para transferir os custos do declínio do capitalismo
ocidental para a massa de seus concidadãos de renda média e para os mais
pobres. Eles pioram as desigualdades de renda e riqueza, cortam os serviços
sociais governamentais e endurecem os comportamentos policiais e as condições
das prisões.
Esse negacionismo
facilita o declínio contínuo do capitalismo ocidental. Muito pouco é feito – e
tarde demais – já que os problemas ainda não foram apreendidos como tais. A
deterioração das condições sociais decorrentes desse declínio, especialmente
para as pessoas de renda média e para os pobres, oferece oportunidades para os
demagogos de direita. Eles continuam a culpar os imigrantes estrangeiros, o
poder estatal excessivo, os democratas, a China, o secularismo, o aborto e os
inimigos que combatem por meio da guerra cultural, pelo declínio; ao fazê-lo,
esperam reunir um eleitorado grande que os tornem vencedores na disputa
política corriqueira.
Infelizmente, os
críticos de esquerda se concentram apenas em tentar refutar as alegações da
direita sobre tais bodes expiatórios. Embora as refutações apresentadas sejam
frequentemente bem documentadas e eficazes no combate midiático, em especial
contra a mídia de direita, a esquerda raramente invoca argumentos explícitos e
bem sustentados sobre os vínculos da raiva das massas com o declínio do
capitalismo.
A esquerda falha muito
ao não enfatizar que os reguladores do governo, por mais bem-intencionados que
sejam, se sujeitaram ou foram capturados pelos especuladores capitalistas do
setor privado.
Assim, a massa de
pessoas se tornou cada vez mais profundamente cética quanto à capacidade do
governo para corrigir ou compensar as falhas do capitalismo. As pessoas
entendem, muitas vezes apenas intuitivamente, que o problema de hoje é a fusão
dos capitalistas com governos omissos. A esquerda e a direita popular se sentem
cada vez mais traídas pelas promessas de políticos do espectro que vai da
centro-esquerda ao centro-direita.
A intervenção do
governo mudou muito pouco na trajetória do capitalismo moderno. Para um número
crescente de pessoas, os políticos de centro-esquerda e de centro-direita
parecem servos dóceis iguais dessa fusão entre capitalistas e governos
impotentes. Ora, essa fusão constitui o capitalismo moderno com todos os seus
fracassos e todas as suas falhas. Assim, a direita de hoje é bem-sucedida ao se
retratar como não centrista; ela apresenta candidaturas explicitamente polares.
A esquerda é mais fraca porque muitos de seus programas parecem ainda ligados à
ideia de que boas intervenções governamentais poderiam corrigir ou compensar as
deficiências do capitalismo.
Em suma, a raiva das
massas não é conectada ao declínio do capitalismo, em parte porque a esquerda,
a direita e o centro negam, evitam ou negligenciam que esse vínculo exista. A
raiva das massas não se traduz ou ainda não se move por uma política anticapitalista
explícita, em parte porque poucos movimentos políticos organizados se mostram
capazes de mostrar outro caminho.
Assim, Rachel Reeves,
chanceler do Tesouro no novo governo do Partido Trabalhista da Grã-Bretanha,
anuncia alegremente que “não há muito dinheiro aqui”. Desse modo, ela prepara o
público – e desculpa preventivamente o novo governo – para o quão pouco ele
poderá fazer. Ela vai além e define como o seu principal objetivo “desbloquear
o investimento privado”. Até as palavras que escolhe soam bem aos ouvidos dos
velhos conservadores; elas dizem aquilo que eles próprios diriam se fossem
governo. No capitalismo em declínio, as mudanças eleitorais podem e muitas
vezes servem para evitar ou pelo menos adiar uma mudança real.
As palavras de Rachel
Reeves garantem às grandes corporações e ao 1% mais rico que o Partido
Trabalhista, agora sob a condução de Keir Starmer, não vai tributá-los
pesadamente. Isso é música para eles já que é justamente nas grandes
corporações e nos bolsos dos ricos e dos muito ricos que há “muito dinheiro”. A
riqueza desse 1% poderia facilmente financiar uma reconstrução genuinamente
democrática de uma economia britânica seriamente esgotada após a crise de 2008.
Em contraste, os programas conservadores típicos que priorizam o investimento
privado são aquilo que levaram o Reino Unido ao seu triste estado atual. Eles
eram o problema; eles não são a solução.
O Partido Trabalhista
já foi socialista. O socialismo já significou uma crítica completa do sistema
capitalista e a defesa de algo totalmente diferente. No passado, os socialistas
buscaram vitórias eleitorais para ganhar o poder de governo com o fim de fazer
uma transição para uma ordem pós-capitalista. Mas o Partido Trabalhista de hoje
jogou fora essa história. Ele quer administrar o capitalismo britânico
contemporâneo com um pouco menos de severidade do que os conservadores.
Trabalha para
persuadir a classe trabalhadora britânica de que algo “menos duro” é o melhor
que eles podem esperar. E os conservadores britânicos podem de fato sorrir e
aprovar condescendentemente tal Partido Trabalhista ou até mesmo passar a
discutir com ele quanta dureza o capitalismo de hoje “precisa”.
Emmanuel Macron, que
também já foi socialista, desempenha agora um papel semelhante na França. De
fato, o mesmo acontece com Joe Biden e Donald Trump nos Estados Unidos, Justin
Trudeau no Canadá e Olaf Scholz na Alemanha. Todos oferecem receitas administrativas
para levar a frente o capitalismo em decadência. Nenhum deles tem programas
destinados a resolver os problemas básicos, acumulados e persistentemente não
resolvidos do capitalismo em sua fase atual.
