Renúncia tributária: benefícios para quem
Toda e qualquer
renúncia de receita, tanto da União quanto dos estados e municípios, deve ser
precedida por lei. É a previsão que conta em nosso ordenamento jurídico, mas
não só. As renúncias, caso interfiram no resultado fiscal, devem ser
acompanhadas de medidas de compensação por meio de aumento de receita, seja
aumentando alíquotas, ampliando base de cálculo, majorando ou até mesmo criando
tributo ou contribuição, além de contrapartidas claras de aumento de produção,
investimentos e empregos, com fiscalização subsequente.
De acordo com o
Tribunal de Contas da União, os benefícios tributários, ou renúncias
tributárias, somaram R$ 519 bilhões em 2023, dos quais R$ 68 bilhões foram
provenientes de 32 desonerações concedidas neste mesmo ano. Mas, de fato, esse
elevado montante de recursos renunciados pelo Estado compensa?
Além de carecer de
transparência e de comprovação de resultados, as políticas de desoneração, que
não deveriam ser permanentes, acabam transformando-se em instrumento de pressão
de setores empresariais que não querem abrir mão de receber esse benefício, mesmo
quando as contrapartidas se mostram insuficientes.
Vejamos o exemplo da
desoneração da folha de pagamento. É uma renúncia tributária que vigora desde
2012. Segundo informava o governo à época, contribuiria para reduzir custos de
produção e gerar empregos, estimulando a formalização do mercado de trabalho e
aumento de investimentos produtivos.
É importante observar
que, no começo dos anos 2000, havia uma preocupação bastante elevada quanto à
informalidade do trabalho nacional e, em maio de 2011, tomou corpo a proposta
de substituir a contribuição previdenciária patronal por uma contribuição sobre
faturamento, que aliviasse a carga tributária das empresas, mas não diminuísse
as receitas previdenciárias.
Prevista para um
número reduzido de setores, a desoneração da folha de pagamento gradativamente
passou a alcançar outros ramos de negócios, incluindo o setor de serviços.
Sendo uma das principais fontes de financiamento (mas não a única) do sistema
de seguridade social, no qual o regime geral da previdência social faz parte, a
política de substituição de uma contribuição patronal sobre salários por uma
contribuição sobre faturamento das empresas deveria estar acompanhada de
estudos e análises que evidenciassem os efeitos desta política adotada pelo
governo.
De fato, desde a sua
implementação, o tema da desoneração da folha de pagamento vem sendo debatido
em diferentes espaços, especialmente no meio acadêmico. A questão principal a
ser analisada era se esse gasto (renúncia) teria efeitos na produção e emprego
ou não. Porém, os trabalhos que analisam a questão ou são inconclusivos ou não
demonstram efeitos significativos sobre o emprego, os salários e a
competitividade, conforme demonstrado em artigo publicado em 2022 (Freitas e
Paes).
Os autores deste
artigo fizeram uma revisão bibliográfica sobre os trabalhos apresentados e
entre eles, ressaltamos o que segue: em 2012, foi estimado o impacto da
desoneração da folha sobre a formalização do mercado de trabalho e sobre a
realocação entre setores de atividade econômica, sendo que os resultados não
evidenciaram impacto nos itens analisados.
Em 2014, um trabalho
de pesquisa indicou que das quatro seções analisadas, apenas a de Informação e
Comunicação gerou resultado positivo relevante tanto para emprego quanto para
os salários. Ou seja, a política de desoneração não surtiu o efeito pretendido
na maior parte dos setores econômicos avaliados.
Já em 2018, outra
pesquisa avaliou quantitativamente o efeito da política de desoneração sobre o
volume de emprego e não foi encontrado efeito sobre o emprego formal.
Em 2019, foram
avaliados os efeitos sobre as variáveis econômicas e também os efeitos da
reoneração conferida pela Lei 13.161/2015. A constatação foi de que a política
de desoneração, no longo prazo, foi neutra sobre o emprego no longo prazo, mas,
por outro lado, houve a constatação de que a política de reoneração produz uma
redução do emprego.
