PCC não quer se infiltrar na política, quer
fazer lobby para influenciar as decisões, diz autor de livro sobre facção
Corrupção, criminalidade
e tráfico de drogas são apontados pelos brasileiros como os maiores problemas
do país, às vésperas das eleições municipais de 2024.
Uma pesquisa
DataFolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que
14% dos brasileiros dizem sofrer com a presença de facções criminosas ou
milícias em suas vizinhanças. Em capitais, esse percentual chega a 20%.
O crime organizado
também está no centro do debate eleitoral.
Em São Paulo,
candidatos à Prefeitura trocam acusações de que seus oponentes teriam ligações
com o Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa nascida nos presídios
paulistas, hoje com ramificações em diversos países.
No Rio de Janeiro, o
Tribunal Regional Eleitoral anunciou a mudança de endereço de mais de 90 seções
eleitorais, numa tentativa de reduzir a influência de traficantes e milicianos
sobre o voto.
Com as maiores taxas
de homicídio do país na última década, Norte e Nordeste enfrentam o avanço das
facções criminosas nacionais (como PCC, mas também o Comando Vermelho) para
essas regiões, o que vem junto com a influência política desses grupos sobre as
administrações locais.
"Quando as
economias ilegais crescem muito, elas vão funcionar como qualquer outra
economia capitalista, vão botar o Estado para ser o seu balcão de
negócios", diz Gabriel Feltran, diretor de pesquisa do Centro Nacional de
Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês) e professor do Instituto de
Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), em entrevista à BBC News Brasil.
Um dos principais
pesquisadores do crime organizado no país, o sociólogo é autor de Irmãos: Uma
história do PCC (Cia. das Letras, 2018), entre outros livros dedicados ao tema.
Com base em seus
estudos, Feltran avalia que a principal forma de influência do crime organizado
na política brasileira hoje não é pela infiltração de candidatos ligados aos
grupos criminosos na corrida eleitoral, mas pela atuação junto ao poder
político para obter vantagens econômicas.
"Trata-se
basicamente da influência de empresários sobre políticos", afirma o
sociólogo. "Não é porque os caras são criminosos e estão se infiltrando na
política. É porque eles são empresários e estão fazendo o que todo empresário
faz."
Feltran vê como
equivocadas as notícias recentes, baseadas em investigação da polícia civil, de
que o PCC teria criado um banco para financiar candidaturas.
"São poucas as
pessoas que entendem o que está acontecendo. A grande maioria faz esse tipo de
raciocínio, que é o raciocínio da Lava Jato", diz o pesquisador, fazendo
um paralelo com a operação da Polícia Federal que investigou esquema de
corrupção na Petrobras.
"As pessoas
pensam que há uma infiltração do PCC na política. A estratégia do PCC não é
essa", afirma.
"A estratégia do
PCC não é de uma organização revolucionária que quer tomar o Estado e
comandá-lo. Tampouco é a estratégia do Pablo Escobar, de subjugar o Estado
militarmente, matar juiz, matar promotor, peitar todo mundo, colocando o Estado
pra trabalhar para ele."
"A estratégia do
PCC não é nem uma, nem outra, é muito mais poderosa do que essas duas."
À BBC News Brasil,
Feltran falou ainda sobre os desafios para novos prefeitos diante das
evidências da participação de facções criminosas em licitações municipais; do
poder das milícias sobre o voto; do que ele considera uma
"autonomização" do poder policial com relação às elites brasileiras;
e do avanço das facções para o Norte e Nordeste e o efeito disso para as
eleições deste ano.
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Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
• Pesquisa DataFolha divulgada em 2/9
mostrou que 14% dos brasileiros percebem a presença de facções criminosas ou
milícias nas suas vizinhanças. Em capitais, esse percentual chega a 20%. Diante
desse quadro, como a presença do crime organizado influencia as eleições
municipais?
Gabriel Feltran - Eu
repito isso a cada nova eleição, então não é uma coisa nova no meu jeito de
pensar, acho que o que está mudando muito é a escala dessa presença.
Trata-se basicamente
da influência de empresários sobre políticos. Empresários dos mercados legais e
ilegais usam sua influência, fazem pressão, fazem acordos com políticos que
podem favorecê-los economicamente, sobretudo. Lobby.
Então, na minha
leitura, não é porque os caras são criminosos e estão se infiltrando na
política. É porque eles são empresários e estão fazendo o que todo empresário
faz, que é influenciar o sistema político, a tomada de decisão política.