As soluções exigiriam
primeiro admitir quais são esses problemas: instabilidade ciclicamente
recorrente, distribuições cada vez mais desiguais de renda e riqueza, corrupção
monetária da política, mídia de massa e cultura e políticas externas cada vez
mais opressivas que não conseguem compensar um capitalismo ocidental em
declínio. O negacionismo coletivo que prospera em todo Ocidente impede que
esses problemas possam ser enxergados; impede também que soluções novas possam
ser pensadas e apresentadas em programas que visam obter uma mudança real. Os
governos alternativos atuais apenas administram; eles não ousam liderar. Um
regime liderado por Kamala Harris e Tim Walz romperia com esse padrão?
Se chegar ao poder, a
sua administração certamente oscilará entre políticas de livre comércio e
políticas protecionistas – tal como os governos capitalistas anteriores o
fizeram. Nos Estados Unidos, os passos recentes do Partido Republicano, assim
como do Partido Democrata, em direção ao nacionalismo econômico são exceções
aos compromissos generalizados com a globalização neoliberal; são exceções que
visam e se esmeram em buscar votos.
As megacorporações
ocidentais, incluindo muitas sediadas nos Estados Unidos, dão boas-vindas ao
novo papel da China como campeã global do livre comércio (mesmo se está sendo
retaliada moderadamente por meio de tarifas e de guerras comerciais iniciadas
pelo Ocidente). O apoio continua forte para as negociações para moldar divisões
globais geralmente aceitáveis dos fluxos de comércio e investimento. Estes
últimos são vistos como lucrativos, bem como um meio de evitar guerras
perigosas.
Nas próximas eleições,
o confronto entre o livre comércio e as tendências protecionistas continuarão a
aparecer. Mas o fator mais fundamental nas eleições deste ano nos Estados
Unidos é a raiva difusa que foi despertada no Ocidente Coletivo por seu declínio
histórico; eis que os efeitos desse declínio afetam a massa dos cidadãos comuns
sem que eles possam compreendê-lo. Como essa raiva moldará as eleições?
A extrema direita
reconhece e cavalga a raiva mais profunda sem aclarar, é claro, a sua relação
íntima com o estado do capitalismo. Marine Le Pen, Nigel Farage e Donald Trump
são exemplos. Todos eles zombam e ridicularizam os governos de centro-esquerda e
centro-direita que apenas administram o que descrevem como um navio afundando
que precisa de uma liderança nova e diferente. Mas sua base de doadores
(capitalista) e sua ideologia de longa data (pró-capitalista) os impedem de ir
além de encontrar um bode expiatório (imigrantes, minorias étnicas,
sexualidades heterodoxas e demônios estrangeiros).
A grande mídia também
não consegue entender a relação da raiva das massas com o capitalismo. Assim,
eles descartam a raiva como irracional, afirmando que foi causada por
“mensagens” inadequadas de influenciadores em busca de prestígio e dinheiro.
Por muitos meses, os principais especialistas econômicos lamentaram a
“estranha” coexistência de uma “economia forte” – mostram as pesquisas – com
uma decepção massiva sobre uma “economia ruim”. Por “estranho” eles querem
dizer “estúpido” ou “ignorante” ou “politicamente motivado/desonesto”:
conjuntos de palavras muitas vezes condensados pelo termo “populista”.
A esquerda tem ciúmes
da significativa base de massas da extrema direita que, como se sabe, penetrou
agora em grandes contingentes da classe trabalhadora. Na maioria dos países, o
movimento de esquerda passou as últimas décadas tentando manter sua base na
classe trabalhadora; contudo, o movimento de centro-esquerda, que era dominante
nessa corrente política, fazia tudo para minar essa base. Isso levou até mesmo
os comunistas e anarquistas a aderirem a teses socialistas e
liberais-democráticas cada vez mais “moderadas”.
Essa mudança incluiu
minimizar a busca por um pós-capitalismo, amplamente diferente daqueles do
passado, em favor do objetivo imediato de lutar por um capitalismo mais suave e
humano que seria promovido pelo Estado; nesse capitalismo, os salários e os benefícios
seriam maiores, os impostos seriam mais progressivos, ciclos seriam mais bem
regulamentados e as minorias seriam menos oprimidas. Para essa esquerda, a
raiva das massas que ela era capaz de reconhecer advinha de fracassos em
alcançar um capitalismo mais suave e fomentado pelo Estado, não do declínio do
capitalismo ocidental.
À medida que o centro
dinâmico do capitalismo foi se movendo para a Ásia e para outros lugares do Sul
global, o declínio se instalou entre seus centros antigos, os quais estavam
mais ou menos abandonados. Os capitalistas do velho centro participaram e lucraram
muito à medida que o sistema realocava seu centro dinâmico. Os capitalistas,
tanto estatais quanto privados, nos novos centros lucraram ainda mais. Nos
velhos centros, os ricos e poderosos transferiram o fardo do declínio para as
massas.
Nos novos centros, os
ricos e poderosos reuniram a nova riqueza capitalista principalmente em suas
mãos, deixando apenas o necessário para satisfazer grandes porções das classes
trabalhadoras. É assim que o capitalismo funciona e sempre funcionou. Para a
massa de empregados, o movimento ascendente do centro dinâmico do capitalismo,
em que eles trabalhavam e viviam, parecia agradável e esperançosa.
Mas isso foi
desaparecendo à medida que o declínio foi se instalando na sociedade. Ora, essa
descida da prosperidade provoca depressão e traumas. A queda sem consciência,
sem admissão e sem discussão, transforma-se em raiva.
Fonte: A Terra é
Redonda
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