“Podemos ter cidades mais sustentáveis,
menos caras e com maior qualidade de vida para todos”, diz Vicente Rauber
Se a eleição de São
Paulo ganhou amplitude nacional em função da popularidade angariada pelas redes
sociais de um candidato, talvez seja a cidade de Porto Alegre o cenário dos
debates fundamentais dos próximos anos. Não tanto pela polarização entre um candidato
de direita (o atual prefeito Sebastião Melo) e outra de esquerda (Maria do
Rosário), mas pelo fato de a cidade ser epicentro da devastação causada por
eventos climáticos extremos e a evidência de se adotar urgentemente medidas de
prevenção e adaptação climática que exigem uma ruptura com os dogmas de
mercado.
É esse o escopo da
entrevista que o Correio publica com Vicente Rauber, engenheiro e ex-diretor do
Departamento de Esgotos Pluviais, extinto e com equipe precarizada nas gestões
neoliberais de Nelson Marchezan e Melo. Rauber fez parte do grupo de engenheiros
que apresentou ainda nesta gestão Melo um PL que recria o DEP em novas bases,
além de oferecer suporte técnico para o programa de governo de Maria do
Rosário. Além disso, é enfático em rechaçar o discurso de Estado mínimo e
privatizações na gestão pública.
“Temos que negar os
negacionistas, não só os pseudocientistas, mas especialmente todos aqueles que
influem fortemente em nossa vida, governantes, legisladores, sistema
judiciário, dirigentes privados, que não só agem a favor da destruição da
natureza como pouco fazem para a sua recuperação. A destruição de estruturas
públicas essenciais é uma de suas lamentáveis marcas”, atacou.
Ao comprovado abandono
das tarefas essenciais deste órgão pelas referidas gestões, soma-se a
destruiçãoo da legislação ambiental pelo governo do estado, em perfeito
compasso com a orientação antiambiental do governo Bolsonaro e seu ministro do
meio ambiente Ricardo Salles. Como dito em entrevista anterior ao Correio, é
hora de o estado reassumir suas obrigações e, mais que isso, aderir
definitivamente os acordos internacionais de mitigação do aquecimento global e
seu colapso climático.
“A União e os Estados
têm muito a fazer. Mas é nos municípios que a vida acontece, então é nestes
entes da Federação que poderemos realizar uma verdadeira revolução na vida e
recuperar nosso Planeta. É possível, sim, preservar áreas ambientais, produzir reduzindo
fortemente a poluição e viver com hábitos adequados. Prevenir é o melhor
remédio: dói menos, custa menos e, tenham certeza, é mais eficiente”, explica.
Na entrevista, Rauber
explica que o relatório holandês contratado por Sebastião Melo foi só enrolação
para dissimular o que especialistas gaúchos, de universidades e órgãos
técnicos, já tinham explanado antes. Além disso, destaca que Porto Alegre já
foi exemplo de políticas públicas de saneamento, coleta de lixo, prevenção a
enchentes e preservação ambiental.
“O município já foi
exemplo para o Brasil e para o mundo. Possuía atendimento universal de
fornecimento de água potável e caminhava celeremente para a coleta total de
esgotos e seu tratamento. A Cidade era limpa e agradável, todo lixo tinha
coleta regular e destinação adequada, com aproximadamente 25% de reciclagem.
Hoje, as duas autarquias respectivas DMAE (Água e Esgotos) e DMLU (Limpeza
Urbana) estão completamente sucateadas para “justificar” a privatização de seus
serviços. Falta água toda hora, especialmente nos verões, coleta e tratamento
de esgotos praticamente estagnada, coleta de lixo precária e irregular,
reciclagem inferior a 3%”.
No fim das contas,
nada tão difícil de realizar do ponto de vista técnico. O problema de Porto
Alegre é o mesmo de todas as democracias representativas do mundo
contemporâneo: o sequestro do estado e seus orçamentos pelo capital privado,
que, no fim das contas, é a fonte real de todo negacionismo científico.
“Precisamos sim de um novo normal, mas um normal sustentável, em que possamos
sobreviver e viver em parceria com a natureza”, simplifica Rauber.
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Confira a entrevista completa a seguir.
• Como observa os debates eleitorais deste
ano, a partir de Porto Alegre, uma cidade devastada por uma chuva histórica? É
hora de mudar o padrão de abordagem de políticas públicas e programas de
governo?
Vicente Rauber: Temos
que negar os negacionistas, não só os pseudocientistas, mas especialmente todos
aqueles que influem fortemente em nossa vida, governantes, legisladores,
sistema judiciário, dirigentes privados, que não só agem a favor da destruição da
natureza como pouco fazem para a sua recuperação. A destruição de estruturas
públicas essenciais é uma de suas lamentáveis marcas.
Precisamos realizar
muito mais rapidamente a substituição dos combustíveis fósseis, parar de destruir a natureza e produzir mais
adequadamente, tanto na agricultura como na indústria, e assim reduzir a
emissão de GEEs. Ao mesmo tempo, precisamos intensificar os recursos capazes de
captar os GEEs, não deixando-os ir à Camada de Ozônio.
Estas duas ações
combinadas chamamos de Transição Energética. Como vimos acima na situação
brasileira, a União e os Estados têm muito a fazer. Mas é nos municípios que a
vida acontece, então é nestes entes da Federação que poderemos realizar uma
verdadeira revolução na vida e recuperar nosso Planeta.
É possível, sim,
preservar áreas ambientais, produzir reduzindo fortemente a poluição e viver
com hábitos adequados. Prevenir é o melhor remédio: dói menos, custa menos e,
tenham certeza, é mais eficiente.
Cada município, se
ainda não o fez, deve identificar a origem da emissão dos GEEs e tomar as
medidas cabíveis. Com certeza podemos ter cidades e municípios mais
sustentáveis, menos caros e com maior qualidade de vida para todos.
• E Porto Alegre como está neste tema da
Transição Energética?
Vicente Rauber: Vou
usar o município de Porto Alegre, onde vivo, cuja situação em termos gerais,
pode servir de referência para os grandes populações e regiões metropolitanas.
Os GEEs são gerados, aproximadamente, em 67% pelos combustíveis fósseis; os resíduos
sólidos, comumente chamados de lixos, especialmente quando mal tratados, podem
chegar a 10%, e o restante fica por conta das indústrias, agricultura, demais
atividades e pelos nossos hábitos.
Portanto, para
prevenir e resolver questões ambientais, a redução e captação dos GEEs, é
necessário agir em relação ao transporte e ao saneamento básico, também
conhecido como saneamento ambiental.
No caso do transporte,
além das necessárias racionalizações e valorização do transporte coletivo, a
grande diferença, marcante de nossa época, será a introdução dos veículos
elétricos.
Já citamos acima o
quanto a energia elétrica é eficiente e praticamente sem poluição no seu uso.
Imagine, você, paulista, carioca, mineiro, nordestino, gaúcho, não receber mais
veneno vinda dos canos de descarga e sequer ter ruídos de veículos em sua cidade.
Isto reduzirá imensamente a emissão dos GEEs pelo transporte. A nossa saúde e a
natureza do planeta agradecerão!
• E qual poderia ser uma política adequada
de saneamento básico?
Vicente Rauber: Esta é
a política pública completamente menosprezada nas estruturas públicas,
especialmente nos municípios, que são, pela Constituição e pela legislação, os
responsáveis pela sua execução e manutenção, e necessitam do apoio dos Estados
e da União.
Em Porto Alegre temos
um verdadeiro exemplo de retrocesso e irresponsabilidade nesta área. O
município já foi exemplo para o Brasil e para o mundo. Possuía atendimento
universal de fornecimento de água potável e caminhava celeremente para a coleta
total de esgotos e seu tratamento. A Cidade era limpa e agradável, todo lixo
tinha coleta regular e destinação adequada, com aproximadamente 25% de
reciclagem. Hoje, as duas autarquias respectivas DMAE (Água e Esgotos) e DMLU
(Limpeza Urbana) estão completamente sucateadas para “justificar” a
privatização de seus serviços. Falta água toda hora, especialmente nos verões,
coleta e tratamento de esgotos praticamente estagnada, coleta de lixo precária
e irregular, reciclagem inferior a 3%.
A pior situação está
na área de drenagem pluvial e proteção contra inundações. Em 1973, após
verificar-se a imensa necessidade de um sistema de drenagem ampliado e
eficiente (mais de 40% da cidade em altitude muito próxima das águas do
Gravataí e do Guaíba em tempos secos), com 20 importantes arroios (córregos) a
serem permanentemente recuperados e com um enorme e fundamental sistema de
proteção contra inundações a ser conservado adequadamente em regime contínuo,
criou-se uma estrutura de primeiro escalão chamada DEP – Departamento de
Esgotos Pluviais.
Em 2017, em nome da
suposta importância do “estado mínimo”, extinguiu-se o DEP. Na prática
retrocedemos mais de 50 anos! Na sequência, recursos a fundo perdido destinados
pela União para ampliação e modernização das Casas de Bombas foram perdidos
pela falta de apresentação dos projetos executivos. Desde 2020 não ocorrem as
mais elementares manutenções em comportas e Casas de Bombas, muito pouca
limpeza de canalizações, canais e dos próprios arroios foi realizada.
O resultado
catastrófico veio em maio. A Cidade ficou bem mais inundada do que em 1941,
mesmo contando com um Sistema de Proteção contra inundações como nenhuma outra
capital brasileira possui. O Sistema de drenagem, por estar completamente
assoreado também não funcionou, por óbvio. Já a prática de medidas preventivas
ambientais e de Educação Ambiental, nem pensar!
Tudo foi devidamente
diagnosticado por 48 profissionais da área, pesquisadores e ex-dirigentes, como
é o meu caso, com propostas de soluções mesmo com a Cidade inundada e após as
águas baixarem. Foram vilmente atacados com agressões pessoais e fakes. Em contraposição
foi chamada uma ampla delegação holandesa que, por nenhum acaso, chegou às
mesmas conclusões!
• E o DEP deve ser recriado?
Vicente Rauber: Com
certeza. É um das nossas propostas após a águas baixarem. É necessário
esclarecer que é inadequado inserir as atividades de drenagem pluvial e
proteção contra inundações (ou mesmo qualquer outra) nas empresas e autarquias
de água e esgotos, porque estas estão estruturadas e tem seu orçamento definido
pela respectiva tarifa que nós pagamos para esta finalidade.
Aliás, em Porto
Alegre, isto já havia sido constatado em 1973. E estas empresas e autarquias
tem mais do que fazer: eu desconheço qualquer município brasileiro que tenha
abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos universalizada.
Elaboramos uma
proposta de Projeto de Lei (autorizativo, para evitar vício de origem) criando
a Secretaria de Drenagem e Estruturas de Proteção, recriando a histórica sigla
DEP, com atribuições ajustadas às urgências da drenagem e proteção contra
inundações, e ainda contribuições efetivas de proteção à uma Cidade que
necessita reconquistar qualidade de vida e contribuir para um planeta mais
sustentável.
Foi registrado na
Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em 15/7/2024, inicialmente por 4
vereadores, recebendo mais adesões e em debate. Como podemos ver no arquivo
anexo, terá forte integração com as atividades de meio ambiente, atuará com
amplos programas de educação ambiental, de recuperação dos arroios, como
tínhamos o Programa “Arroio Não é Valão” criado em 1990 (vide ilustrações),
participará do tratamento de esgoto e lixos, terá integração com o Estado e com
a União, bem como com as demais secretarias municipais, buscando evitar novos
alagamentos, especialmente nos licenciamentos, exigindo obras compensatórias,
quando for o caso.
Será um forte apoio à
Defesa Civil, tanto na realização regionalizada de previsões como na prevenção
e apoio a populações atingidas. Para municípios mais populosos esta estrutura
poderá ser uma referência.
• Ainda sobre o Saneamento Básico, como
pode contribuir para uma cidade mais sustentável e com mais qualidade de vida e
contribuir para a Transição Energética?
Vicente Rauber:
Precisa efetivamente ser valorizado. Traz soluções menos caras. Para cada real
investido em saneamento básico poupa-se três reais em saúde. Melhora a
educação, porque quem não possui água tratada e nem retirada dos esgotos em sua
casa não consegue aprender. Produz empregos e rendas direta e indiretamente.