Os valores de renúncia
da arrecadação tributária foram de, aproximadamente, R$ 3,6 bilhões (2012), R$
12,2 bilhões (2013) e R$ 7,8 bilhões (2014).
Considerando as
limitações que os estudos realizados enfrentaram, Freitas e Paes avançaram na
metodologia e analisaram também a variável competitividade, extremamente
importante na política de desoneração da folha de pagamento.
A principal
constatação foi que a política surtiu efeito quando implementada e,
gradativamente, esse efeito de melhoria no emprego foi se atenuando e se
tornando praticamente nulo. Com relação à competitividade industrial, somente
no período entre 2015 e 2016 houve resultados significativos, com ganhos das
empresas desoneradas. Observa-se, porém, que nesse período o Brasil atravessava
uma forte crise econômica e os empregos diminuíram muito.
A divergência de
resultados nas pesquisas e estudos, inclusive considerando todo o período da
desoneração, mostra considerável ausência de eficiência global da medida, no
sentido de gerar benefícios a toda sociedade e não somente para grupos
empresariais e/ou setores isolados.
No exame das contas do
governo federal realizado pelo Tribunal de Contas da União, o relator, Vital do
Rego, afirmou em seu voto que a política de desoneração da folha poderia ser
explicada se houvesse comprovação inequívoca dos resultados positivos. Quer
dizer, se fosse acompanhada das compensações almejadas. Disse ainda que pode
ter havido ganhos nas primeiras fases da desoneração, mas que, ao longo do
tempo, a política de desoneração passou a afastar-se dos seus objetivos
principais de fortalecer a competitividade, reerguer setores específicos,
fortalecer relações trabalhistas e gerar empregos e renda (Voto do Relator na
apreciação das contas do governo federal – TC 010.005/2024-2, junho de 2024).
Ao longo dos anos, a
política de desoneração, que deveria ser efetivamente avaliada e monitorada,
foi se modificando. A partir de 2015, começa a haver um movimento para limitar
o uso dessa política e corrigir algumas distorções, além de aumentar a alíquota
sobre o faturamento de 1% para 2,5% e de 2% para 4,5%, conforme o setor.
Em 2018, foi fixada
uma data final para a desoneração da folha de pagamento, 31/12/2020. Mas, em
2020, houve prorrogação do prazo até 31/12/2021 e, posteriormente, o prazo foi
estendido até 31/12/2023.
Eis que então chegamos
à atual polêmica: ao final de 2023, a desoneração da folha foi novamente
prorrogada até 31/12/2027, mas essa prorrogação foi vetada pelo presidente
Lula. No retorno ao Congresso Nacional, o veto do presidente foi derrubado e
foi promulgada a Lei 14.784/2023, mantendo a desoneração.
Na sequência, o
governo federal publicou a medida provisória 1.202/2023 que revogou a
integralidade da Lei 14.784/2023 a fim de impedir o recolhimento das
contribuições previdenciárias patronais usando como base de cálculo a receita
bruta auferida e reonerou de forma gradual as contribuições sobre salários para
várias atividades econômicas.
A preocupação com as
contas públicas foi o que levou o governo a editar a MP 1.202. Afinal, a
desoneração da folha significa, na prática, uma perda de arrecadação de R$ 26
bilhões no ano de 2024.
Ocorre que diante de
protestos dos setores afetados e após negociações entre governo e Legislativo,
o governo federal recuou e publicou a MP 1.208/2024, revogando os artigos da MP
1.202/2023 que reoneravam a folha de pagamentos, mantendo, assim, a desoneração
da folha para 17 setores da economia (a desoneração será discutida no Projeto
de Lei 493/2024). Importante observar que a renúncia tributária decorrente da
prorrogação da folha não foi considerada na estimativa de receita da União para
o exercício de 2024.
