A história da única entrevista de Julinho
da Adelaide, 'identidade' criada por Chico Buarque para driblar censura
A censura que vigorou
no Brasil durante o regime ditatorial cívico-militar resultante do golpe de
1964 obrigou artistas a lançarem mão de toda a sorte de artifícios — para
conseguirem se expressar e, em última instância, até mesmo denunciar as agruras
do período.
Chico Buarque criou um
hoje lendário personagem, Julinho da Adelaide.
Há 50 anos, em 7 de
setembro de 1974, uma saborosa entrevista publicada pelo jornal Última Hora
apresentava ao público aquele misterioso compositor da canção ‘Acorda, Amor’.
O autor do texto foi o
escritor e dramaturgo Mario Prata, amigo de Chico.
“Eu me lembro até da
cara do Samuel Wainer [(1910-1980), jornalista e empresário, fundador e diretor
do jornal] quando eu disse que estava pensando em entrevistar o Julinho da
Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não
havia dado nenhuma entrevista. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma
foto”, escreve Prata, em texto publicado 12 anos atrás.
Espantado, Wainer
perguntou se ele toparia. “Quem, o Julinho?”, rebateu o escritor. “Não, o
Chico”.
Sim, entre parte da
intelectualidade da época, se sabia a identidade do compositor. Quem ainda não
havia sacado era a censura. E o grande público.
“A imprensa,
bem-humorada, porém censurada, usava de ironia para noticiar a descoberta do
compositor da favela da Rocinha”, afirma o jornalista Wagner Homem, no livro
‘Histórias de Canções - Chico Buarque’.
“Compositores que já
tivessem uma letra proibida ficavam marcados e passavam a integrar uma espécie
de lista maldita da censura”, contextualiza Homem.
“Apostando na
existência da tal lista e na falibilidade dos censores, Chico compôs ‘Acorda,
Amor’ com os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, autores contra
os quais não pesava nenhuma suspeita. Ele tinha razão. Foi aprovada sem
restrições.”
Em agosto de 1974, o
jornalista Silvio Lancellotti (1944-2022) escreveu na revista Veja que Chico
estava acometido por “uma terrível síndrome de infecundidade” que o obrigava,
“pela primeira vez em sua carreira, a recorrer a trabalhos de outros autores”.
“Paradoxalmente, no
entanto, sua descoberta, um certo Julinho da Adelaide, originário da favela da
Rocinha, no Rio, demonstrou que pode tranquilamente preencher os vazios
deixados pelo autor de ‘Fado Tropical’ e outras coisas”, anotou o jornalista,
com fina ironia. “Seus estilos musicais são irmãos.”
• Embalado por uísque, o personagem foi
criado
Prata conta que àquela
altura, quando ele sugeriu a pauta a Wainer, “Chico já havia topado e marcado
para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri [no bairro do Pacaembu, em
São Paulo]” a hoje histórica entrevista.
“Demorou muitos
uísques e alguns 'tapas' para começar. Quando eu achava que estava tudo pronto,
o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois”,
prossegue o escritor e comparsa do inteligente embuste.
“Quando desceu, não
era mais o Chico. Era o Julinho”, recorda. Havia testemunhas. A mãe do músico,
Maria Amélia Buarque de Hollanda (1910-2010) “balançava o gelo no copo de
uísque”. O pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) estava “à
mesa folheando uma enorme enciclopédia”.
Também acompanhavam a
encenação duas das irmãs do Chico, Cristina e Miúcha (1937-2018); o músico
Homero Ferreira Júnior (1944-2011), conhecido como Homerinho; o então chefe do
Jornal da Tarde, o jornalista Melchiades Cunha Júnior; entre outros.
“Julinho, ao contrário
do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e
fumava. Falava pelos cotovelos, era metido a entender de tudo”, comenta Prata.
“Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro.”
Foram pouco mais de
duas horas de conversa — “a entrevista e o porre”, como enfatiza o escritor,
acrescentando que “Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado
e presente do Julinho”.
“As informações
jorravam. Foi ali que surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu irmão), foi
ali que descobrimos que a Adelaide [mãe do personagem, daí a alcunha] tinha
dado até para o [arquiteto Oscar] Niemeyer, foi ali que descobrimos que o
Julinho estava 'puto' com o Chico”, relata Prata.
O ranço seria porque o
famoso artista estava “querendo aparecer” às custas do desconhecido compositor.
Em seu texto, Prata
ressalta que viveu naquela noite o “privilégio de ver o Chico em um total e
superempolgado momento de criação”. “Até então, o Julinho era apenas um
pseudônimo para driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. Baixou o
santo mesmo. Não tínhamos nem 30 anos”.
• “Melhor não ter cara do que ter a cara
que eu tenho”
Como que para
justificar a ausência de uma fotografia, a conversa começou com Julinho
contando que havia estado antes apenas uma vez em São Paulo, para assistir à
edição de 1967 do Festival de Música Popular Brasileira organizado pela TV
Record. O evento ficaria conhecido por um incidente envolvendo o músico Sérgio
Ricardo (1932-2020) — e Chico se aproveitou disso para seu personagem.
“Inclusive, tenho um
fato interessante para contar: eu estava na plateia quando o Sergio Ricardo
jogou aquele violão [em resposta às vaias do público]. Acertou aqui, ó”,
afirmou, na entrevista.
“Essa cicatriz é do
violão?”, rebateu Prata.
“É. Inclusive eu pedi
para não fotografar, por isso”, continuou Julinho.
“Mas são duas
cicatrizes”, Mario Prata parecia querer forçá-lo a abusar mais da criatividade.
“É que pegou o cabo
aqui e a caixa aqui deste outro lado. Eu tenho a pele queloide, entende?”,
Chico não se fez de rogado.
O escritor então
comentou que Julinho era “um sujeito marcado pela música popular brasileira”.
Na entrevista, o
compositor afirmou que embora não fosse cantor, “um dia eu pretendo gravar um
disco”.
Argumentou que “se
gente que não canta bem, como o Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio
Carlos Jobim”, cantava, então ele também poderia. Mas já foi adiantando que “é
claro que eu não vou pôr na capa [do eventual LP] minha foto”, porque a fisionomia
atrapalharia “a vendagem do disco”.
“Assim, uma dessas
menininhas bonitas da rua Augusta pode comprar pensando que é um sujeito bonito
e vende mais o disco, não é? Com a minha cara eu acho que vai vender menos”,
avaliou. “Então, é melhor não ter cara do que ter a cara que eu tenho.”
Ele contou que tinha
“muito mais do que três” músicas — Chico atribuiria a ele ‘Acorda, Amor’,
‘Jorge Maravilha’ e ‘Milagre Brasileiro’. “Eu queria, inclusive, aproveitar e
dizer que eu não quero criar nenhum problema com a censura, porque, através do
Leonel, eu tenho um diálogo muito bom com eles, entende? O Leonel sendo meu
procurador, me quebra todos os galhos em todos os sentidos”, destacou Julinho.
Leonel é situado na
entrevista como uma espécie de mentor de Julinho, empresário de sua carreira,
conselheiro. “[…] o Leonel que mandou eu dizer que eu sou pragmático. Quando
perguntassem coisa mais complicada, pra dizer isto”, disse.
“Por exemplo: ‘O que
você acha da censura?’ Sou pragmático. Ele falou ecumênico, também. Disse que
quando me perguntassem o que eu acho de Cuba, para eu responder que sou
pragmático e ecumênico. Senão eu me meteria em complicações. Mas eu não posso
definir exatamente como eu sou. Eu sou pragmático, pô!”
“Leonel, o meio-irmão
louro de Julinho da Adelaide, o explora sem nenhum escrúpulo — chegou a exigir
que ele o fizesse parceiro seu em ‘Acorda, Amor’. Ainda assim, o humilde
Julinho o tem na conta de guia e protetor”, analisa o jornalista Humberto
Werneck, na reportagem biográfica publicada no livro ‘Chico Buarque - Tantas
Palavras’.
• Pai de Chico arranjou foto “da mãe de
Julinho”
Na histórica
entrevista, Julinho também não poupou referências à mãe, Adelaide, “a pessoa
que me orientou a minha vida inteira”. Ela é apontada como supostamente “uma
das mulheres” do poeta Vinícius de Moraes (1913-1980) e há uma insinuação de
que teria vivido um relacionamento com o arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012).
“Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre, viu?”, disse Julinho, defendendo
a honra da progenitora.
“Eu me chamo Julinho
da Adelaide porque todo mundo só me chama assim lá no morro. Acontece que a
minha mãe é mais famosa do que eu lá no Rio. Ainda é. Minha mãe é célebre”,
destacou, completando que Adelaide era “neta de escravos”. “A mãe dela foi
beneficiada pela Lei do Ventre Livre. A gente tem uma gratidão muito grande
pelo José Bonifácio, o Moço”, disse.
Conforme conta Prata,
quando Julinho estava descrevendo a mãe, Sérgio Buarque de Hollanda parou em
uma das páginas da enciclopédia que folheava, “compenetrado e cordial”. “De
repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e tinha a foto de uma
negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico, apontando com o dedo: —
Adelaide.”
Foi a foto utilizada
para ilustrar a entrevista nas páginas do Última Hora. “Com o crédito: Arquivo
SBH”, completa o escritor — ou seja, as iniciais do pai do Chico.
A carreira de Julinho
chegaria ao fim pouco tempo depois. Conforme Homem relata em seu livro, em 1975
uma matéria sobre censura publicada no Jornal do Brasil “revelou que Julinho da
Adelaide e Chico Buarque eram a mesma pessoa”. “A partir de então a Polícia
Federal passou a exigir cópias do RG e do CPF dos autores”, salienta o
jornalista.
“Julinho da Adelaide
morreu em 1975, apunhalado por uma reportagem do Jornal do Brasil sobre censura
que revelava sua identidade. Julinho era Chico”, escreve a jornalista e
escritora Regina Zappa no livro ‘Chico Buarque Para Todos’.
• Solução genial e bem-humorada
À BBC New Brasil,
Zappa define a criação de Julinho como “uma saída bem-humorada” do músico para
driblar a censura.
“Não podemos
considerá-lo como um heterônimo, com os do [poeta português] Fernando Pessoa.
Durou pouco tempo, era uma brincadeira séria do Chico para poder fazer passar
suas canções pela censura”, diz a biógrafa.
"Foi um
pseudônimo, uma tentativa até de mostrar como ele era perseguido. As músicas
assinadas pelo Julinho, passavam. Se fossem assinadas pelo Chico, não
passariam.”
“Foi uma passagem
séria mas divertida na careira do Chico, que mostra sua criatividade, sua
capacidade de entrar na pele de personagens diferentes”, acrescenta ela.
No recém-lançado livro
‘Para Seguir Minha Jornada’, a biógrafa define Julinho como “o herói sem
caráter”, “preguiçoso, oportunista, vaidoso”, um homem que fazia “samba
pragmático” e “dizia se aproveitar de Chico Buarque na mesma medida em que
Chico se aproveitava dele”.
Ela lembra que, em
entrevista sobre o tema dada logo depois da de Julinho à jornalista Maria Lúcia
Rangel, do Jornal do Brasil, Chico jogou lenha na fogueira e trocou farpas com
seu pseudônimo.
“Eu me aproveito dele
como me aproveito de outros compositores. Vou te contar uma coisa, e acho que
ele não vai ficar chateado porque tem muito fair play. O Julinho faz muito mais
barulho do que música”, alfinetou.
“Julinho aprontou
durante um ano inteiro, entre 1974 e 1975. Gostava da fama, mas fugia da
imprensa e não se deixava fotografar porque ‘era cantor de rádio e tinha uma
imagem a preservar’”, conta a biógrafa.
“Além do mais, só
queria aparecer quando estivesse mais apresentável. Ele mesmo argumentava:
‘Faço copidesque do cotidiano do morro. Não moro lá, mas tô sempre lá porque
não posso me afastar das minhas raízes. Pelo menos uma vez por semana durmo na
casa da minha mãe, dona Adelaide, lá na Rocinha. Com 15 anos, eu alisava o
cabelo, depois usei afro. Agora deixo normal. Mas eu sou muito feio. Quero
fazer um apelo ao dr. [Ivo] Pitanguy [(1923-2016), famoso cirurgião plástico],
ou à ordem dos músicos. Pode ser um show em meu benefício para melhorar o
aspecto’.”