Apoia todas as atividades produtivas.
Deve ser realizado
integradamente, especialmente com as atividades do meio ambiente e habitação.
Os resíduos devem ser diminuídos, especialmente com reúsos, reciclagens e
compostagens. As águas correntes ou estacionadas devem ser permanentemente
recuperadas. Deve haver programas permanentes de reassentamento das populações
em áreas de risco, e transformação destes locais em áreas verdes, criação de
mais vegetação tanto no meio urbano como rural, jamais deixar a terra nua,
evitando ser arrastada pela chuva e tornar-se degradada.
Se for um município
também agrícola, devem ser intensificadas as práticas definidas no Plano ABC –
Agricultura de Baixo Carbono. Assim todos(as) teremos uma vida melhor, menos
cara e ajudaremos o Planeta a evitar novas catástrofes climáticas.
• Poderemos ter novos desastres climáticos
como os que temos sofrido como no Rio Grande do Sul, Amazônia e Pantanal?
Vicente Rauber:
Poderemos. E há quem diga, conformadamente, que este é o novo normal e
precisamos nos adaptar a ele. Precisamos, sim, preparar-nos bem melhor. Mas se
apenas fizermos isto caminharemos rapidamente para o nosso fim. Os desastres
climáticos têm sido cada vez mais frequentes.
No RS tivemos três
eventos de inundações nos últimos 8 meses, todos com tempo de recorrência
superior a 50 anos. Resistiremos a outros tantos se ocorrerem a seguir, mesmo
que sejam de outro tipo, como secas e calor intenso?
Precisamos sim de um
novo normal, mas um normal sustentável, em que possamos sobreviver e viver em
parceria com a natureza.
• Qual a causa mais objetiva destes
desastres climáticos?
Vicente Rauber: Ao
contrário do que dizem os negacionistas, pseudocientistas, que felizmente
existem em número cada vez menor e cada vez mais desacreditados, há um
aquecimento terrestre, eu diria um sobreaquecimento terrestre, que colocou a
natureza em desequilíbrio.
O aquecimento e a luz
do sol são imprescindíveis. Sem eles seríamos algo como uma bola completamente
gelada e escura. Os raios solares ao atingirem a terra são rebatidos e parte
deles, os infravermelhos (raios de calor), retidos na camada de ozônio, que existe
desde sempre e atua como uma estufa para nosso planeta.
Assim, a Terra
permanece aquecida. Ocorre que a esta camada de ozônio estão chegando gases
produzidos na terra, aumentando-a, gerando uma estufa maior, por isto chamados
de gases de efeito estufa – GEEs.
No planeta a maior
parte, em torno de dois terços, destes gases é produzida pelos combustíveis
fósseis, especialmente derivados de petróleo e carvão mineral. No Brasil temos
uma situação distinta, mas também muita grave: estamos entre os 10 maiores
emissores de GEEs. E quem gera GEEs no Brasil (dados aproximados): 45% são
provenientes das queimadas, derrubadas e deterioração de nossos biomas, em
especial a Amazônia; 25% decorrem da forma que realizamos agricultura e
pecuária; 20% decorrem da queima de combustíveis (transporte e indústria,
principalmente) e os 10% restantes para as outras atividades.
O aspecto positivo em
nosso país é a nossa matriz elétrica, ou seja, com quais recursos energéticos
produzimos a energia elétrica. Em 2023, 93% da energia elétrica produzida no
país veio de fontes renováveis, no caso, quedas d’água, ventos, sol, e bagaço
de cana. Ainda podemos e devemos aumentar o uso destes recursos.
A energia elétrica tem
impactos ambientais em sua geração e transporte até os locais de consumo, porém
praticamente inexiste poluição em seu uso. Sua eficiência é muito grande,
praticamente três vezes maior do que os combustíveis fósseis. Ressalte-se, como
vimos acima, que a disponibilidade de energia elétrica depende de outros
fontes, ditas primárias.
Fonte: Por Gabriel
Brito, no Correio da Cidadania
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