Neste ínterim, e tendo
em face a perda iminente de arrecadação, foi impetrada uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI nº 7633) em que a Advocacia Geral da União, que
representa o presidente, alegou que as renúncias fiscais contempladas na Lei
14.784/2023 não foram acompanhadas de demonstrativo do impacto financeiro e
orçamentário.
Em decisão
monocrática, posteriormente referendada pelo pleno do STF, o relator considerou
que a Lei 14.784/2023 não apresentou a avaliação do impacto financeiro e
orçamentário para criação de despesa obrigatória, conforme disposto no artigo
113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suspendeu a eficácia
da prorrogação da desoneração da folha, pelo menos até que seja cumprido o
artigo 113 ou seja julgada a ação em definitivo.
De fato, o ministro
relator determinou o prazo de 60 dias para que governo e Congresso chegassem a
um acordo e, até esse prazo, permanece suspensa a desoneração da folha de
pagamento.
Ainda na estratégia de
compensar as perdas de arrecadação da desoneração da folha de pagamento, o
governo federal editou, no início de junho, a MP 1227/2024, restringindo o uso
de benefícios fiscais para empresas. Apelidada de “MP do fim do Mundo”, a medida
teve forte rejeição no Congresso Nacional, com sérias críticas ao governo.
Para o governo
federal, quando da apresentação da MP 1227/2024, o custo da desoneração da
folha atingiria R$ 26,3 bilhões em 2024, o que tornaria indispensável
apresentar medidas compensatórias e de correção das distorções na sistemática
de compensações. Ainda segundo o governo, o acúmulo de créditos de PIS/Cofins
estaria fora da normalidade, posto que este acúmulo deveria ser uma exceção e o
ressarcimento em dinheiro uma raridade.
Mas não é o que vem
ocorrendo: as empresas acumulam créditos e quando se trata de ressarcimento por
créditos presumidos, recebem do governo em dinheiro, uma espécie de benefício
ou subvenção.
O que ocorre de fato:
praticamente metade das compensações de débitos previdenciários, em 2023, foram
com créditos de PIS/Cofins. No entanto, cerca de 86% das compensações foram
decorrentes de compensação cruzada e somente 14% com a própria contribuição previdenciária.
Já para os débitos de
IRRF, as principais fontes são créditos de Ação Judicial e de Pis/Cofins.
Também 86% das compensações são de créditos diversos, enquanto 14% são de IRRF.
A MP 1227/2024 manteve
a possibilidade de compensação em sistema de não cumulatividade, mas sem
compensação cruzada, ou seja, somente com débitos de PIS/Cofins. O direito à compensação
no sistema da não cumulatividade foi mantido, mas é preciso que haja tributo a
ser pago. Ainda manteve a possibilidade de ressarcimento em dinheiro,
dependendo de análise pela administração tributária.
Com relação ao crédito
presumido de PIS/Cofins, onde atualmente existe previsão legal que impede o
ressarcimento em dinheiro, a MP apenas estendeu esse impedimento a oito casos
que permanecem recebendo em espécie, representando R$ 20 bilhões.
No entanto, o
presidente do Congresso e do Senado, Rodrigo Pacheco, anunciou ainda em junho
que rejeitava sumariamente e considerava como não escritos os incisos que
limitavam a compensação dos créditos de PIS e Cofins, ou seja, não haverá
tramitação desta parte da MP 1227/24. Os demais dispositivos, em vigor, serão
analisados pelo Legislativo.
O que vemos é uma
disputa acirrada: de um lado o governo tentando equilibrar as contas para gerar
receitas e manter o arcabouço fiscal. De outro, setores empresariais e pessoas
da classe dominante empurrando os tributos para as classes menos favorecidas.
Já que não abrem mão das benesses fiscais e é necessário que se “pague a
conta”, dando como alternativa “menos Estado” – mesmo sendo eles próprios os
que’ mais obtém vantagens.
Fonte: Por Maria
Regina Paiva Duarte, no Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário