segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Boris Vargaftig: Sionismo, movimento de libertação nacional ou ideologia próxima do fascismo?

O ataque conduzido pela organização palestina Hamas contra cidades israelenses foi seguido pela destruição de Gaza e morte de dezenas de milhares de civis palestinos, a maioria crianças, provocados pela resposta israelense. Esta foi evidentemente preparada e aguardava pretexto. Os dirigentes sionistas e a direita da opinião pública israelense utilizam a história secular e a arqueologia bíblica, assim como o massacre dos judeus europeus pelo nazismo, para justificarem e ampliarem sua política expansionista, tendo se constituído em “gendarme” (vigilante, alcaguete) e verdugo antiárabe, em benefício, desde seus inícios, das potências coloniais. Foram agentes e sócios minoritários e ambiciosos do imperialismo britânico e, hoje, do norte-americano. De fato, apesar da política ultra-reacionária do Egito  e dos reinados petrolíferos do golfo, estes não oferecem segurança e perenidade para o imperialismo, notadamente após a perda de seu controle do Irã, com a queda do extravagante, cruel e servil Xá da real família dos Pahlevi. A criação do Estado de Israel criou vantagens essenciais para o imperialismo, sem objeção dos trabalhistas, como o lendário Ben Gurion, encantados com a oportunidade que lhes provinha, notadamente pelos remanescentes dos massacres perpetrados pelos nazistas, até então aparentemente inimigos jurados. Desde seus primórdios o capitalismo criou, para sua subsistência, o chamado “exército de reserva”, como o foram os camponeses expropriados na Inglaterra, obrigados a migrarem para as cidades onde empregos miseráveis os aguardavam [6], até a exploração das populações coloniais.

Neste artigo, discuto dois aspectos aparentemente contraditórios.

O primeiro consiste em utilizar o inomável holocausto nazista para que os distantes e autoassumidos descendentes das vítimas do genocídio utilizem-no para justificar os atos mais brutais contra uma população que expulsa de suas terras. O aspecto mais complicado, consiste em obscurecer a história, atribuindo virtudes reformadoras ao sionismo, uma ideologia nacionalista que respondia à insatisfação de intelectuais burgueses diante do antissemitismo crescente na Europa Ocidental e Central ao final do século 19. Como a grande maioria dos povos (ao menos, aqueles que a história e os conflitos não liquidaram ou reduziram à impotência e ao silêncio), o chamado povo judaico tem uma história. Sua dispersão poderia ter alguma semelhança com a do povo libanês, também reputado pela extensão de sua atividade comercial.

Entretanto, este não evoluiu como os judeus, pois a disponibilidade de um território estável e as circunstâncias do desenvolvimento capitalista após a 1ª guerra mundial concederam-lhe o estatuto de protetorado francês e um peso financeiro que lhe atribuiu a elogiosa (sobretudo, para os beneficiários) classificação de “Suíça do Oriente Médio”. Já o caso judaico é original e único.  Entre outras originalidades, a Palestina tem o discutível privilégio de ser nomeada Terra Santa por alguns/as, em geral carolas ingênuos/as.

Aliás, o Velho Testamento mostra que, nos séculos que precederam o cristianismo, a população que residia no território hoje em disputa participava de concorrência entre si, com extrema violência, justificada por expressa recomendação verbal pelo Ser Supremo por mensagens crípticas contidas no livro dito sagrado.  A luta pela conquista do território permeia a história humana e prosseguiu durante os primórdios do cristianismo, nascido como uma derivação do credo hebraico. É impossível e inútil, no contexto deste artigo, detalhar a história dos séculos que seguiram os reinados de Salomão e de seu filho Davi, fundadores dos estados hebreus, em torno de 1.000 AEC (Antes da Era Comum, denominação que substituiu a referência ahistórica ao nascimento de Jesus Cristo). No segundo século após a Era Comum as tropas romanas venceram a resistência da população hebrea e destruíram seu Segundo Templo, jamais reerguido.