Eu vejo o PCC, há
muitos anos, como uma sociedade secreta de empresários.
Trata-se de uma
fraternidade de empresários criminais, muito desigual internamente do ponto de
vista econômico, então há pequenos [empresários], médios, grandes, gigantescos.
E a organização ajuda esses empreendedores a se fortalecerem.
• O senhor pode dar um exemplo?
Feltran - Por exemplo,
um empresário que tenha 15 revendas de carro na cidade de São Paulo. A
legislação de leilões, que é onde ele vai comprar os carros, é uma legislação
que interessa para ele. Então ele vai precisar de vereador, de deputado, para
votar a lei que mais favorece o negócio dele.
Isso é uma coisa
reconhecida, considerada sem nenhum problema. Os empresários gostam de
pressionar para fazerem leis boas para eles, para o negócio deles.
A única diferença é
que esse cara que a gente está falando agora, tem um monte de carro ilegal que
ele vende também. No meio dos carros legais dele, tem um monte de carro
roubado, por isso ele consegue oferecer os carros a um preço menor e o negócio
dele é muito competitivo.
Então, se uma
legislação interessa, ele vai buscar influenciar o poder político para aprovar.
Uma licitação pode ter
interesse para ele, por exemplo, para fazer a manutenção de carros da
prefeitura. Então ele vai pressionar, vai pagar a candidatura de pessoas a quem
ele tenha acesso e contato para ganhar essa licitação.
Então é por aí que
esse negócio acontece. Não é porque o cara é criminoso, é porque o cara é
empresário.
• Mas isso se dá no nível individual ou da
organização?
Feltran - Os
empresários autônomos têm os seus contatos, mas, falando do PCC
especificamente, tem um segundo ponto. No PCC, existem coordenações para
favorecer esses negócios para os empresários, que são as chamadas sintonias.
Elas têm decisões
estratégicas de como a organização vai priorizar o apoio aos seus
empreendedores. Por exemplo, a Sintonia do Progresso [setor responsável pela
logística da droga do PCC] vai favorecer uma regulação da cadeia de valor,
digamos, da cocaína.
Então quer comprar a
cocaína num preço bem baixo lá na Bolívia, na Colômbia, e entregar a preço de
custo para o revendedor ou para o exportador no Estado de São Paulo.
Então aí não estamos
falando mais do empreendedor individual, estamos falando da estratégia
organizacional, da estratégia da facção.
E a estratégia da
facção também pode precisar de políticos – ter acesso a um político importante
que tenha entrada no Porto de Santos, que conheça o presidente do sindicato.
Que depois pode ser alguém com quem se possa ter uma conversa para fazer um
esquema de corrupção que facilite para todos os empreendedores do PCC que fazem
negócio lá.
Nesse caso, estamos
falando também de lobby empresarial, são interesses econômicos movendo a
decisão política. É a mesma coisa, só que é tudo ilegal.
Então é assim que eu
vejo. Quando as economias ilegais crescem muito, elas vão funcionar como
qualquer outra economia capitalista, vão botar o Estado para ser o seu balcão
de negócio.
• Em 2020, o senhor disse numa entrevista
que não via em grupos como PCC e CV o objetivo de eleger deputados e prefeitos,
como queriam Pablo Escobar ou Dom Corleone [mafioso fictício da trilogia
cinematográfica O Poderoso Chefão]. Mas, recentemente, uma investigação da
polícia civil revelou que o PCC teria criado um banco para financiar campanhas
de candidatos. E uma reportagem do Globo tratou de candidaturas ligadas a
grupos de extermínio, PCC e CV. Como o senhor vê essas notícias e isso muda
aquela sua opinião?
Feltran - Não, eu vejo
essas notícias com muito mal feitas.
Eu li bastante essas
[notícias] do banco e é bem a visão da polícia. Se tem uma pessoa que opera
muito dinheiro, essa pessoa, para a polícia, é dona desse dinheiro.
Eles não fazem a
diferença entre quem é trabalhador e quem é proprietário.
Então tem um monte de
gente lavando dinheiro numa conta, que eles chamam de "conta de
passagem" ou "conta banco". E tem uma pessoa que está com o nome
nessa conta.
Aí, dessa conta, sai
dinheiro para financiar uma candidatura. Então eles consideram que essa conta –
que tem milhões que passaram por ela, de centenas de operadores – é operada por
aquela pessoa, que é dona daquele dinheiro e que, portanto, é um banco do PCC
que vai financiar candidaturas. Errado, simplesmente.
• O senhor avalia então que é uma
interpretação equivocada da polícia do funcionamento desse processo de lavagem
de dinheiro?
Feltran - Exatamente.
São poucas as pessoas que entendem bem o que está acontecendo. A grande maioria
faz esse tipo de raciocínio. Que é o raciocínio da Lava Jato, que é o mesmo
raciocínio de sempre.
"Existe um crime,
existe um criminoso, existe uma organização criminosa."
Você vai lembrar da
Lava Jato. Existe um crime: estão desviando dinheiro na Petrobras. Existe um
criminoso: esses caras ligados ao PT. Existe uma organização criminosa, que é o
PT. E existe o chefe da organização criminosa, que é o Lula.
Então, toda a
corrupção na Petrobras estava sendo coordenada pelo Lula, são aquelas setinhas
do [ex-procurador da República e coordenar a força-tarefa da Lava Jato, Deltan]
Dallagnol, apontando todas para o Lula.
Todo mundo pensa o PCC
nesse mesmo modelo. Tudo o que acontece, vai ser o Marcola [Marco Willians
Herbas Camacho, apontado como líder do PCC] que está por trás, coordenando.
Então essas manchetes
[sobre o suposto banco do PCC) estão erradas, simplesmente.
Agora, voltando ao
ponto de 2020. O que eu estava dizendo ali, e mantenho, é o seguinte. O Comando
Vermelho tinha uma estratégia parecida com a das milícias, que é: eu domino um
território e tudo o que acontece nesse território, sobre o qual sou soberano,
me deve imposto, uma taxa de extorsão.
Então o cara abre um
bar numa favela do Rio que é CV, ou que é de milícia, ele tem que pagar a taxa
de extorsão. Esse é um modelo criminal que é muito frequente na América Latina.
Esse modelo vai fazer
um tipo de pressão sobre a política, que é local. Se o meu problema é dominar
Nova Iguaçu, por exemplo, os vereadores de Nova Iguaçu, o prefeito, os
secretários, esses são os agentes políticos importantes. É sobre eles que tenho
que exercer ação política.
Por isso que tantos
políticos morrem em Nova Iguaçu, o problema é local.
A estratégia do PCC
não é essa, nunca foi essa. O PCC não faz extorsão. O PCC faz regulação de
mercado e passa do varejo para o atacado. Ele quer controlar a cadeia de valor
de cada um dos produtos que estão envolvidos nas suas atividades criminais.
• Mas que diferença isso faz em termos de
ação política?
Feltran - As pessoas
pensam que tem uma infiltração do PCC na política. E lá em 2020, eu estava
dizendo: a estratégia do PCC não é essa. A estratégia do PCC não é de uma
organização revolucionária que quer tomar o Estado e comandar o Estado.
Tampouco é a
estratégia do Pablo Escobar, de subjugar o Estado militarmente, matar juiz,
matar promotor, peitar todo mundo, colocando o Estado pra trabalhar pra ele,
como foi feito na Colômbia.
O que eu estava
dizendo em 2020 é que [a estratégia do PCC] não era nem uma, nem outra, e que
era muito mais poderosa do que essas duas, na minha leitura.
Que é: regular as
cadeias de valor, virar atacadista. Um conjunto de grandes empresários,
articulados entre si, e com influência política de lobby sobre o Estado.
Funciona, mais ou
menos, como funciona a base econômica do Centrão.
Vamos supor, um
produto agrícola, o maior exportador de soja do Brasil. Ele vai disputar as
pequenas coisas no Congresso, a alíquota que vai ser recolhida no Mato Grosso,
o quanto ele tem que pagar de contribuição para o sindicato de motoristas de
caminhão, pequenas coisas que aumentam muito o seu lucro, e que não são pautas
públicas. É assim que eu vejo o PCC atuando.
• O PCC se tornou um dos temas centrais da
eleição na cidade de São Paulo, com candidatos apontando supostas ligações de
Pablo Marçal com o grupo. Já Marçal nega e diz que o PCC tomou o Estado,
controlando usinas de etanol, postos de gasolina, etc. Como o senhor vê essa
centralidade da facção no debate eleitoral paulistano?
Feltran - Eu sou
pesquisador, então vejo com muito interesse. Mas vejo também como algo
esperado.
Para mim foi muito
notável a presença dos grupos militares na eleição presidencial de 2018, de
2022.
Ficou extremamente
nítido que os grupos militares, sejam policiais, sejam das Forças Armadas,
estavam influenciando diretamente o processo eleitoral e os governos.
Para mim parece muito
evidente que, nessas eleições municipais, a presença de policiais, desse
pessoal midiático do populismo penal, cresce muito, e é no plano municipal que
isso se manifesta de uma maneira muito evidente.
Esses caras ocuparam
uma parcela significativa da burocracia, eles controlam um monte de relações
burocráticas dentro do Estado, mas eles controlam também muito o recurso na
periferia com extorsão.
E eles controlam a
segurança privada. Então eles têm três fontes de recursos muito importantes e
eles têm muita influência política.
Isso para mim salta
aos olhos, e se debate muito pouco.
Eu não acho que o PCC
é protagonista, ele pode ser protagonista no debate, mas não é protagonista no
financiamento das campanhas. Vejo com muito mais protagonismo a presença da
polícia politizada e de grupos militares e religiosos bancando candidatos, pressionando
candidatos, fazendo candidatos avançarem.
Mas o PCC crescendo
como cresce nos últimos 30 anos vai se tornando progressivamente um ator
político mais importante, e vai influenciando.
• Esse ano também foi revelado que a
Prefeitura de São Paulo fez negócios com empresas de ônibus ligadas ao PCC e
uma investigação mostrou a infiltração da facção em ao menos 13 prefeituras do
interior para fraudar licitações. Qual é de fato a penetração das facções em
negócios para além do narcotráfico e que desafios isso coloca para os futuros
prefeitos?
Feltran - Todas essas
notícias que você mencionou são empresários que estão lutando por influência
para ter licitações, para ter favorecimentos, e que estão misturando dinheiro
legal e ilegal.
Então, veja, eu tenho
empresas de ônibus. Maravilhoso. Agora, a minha empresa de ônibus vai ter mais
lucro se eu injetar dinheiro da cocaína nela.
Eu tenho um monte de
hotéis. Lindo. Meu hotel tem dez pessoas, eu falo que tem 30, que tem 300.
Quem vai lá ver se tem
ou não? E eu falo que essas 300 pagaram R$ 1 mil por dia para participar de
evento no hotel. Então aquelas 300 viram R$ 300 mil. Eu tinha R$ 300 mil em
caixa de tráfico de drogas, de repente eu tenho R$ 300 mil de um evento. O dinheiro
está lavado.
Então é a conexão
entre dinheiro legal e ilegal que faz essas coisas funcionarem.
• E que desafios isso coloca para os
futuros prefeitos?
Feltran - Das duas
uma, ou ele resolve enfrentar, não ceder a esse interesse, e possivelmente cai,
porque esses interesses e esses poderes são maiores que o dele.
Ou ele tolera e lida
com eles. E deixa passar, e deixa conceder, e vai tocando.
• Um estudo publicado pelo Observatório
das Metrópoles da UFRJ mostrou que, em 2022, Jair Bolsonaro e [o governador do
Rio de Janeiro pelo PL] Cláudio Castro receberam votações mais altas em áreas
controladas por milícias na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sugerindo
uma correlação entre controle miliciano e apoio a candidatos conservadores.
Como o senhor vê esse resultado e avalia que esse quadro se repete em outros
locais do país?
Feltran - Eu não
concordo com a ideia de que [a correlação] é com conservadores, mas com
[candidatos] ligados à polícia, que por sua vez vai ser conservadora.
Mas essa passagem não
é evidente para mim, porque é a rede clientelista que faz esse voto, que pode
ter inclusive coerção violenta. Mas não é uma rede ideológica que faz esse
voto.
• Então o senhor acredita que as pessoas
que moram em áreas de milícia têm mais propensão a votar em candidatos ligados
à polícia?
Feltran - Eu acredito,
porque a polícia é quem está por trás desse poder. A milícia é uma extensão do
poder policial.
O que eu tenho
teorizado é que a milícia está se autonomizando das elites. Esse é o ponto. As
polícias se autonomizam das elites que sempre controlaram esses grupos.
Qual era a cadeia de
comando em São Paulo? Tem a elite, depois tem o governante ligado àquela elite,
depois tem a polícia controlada por esse governante, depois tem o justiceiro
controlado pela polícia.
A vida inteira, houve
elites econômicas estabelecidas no Brasil controlando os grupos policiais.
O modelo clássico é o
coronelismo: tem o coronel, que controla o seu jagunço. E o jagunço controla o
escravo, o trabalhador. O coronel não precisa fazer esse controle.
Agora pensa isso em
escala social, você tem a elite econômica, o mundo militar policial, as classes
trabalhadoras.
O Bolsonaro não é
controlado por elite nenhuma, exceto pela elite militar propriamente. É isso
que eu estou chamando de autonomização.
As elites não
controlam mais a jagunçada policial que ocupou o Congresso.
• Os últimos anos têm sido marcados pela
expansão do crime organizado para as regiões Norte e Nordeste, com as duas
regiões registrando as taxas de homicídio mais altas do país, muito acima da
média nacional. Como esse quadro pode impactar as eleições municipais nas duas
regiões este ano?
Feltran - Esse
movimento de expansão das facções impacta o mercado ilegal local, e aqueles
grupos locais que faziam sobretudo o tráfico de drogas, mas também o tráfico de
armas vinculado.
Que faziam essa
jagunçagem – esse espectro da segurança local, extra legal, impactado
diretamente. E as facções começam a tomar esses espaços.
Então o problema não é
só compreender a subida [da taxa de homicídio] dos últimos anos nos Estados do
Norte, mas compreender que ela está perfeitamente conectada com o que aconteceu
no Sudeste antes. Trata-se de um movimento de expansão das facções que dura 30
anos hoje. E esse movimento chega lá.
Então, o que a gente
está vendo é uma espécie de passagem de hegemonia desses grupos armados locais,
para grupos armados organizados nacionalmente.
PCC, CV, polícia
militar. São essas grupos que controlam a criminalidade local pequena de um
lado e de outro, fazendo seus acordos no nível local.
• E, nesse sentido, aquela mesma forma de
influência na política que esses grupos têm no Sudeste deve se replicar no
Norte e Nordeste?
Feltran - Eu avalio
que [a influência do crime organizado na política] é ainda mais fácil. Porque,
no Sudeste, desde os anos 1950, foi construída uma espécie de intermediação
burocrática entre o poder violento e a tomada de decisão estatal.
No Nordeste, essa
camada burocrática não existe, ela é toda personalizada em torno do coronel, do
clientelismo de famílias. Então é muito mais simples na verdade, no Nordeste.
Na Amazônia, então, nem se fala.
Não há um Estado
burocrático construído que, matou ali, então vai ter investigação, vai ter
esclarecimento desse homicídio, essa pessoa [que cometeu o crime] vai ser
neutralizada. Matou ali, ou você mata de volta, ou você perdeu, entendeu?
• E o senhor vislumbra saídas possíveis
para esse aumento do poder do crime organizado na política?
Feltran - Tem quatro
pontos que seriam pilares de um modelo de segurança progressista, ou
democrático. Quatro coisas que a gente não faz, infelizmente não fará, mas eu
falo mesmo assim.
Primeiro:
esclarecimento de homicídios. Esclarecer homicídio é recuperar soberania. Quem
define quem vive ou morre num território, é o Estado ou a facção? Ou é a
milícia?
Hoje quem define quem
vive ou morre é facção e milícia. Como o Estado pode mudar isso? Esclarecendo
homicídio. Esse é um ponto central para qualquer política de segurança do
mundo.
Segundo: regulação de
mercados ilegais. Não precisa legalizar, para regular. O que foi feito no caso
das peças de carro [em São Paulo, tema de estudo de Feltran e de reportagem da
BBC] pode ser feito com droga, com contrabando, com tudo.
Terceiro: controle
externo da atividade policial e da politização policial. Você não pode
permitir, como o Brasil permite, que seus militares, seus policiais, sejam
candidatos, façam discurso político, tenham partido, tenham ideologia, tenham
lado. Não existe isso. Exceto no Brasil.
Então isso é
fundamental. Você não pode deixar esses caras se autonomizarem, se você quiser
ter um Estado soberano. Então o controle da corrupção policial, da politização
policial é o terceiro pilar.
Quarto: tem que acabar
com a política penitenciária que existe no Brasil, que é entregar a molecada na
mão da facção.
Então são quatro
coisas que, associadas, revertem o ciclo que hoje entrega a molecada e dinheiro
na mão da facção e de policial corrupto.
Isso algum dia vai ser
feito no Brasil? Não creio. Mas é o que tinha que ser feito.
Fonte: BBC News Brasil
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