Para o músico,
compositor e diretor de arte Bruno Leo Ribeiro, do podcast Silêncio no Estúdio,
a invenção de Julinho foi uma solução “genial” encontrada por Chico para
driblar os censores do regime. “Criou toda uma mitologia em volta disso e é
importante que isso seja sempre lembrado para que não se cometam os mesmos
erros”, diz ele, à BBC News Brasil.
Ele lembra que o
compositor usou várias artimanhas criativas para conseguir emplacar suas
canções naquele período.
“A própria ideia de
criar um alter ego para tentar passar pelos critérios já é um jeito criativo de
tentar não ser tão perseguido. Até como ele fazia pra mandar as letras era
genial. Ele mandava uma letra enorme e no miolo do texto ele colocava a letra que
queria gravar. Quando era aprovado, não precisava gravar a letra toda, então
ele usava só a parte que queria. De certa forma, aquele texto enorme deveria
dar preguiça de ler tudo e ele uso isso a seu favor”, comenta.
Olhando para trás,
usar um pseudônimo para conseguir passar pela censura canções repletas de
críticas ao regime só parece ter funcionado porque os agentes encarregados de
avaliar o material não eram competentes o suficiente. Estudioso do período, o
historiador Victor Missiato, concorda.
“Existiam militares
[na função de censores] que tinham dificuldade para interpretação de texto,
para lidar com isso”, diz ele, que é pesquisador na Universidade Estadual
Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, à reportagem
da BBC News Brasil.
“Há vários documentos
em que eles classificavam alguém de comunista sendo que o comunismo não tinha
nada a ver com a proposta da pessoa. E eles já viam ali uma ameaça subversiva.”
• 50 anos depois, o “calote”
A BBC News Brasil
tentou descobriu o “paradeiro” de Julinho, 50 anos depois da entrevista,
buscando reconstituir o que ele teria feito nesse tempo todo. Na virada dos
anos 1990 para os anos 2000, um aluno chegou a apresentar como trabalho em
faculdade de jornalismo uma suposta entrevista com o compositor — levantando
suspeitas de que, apesar do ostracismo, ele ainda estaria vivo.
Na semana passada,
este repórter procurou Mario Prata para esclarecer a questão.
“O público deve ter
muita curiosidade em saber o que ele fez da vida pós-pontual fama. Vive até
hoje dos direitos autorais? Foi embora do país? Casou-se com alguma
subcelebridade? Virou bicheiro? Abriu um canal no YouTube? Entrou para o mundo
da criminalidade? Está empresariando jogadores de futebol de qualidade
duvidosa?”, mandei, via WhatsApp, ao escritor.
“Rapaz, seguinte: o
Julinho da Adelaide, segundo o Doi-Codi [Destacamento de Operações de
Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, órgão de repressão do
governo ditatorial] ele morreu atropelado na Barra da Tijuca [no Rio]”, comenta
Prata, em mensagem de áudio. “Na verdade, ele foi metralhado, morreu com 27
anos, um pouquinho depois da entrevista. Apagaram ele. É claro que nenhum
jornal pôde noticiar.”
O jornalista Humberto
Werneck conta que numa carta escrita por Chico a Mario Prata em 1975, o músico
narrou que Adelaide havia ficado “paralítica ao perder o filho”.
Na troca de mensagens
com a reportagem, Prata aproveita a oportunidade para prosseguir com o clima de
lorota.
“Mas o irmão dele,
Leonel Paiva Kuntz, eu encontrei em Natal [no Rio Grande do Norte] outro dia.
Ele foi assistir a uma palestra minha, veio falar comigo”, afirma. “Estava puto
porque o Chico não estava pagando os direitos autorais dele e do irmão. Estava
bêbado, rapaz, todo fodido. Tinha um caminhãozinho, fazia frete o Leonel.”
“Fiquei com dó dele,
que pena. Falou que o Chico estava sacaneando ele, não tem jeito”, conta.
Solicitei então que
“intermediasse” uma entrevista minha com o Leonel. “Não vale a pena”, rebateu
Prata, cortando o assunto. Ao que consta, o irmão de Julinho, consumido pelo
alcoolismo, não consegue mais articular bem suas ideias.
De qualquer forma,
diante de tão grave acusação de calote, beirando a calúnia, a BBC News Brasil
procurou Chico Buarque por meio de sua assessoria de imprensa. Até o momento,
ele não respondeu à reportagem.
Fonte: BBC News Brasil
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