Começou a dispersão, cuja suposta importância serviu e serve para justificar o hipotético retorno das comunidades judaicas à Palestina, em detrimento de quem lá já se encontrava. O momento histórico de ruptura foi detalhado por Flavius Josephus, general hebreu passado de armas e bagagens ao inimigo romano, o que ele mesmo relata em seu livro clássico, A guerra dos judeus. Uma analogia parcial, que os dirigentes israelenses não relevam, é o Anschluss, a ocupação pelo exército alemão em 1938 da Áustria então independente, cinco anos após a tomada do poder nazista na Alemanha. As causas desta conquista militar sem combate, residem na derrota política, portanto psicológica da esquerda alemã em 1933, quando, em 30 de janeiro, o hitlerismo galgou o poder de maneira formalmente legal, preparada por anos de terror nazista e pela política suicidária do Partido Comunista.

Hoje, a extrema direita israelense repete a “façanha” de Hitler, num clima internacional permissivo, em que as forças progressistas permanecem retraídas e a pequena burguesia, notadamente, mas não só, europeia, redescobre seu improvável amor pelos judeus, associado a seu eurocentrismo, colonialismo e racismo.

O PC, segundo partido operário da Alemanha de então, recusou ao final a forte sugestão de Trótski de aliança com a socialdemocracia, absurdamente rotulada pelo PC de socialfascista Ao pretender conquistar o que os nazistas denominavam “espaço vital”, que por definição ou ordenamento divino lhes caberia, os sionistas hoje mostram sua suposta superioridade racial, implícita em sua política em vigor e em seu destino supostamente previsto pela Bíblia.  Deste ponto de vista, a comparação entre as políticas nazista e israelense procede, pois ambas visam a total liquidação de uma população, judaica no primeiro caso e palestina, no segundo. São, entretanto, diversas as motivações e procedimentos, as de Hitler sendo ideológica e de rapina e assassinato e a de Netanyahu, imperialista e conquistadora, além de terrorista e também assassina, como o eram seus antigos algozes.

Evidentemente, o contexto internacional não é comparável e facilita a agressão aos palestinos e não ao Hamas como adversário único, como pretende a grande imprensa, para reforçar seus argumentos habituais: não seria a guerra contra os palestinos, mas contra uma fração “terrorista”, cuja resistência leva inevitável e “infelizmente” ao holocausto dos palestinos – pois as bombas ignoram as diferenças cronológicas, raciais (sic) e ideológicas. Apagar as diferenças entre nazismo e sionismo pode servir temporariamente como argumento para pressionar a opinião pública e fornecer uma caução para os israelenses e para camadas politicamente atrasadas do judaísmo, mas conduz a erros importantes. Ambas se autojustificam pela esdrúxula teoria do “espaço vital”, num caso para assegurar o domínio hitleriano, como agente dos projetos de dominação do grande capital, e no outro caso para abrigar um povo pretensamente disperso e enganá-lo para empreender uma reconquista em detrimento de outro povo.

Os nazistas impuseram a expansão territorial para que a raça “superior” exercesse seus direitos definidos como “naturais”, como o de escravizar os povos conquistados, vista sua suposta inferioridade genética. Os sionistas não pretendem abertamente possuir uma superioridade racial, mas compartilham com a extrema direita internacional o conceito de superioridade cultural, pretensamente associada a uma superioridade material conquistada na dura luta pela sobrevivência da comunidade que pensam representar, rotulando os judeus renitentes como traidores. Daí a perseguição a Breno Altman e a muitos intelectuais israelenses e judeus americanos e britânicos, a insistência da mídia capitalista em se referir à “guerra contra o Hamas”, evitando a noção mais correta de “guerra contra os palestinos”. Não é preciso contra-argumentar com a hoje reconhecida inexistência de diferenças raciais dentro da espécie humana ou com a inegável contribuição à cultura e à ciência por indivíduos originários do judaísmo ocidental, notadamente da Europa oriental. As razões sociais deste peso da elaboração intelectual provém da Idade Média, quando o Papado e reis católicos proibiram os judeus de exercerem inúmeras profissões (como fizeram os nazistas), permitindo-lhes entretanto o manuseio do dinheiro, notadamente da usura, teoricamente proibida aos cristãos, por ser pecaminosa.

O papel usurário levou a que judeus ricos fossem cooptados como auxiliares dos governos cristãos (os “judeus da corte”), o que os associou às classes dominantes.

Já a civilização árabe-muçulmana, que se expandiu a partir do século 8, trouxe contribuições essenciais à astronomia, à matemática, filosofia, medicina, às ciências militares e à literatura, assegurando-lhes a sobrevivência e a passagem da cultura clássica grega ao ocidente. Os países árabes não foram (nem são hoje) antissemitas e a partida para Israel no século 20 dos judeus arabizados, até então assimilados em seus respectivos países, como a Abissínia, foi uma iniciativa, bélica e publicitária, do Estado de Israel.  A perseguição cristã ao judaísmo se prolongou no antissemitismo europeu, notadamente, mas não exclusivamente, dos nazistas alemães e cúmplices.

Não esqueçamos do antissemitismo da Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e coronel Mourão, autor de um documento (o plano Cohen), que atribuía aos judeus um golpe para tomarem o poder no Brasil. Esta iniciativa provocativa e evidentemente falsa serviu para justificar a tomada do poder por Getúlio Vargas, instituindo o Estado Novo. O “Protocolo dos sábios de Sião” também teve seu papel.

A tentativa de recolonização pelo imperialismo ocidental (vitoriosa hoje e por enquanto) não nasceu como uma exclusividade judaica, muito menos sem o apoio imperialista. Ilan Pappé, defensor constante da população palestina, cita dados indiscutíveis a esse respeito. Assim, cita Chateaubriand, escritor e político francês, que sustentou que os judeus eram “os donos legítimos da Judeia”, (pergunto: que judeus?), seguido por Napoleão Bonaparte em sua tentativa de ocupar o Oriente Médio nos inícios do século 19. Para tanto, prometeu um “retorno à Palestina” e a criação de um “Estado”. Dificilmente Chateaubriand e Napoleão podem ser considerados sionistas zelosos, são dedicados promotores do imperialismo.

Outras personalidades, estas norte-americanas, como Adams, presidente dos Estados Unidos ou ministros britânicos, tais como Lord Balfour, autor em 1917 de uma célebre recomendação prósionista, à véspera da redivisão do mundo pelas potências vencedoras da 1ª guerra mundial, quando cada qual colocava suas exigências na mesa. Assim, o tema já era tratado com maior ou menor intensidade nas chancelarias dos países ocidentais “civilizados” e defensores dedicados de seus respectivos imperialismos e classes dominantes. Theodoro Herzl interviria mais tarde, sabedor que suas alegações encontrariam orelhas atentas! A religião e o nacionalismo que podem ser lhe associados desempenharam o habitual papel de justificadores dos projetos econômicos da grande burguesia…

 Até meados do século 19 o antissemitismo prosperou pouco na Europa Ocidental, onde os judeus se assimilavam rapidamente, mas se expandiu na Polônia e Rússia tsaristas. O governo, a Igreja Ortodoxa e a Okhrana, a polícia política na Rússia, e o Exército e a Igreja Católica na Polônia, estimularam e protegeram agrupamentos terroristas que promoviam os “pogroms”, ataques assassinos perpetrados por lumpens chefiados por oficiais e agrupados sob variadas denominações cristãs surgiram durante a 2ª Guerra Mundial. Invadiam vilas formadas por comunidades judaicas paupérrimas, matando e queimando tudo o que encontravam. Um amigo judeu francês de origem polonesa relatou-me fatos que ocorreram logo após a libertação pelas tropas soviéticas dos campos de extermínio nazistas.

Um grupo de mulheres liberadas procurou partir a pé para a Europa Ocidental. Quando ainda em território polonês, foram abrigadas no celeiro de um fazendeiro democrata. Subitamente, irrompeu um grupo de outros camponeses, pretendendo que vinham terminar o que os alemães não haviam terminado, assassinar todas! Foi difícil para o hospedeiro convencê-los de que o momento não era conveniente para tal, pois seriam inevitavelmente responsabilizados e punidos pelos soviéticos. Isto, aliás, ocorreu mais tarde, em circunstâncias parecidas, com o julgamento e enforcamento imediato de um chefete fascista antissemita polonês, saudoso da ocupação nazista e caçador de judeus sobreviventes. Estes crimes, que haviam sido ocultados por muito tempo, não podem evidentemente justificar a política pró sionista das “democracias” ocidentais que, em 1948, na Assembleia Geral da ONU, presidida por Oswaldo Aranha, getulista antissemita então convertido aos valores “democráticos”, votaram pela criação do Estado de Israel, sem consultar as populações que ocupavam as terras assim “doadas”. Isto implicava na partida das tropas britânicas de ocupação, que mantinham precário equilíbrio entre seus interesses pró-árabes, para manterem o controle das fontes de petróleo e a necessidade de assegurar, da forma que fosse possível, a partida da Europa dos remanescentes dos campos de extermínio. Como é útil dar dois botes ao mesmo tempo, esta decisão seguia a regra de T. Hertz e convencia seus interlocutores ocidentais e capitalistas (como o banqueiro Rothschild) da necessidade de criar uma barreira entre a Europa “civilizada” (como o mostra o reino nazi-fascista!) e a Ásia “selvagem”.  Apesar destas circunstâncias que lhe seriam favoráveis e da partida de navios de refugiados para a terra prometida (sic), não foi nestas circunstâncias que prosperou o sionismo como ideologia abertamente reacionária.

Noto que a delegação soviética votou com os ocidentais na Assembleia da ONU para a criação do “abrigo” israelense, e que parte importante do armamento da Haganá, milícia sionista socialdemocrata, foi fornecida pela Tchecoslováquia, então parte do “glácis” soviético.  Contrariamente ao que ocorria na Europa Oriental, os judeus, religiosos ou não, estavam em assimilação na segunda metade do século 19 na França, Alemanha, Holanda e outros países da Europa Ocidental. O antissemitismo latente, herdado do passado pela pequena burguesia e estimulado pelos senhores feudais, havia ressurgido quando da onda migratória de judeus empobrecidos fugidos da Polônia e da Rússia devido ao antissemitismo explícito, nas ruas e nas leis. A concorrência no pequeno comércio, a pressão nos salários, reações reacionárias comuns nos países de imigração, foram determinantes para o fortalecimento do antissemitismo. Antissocialistas como eram em sua maioria os intelectuais da pequena burguesia judaica, o terreno tornava-se fértil para a expansão do sionismo, como ideologia nacionalista, que os “acolhia”, oferecendo-lhes uma “solução” fugitiva.

Constatemos que o Holocausto não é uma exclusividade germano judaica. Um exemplo edificante consiste no conflito “cultural” entre as populações Tutsi e Hutus em Ruanda, iniciado pelo atentado em abril de 1994 contra o avião do presidente de Ruanda. De abril a julho de 1994 foi desencadeado, com a benevolência e lágrimas crocodilianas das potências coloniais, o massacre pelos Hutus majoritários de em torno de um milhão de Tutsis, população minoritária do país. Podemos também lembrar o massacre dos Armênios durante o final da 1ª guerra mundial ou dos chilenos, apoiado por H. Kissinger, ganhador do Nobel da Paz, por ter capitulado com suposta habilidade e elegância diplomática, diante da combatividade do povo vietnamita. Séculos antes, a Igreja Católica aniquilou populações inteiras de judeus e outros hereges, através de seu braço inquisitorial e globalmente tolerou a repressão, com exceções.   No “O Estado dos Judeus” (1896), livro chave do sionismo, Theodor Herzl, considerado o inspirador e pai espiritual de Israel , definiu o futuro Estado como  “Um bastião da Europa contra a Ásia, uma sentinela da  civilização contra a barbárie”. Como diz o conhecido polemista Enzo Traverso “…em 2024 os termos da questão permanecem substancialmente idênticos com Netanyahu, mas este é bem mais respeitado e ouvido do que Hertz o foi há mais de um século. Hertz mendigou o apoio de alguns poderes da Europa (Banco Rothschild, p. ex.), mas Netanyahu não teme aparecer como arrogante e ingrato”.

No começo do século 20 o sionismo não era uma ideologia de extrema direita. Em setores intelectuais europeus se acreditava em um sionismo cultural e literário; falava-se de uma confrontação do judeu consigo mesmo, confronto que era simbolizado socialmente no seio da tradicional família judaica com discussões e conflitos. O sionismo cultural não era propriamente uma crença jurídica e política, e muito menos militar. Segundo o conhecido historiador israelense, Zeev Sternhell, falecido recentemente e que foi membro ativo do movimento pacifista, “podem existir várias formas de sionismo, como diversas formas de nacionalismo”.

Nem todo nacionalismo é fascista, mas em geral evolui para a direita. A evolução reacionária e colonialista da social-democracia sionista aproxima-se conceitualmente do fascismo, mas carece de algumas de suas piores características. Isto não o torna mais tolerável e de fato, alguns componentes seus são próximos, atualmente, do fascismo. A radicalização do judaísmo – cujo maior representante foi Martin Buber – seu fundador e propagandista inicial, pretendia colocar em primeiro plano a literatura  e não a política. Theodor Herzl, por sua vez, dizia que o Estado judaico era uma personalidade coletiva que precisava fazer tábua rasa das ideias retrógradas do próprio judaísmo. Este, segundo Herzl, atravessava uma crise moral, um obscurecimento dos seus valores libertários, de um judaísmo que não mais se importava com a vida em comunidade e se integrava cada vez mais aos valores burgueses. Evidentemente, isto não transforma o sionismo em tendência política de esquerda, mesmo moderada ou libertária, mas, ao contrário, lembra os intelectuais italianos protofascistas e modernistas. Era uma tendência minoritária, que não pregava a formação de um Estado na Palestina e que acolheu, bem mais tarde, após o fim da 2ª Guerra Mundial, uma enorme população apátrida, que havia tudo perdido e que procurava evidentemente uma saída viável. Daí provinha o sucesso do chamado sionismo político, que inicialmente foi sustentado por milionários astutos, que pouco se incomodavam com as tendências social-democráticas pretendidas por parte das direções sionistas – como o primeiro-ministro Ben Gurion. Isto ocorreu com o embrião do primeiro exército de Israel, a Haganá, distinta do radicalismo de direita do Irgun, que precedeu as tendências fascisantes atuais.

Note-se que estas organizações existiam nas comunidades judaicas, inclusive no Brasil e levaram um certo contingente de jovens judeus, alguns socialistas, a migrarem para constituírem, segundo pretendiam, um país “normal”, “uma terra sem população para uma população sem terra”, como formularam seus adeptos. Ignoraram ou, no melhor dos casos, subestimaram a existência de uma população palestiniana antiga, a ela se opondo com métodos do capitalismo – expulsões a qualquer pretexto à compra das terras em benefício da burguesia local. Tive colegas do curso secundário, como Hugo J., que pretendiam ser marxistas e que emigraram para Israel, para lá construírem o socialismo, com os resultados que vemos hoje. Um dos argumentos empregados consistia em pretender que o núcleo do novo país “socialista” era formado pelos “kibutzim”, cooperativas agrícolas que acolhiam os jovens imigrantes e que, como pretendiam seus dirigentes, eram inspiradas pelas fazendas coletivas soviéticas, kolkhozes e sovkhozes (hoje tornados empresas do agronegócio). De fato, estas invenções e projeções idealizadas levaram às atuais cooperativas privadas, que, como na África do Sul antes do fim do apartheid, exploram mão de obra palestina, para satisfação de seus dirigentes.

O arcabouço político e ideológico do sionismo imperialista de hoje tem estas raízes, aliás mais da social-democracia do que do fascismo, mesmo quando adota seus métodos.

A pretensão “esquerdista” de um movimento nacionalista não é original. Posso citar dois exemplos dentre muitos: os movimentos de libertação da Irlanda e a Frente de Libertação Nacional (FLN) Argelina. A primeira vegeta como seita numa república “normalizada” e a segunda impôs uma ditadura militar pró capitalista, utilizando o manancial do petróleo argelino. Israel nunca usou o “enfeite” socialista, começou mesmo pelas expulsões das populações locais estabelecidas. Um caso que confirma a dificuldade (porém, não a impossibilidade) de uma posição nacionalista, mesmo moderada, é o do Bund, União Judaica Trabalhista da Lituânia, Polônia e Rússia, fundada por operários em 1897 e incorporada ao PC soviético em 1921. O Bund conquistou seus aderentes sobretudo entre trabalhadores judeus de pequenos artesãos e entre a crescente camada de intelectuais. Liderou um movimento sindical próprio e formou, com aliados, grupos de proteção contra os pogroms executados por grupos como o dos Cem Negros, e as tropas do governo. Durante a revolução russa de 1905, o Bund encabeçou o movimento revolucionário judeu, particularmente na Bielorussia e Ucrânia. Nunca foi sionista, argumentava a favor de uma autonomia cultural e, dentro de limites, administrativa, nos países de sua instalação e não à distância, como pregavam os sionistas.

Durante anos, o Bund teve membros de sua direção entre os bolcheviques. Em aliança com outro grupo judaico, o Bund elegeu dois candidatos na primeira Duma (Assembleia) de 1906, declarando que a emigração para Israel era uma forma de escapismo. Concentrou-se na cultura e utilizou conceitos vindos do austro-marxismo, opondo-se assim aos bolcheviques. Com o tempo, foi perdendo forças, segundo Pinsky, porque sua audiência residia na zona de indústria leve e marginal, o que o afastava das principais áreas de luta e organização.  O antissionismo é a oposição políticamoral ou religiosa às várias correntes ideológicas do sionismo, inclusive ao estado de Israel, criado com base nesse conceito. O termo também é aplicado à oposição política ao governo de Israel, sobretudo se motivada por denúncias de violações sistemáticas de direitos humanos dos palestinos, incluindo crimes de guerra, mas também à negação ao direito de existência do Estado de Israel.

Os antissionistas condenam o movimento sionista por ter promovido a compra e sobretudo a ocupação das terras durante o mandato britânico da Palestina, para criarem o Estado de Israel, que consideram artificial, embora hoje fato consumado.

O questionamento sobre a definição de Israel como estado judaico  suscita controvérsia e oposição entre os antissionistas há mais de sessenta anos, assim como a ocupação da Cisjordânia. Já para uma parcela dos sionistas e de seus patrocinadores, o antissionismo é uma manifestação antissemita, o que facilita a tentativa de assimilar o movimento palestino ao antissemitismo. Na realidade, não há nada de antissemita no antissionismo; dizê-lo é como pretender que os antimarxistas são anti-alemães, os anti-peronistas antiargentinos etc…

No momento atual, assistimos a uma escandalosa conversão da extrema-direita mundial que, após séculos de antissemitismo, “descobriu” os “méritos” dos judeus.

Para aqueles que os odiavam por razões raciais, esta conversão não tem justificação racional, além da hipocrisia e do cinismo mais elaborados. De fato, a partir do momento em que um agrupamento étnico sofre uma desvalorização baseada em argumentos genéticos, não é possível compreender como os descendentes dos amaldiçoados pela genética poderiam deixar de procriar outros amaldiçoados!

Os antissemitas “culturais” são “culturais” não porque sejam mais cultos do que os outros, de fato bem ao contrário, mas porque consideram que os hábitos e tradições judaicos, sua cultura, são inferiores àquela dos ditos arianos e que sua resistência não tem razões históricas, mas sim, espúrias. Para não se contradizerem, negam o quanto podem a contribuição judaica à cultura universal, expurgando não somente seus inimigos de classe, Marx ou Trótski, mas Freud, Einstein, Mendelsohn, homens de Igreja com posições humanistas etc.., associados no mesmo pacote, eventualmente na mesma cela ou cemitério.    

As Igrejas cristãs possuem uma sólida tradição antissemita, que associam aos comunistas e socialistas no espaço disponível, não é possível detalhar, mas foi montada uma história para justificar que os judeus, hipotéticos descendentes dos hipotéticos responsáveis pela crucificação de Cristo, fossem punidos. Pretender que de fato foram os então judeus que assassinaram o judeu Cristo no ano 1, sob regime de controle militar romano, já é difícil, mas atribuir a culpa aos descendentes teóricos dos supostos assassinos é forçar a barra em demasia – o que não impediu o florescimento deste antissemitismo punitivo por tabela. Aliás, se a população jerusalemita de fato matou o Cristo, e se a punição aos descendentes após 2.000 anos tem sentido “teológico”, o óbvio seria acusar os palestinos e sobretudo os romanos (italianos?), descendentes reais da população original. Em outros termos, tudo isto é fantasia para justificar o inominável. A realidade é que o antissemitismo é uma farsa sangrenta, que foi compartilhada por “heróis” ocidentais como W. Churchill e Pio XI. Sua função política consistiu em nomear um inimigo virtual e imaginário, desviando a atenção das massas dos verdadeiros inimigos, as classes dominantes feudais e, mais tarde, capitalistas.

O desenvolvimento do capitalismo no século 19 criou uma nova forma de antissemitismo, biológico ou cultural, enquanto as Igrejas continuavam a hostilizar os judeus e, ao mesmo tempo, prometer aos pobres e oprimidos que as delícias do paraíso compensariam as agruras na terra. Todas essas invencionices foram abandonadas pelas classes sociais que as criaram, para se concentrarem num inimigo ainda mais desconhecido e imaginário, o diabólico Hamas. Todos, desde a carola que pensa que Israel é cristão até a neocarola que reza pela Terra Santa, agora abominam os neorrevelados inimigos da civilização.  O imperialismo precisa impor o inimigo que inventou, para preservar o verdadeiro inimigo, que é ele mesmo. Note-se que, por mais que inventem histórias, a grande mídia, que passou a fingir adorar a ecologia que desprezava, não consegue encontrar uma só evidência da prática do antissemitismo pelos palestinos massacrados por um poder dirigido por judeus. 

Não confundamos as coisas, o sionismo não é uma doença infecciosa. Teve sua ala esquerda juvenil, o Hashomer, e Israel foi criado pela ONU com o apoio total da então URSS.

A opinião pública israelense se mostra tão arbitrária, exaltada e ignorante, quanto qualquer outra, dentre os desprezados pela burguesia burra e autoadorada.  Na realidade, muitos judeus são antissionistas e evidentemente não antissemitas. Quem tem, no Brasil, tradição antissemita são os direitistas neofascistas, cuja raiz ideológica se localiza na Ação Integralista Brasileira, organização dos anos 1930, que foi favorável a Hitler e a Mussolini. Esta agremiação, cuja palavra de ordem principal era “Deus, Pátria e Família” (lembra alguém que continuou essa tradição?). É reivindicada atualmente por muitos dirigentes da direita brasileira, que ignoram ou fingem ignorar a história.

Já mencionei o Plano Cohen, que acusava os judeus de todas perversidades, quando muitos se encontravam em campos de concentração nazistas. São estes os democratas salvadores da Pátria.  Alguns proeminentes intelectuais judeus que defendem a retirada das forças armadas israelenses dos territórios palestinos e/ou a dissolução do atual estado de Israel numa federação de israelenses e palestinos, são considerados antissemitas por outros judeus e até mesmo impedidos de entrar em território israelense. Diante disso, notamos a ausência de antissemitismo nos diversos movimentos palestinos e na sua população geral, que enfrentam cruéis inimigos que são judeus – aqui a ambiguidade serviria o antissemitismo.  Não considero que o sionismo seja plenamente fascista, não nasceu como tal  e por muitos anos não agia como tal, embora seja bem verdade que, mais do que outros movimentos nacionalistas, tenha evoluído nesta direção, notadamente na execução (mas não na teorização), de uma política racista liquidacionista e militarizada de expansão territorial, que pouco se diferencia da política hitleriana de conquista do pretenso “espaço vital”.

Compartilha com os fascistas e nazistas o emprego de milícias armadas violentas, parecidos com os colonos da África do Sul do apartheid. Acredito que há outras características comuns, mas faltam-lhes a organização política perene, voluntarista e terrorista das SA e SS alemães ou do Facio italiano. Esta diferença é muito importante, pois tem continuidade emocional e ideológica, mesmo sendo supremamente medíocre em suas formulações e composição. Que fique claro que afirmar que o sionismo não é fascista, não o normaliza, não lhe fornece escusa, mas certamente permite analisá-lo, no presente e no passado e ter alguma chance de compreendê-lo, no processo de combatê-lo.

 

Fonte: Viomundo

 

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