Missão Camizungo, em Angola: das '300
casas' prometidas por Pablo Marçal, só foram encontradass 30
Uma das histórias mais
divulgadas por Pablo Marçal é o seu projeto de construir “300 casas” na
comunidade rural de Camizungo, em Angola. Para a empreitada, registrada em dois
filmes e inúmeros vídeos, Marçal arrecadou pelo menos R$ 4,5 milhões em doações
em leilões transmitidos ao vivo nos últimos cinco anos. Nós fomos conhecer o
projeto de perto – e descobrimos que, das 300 casas prometidas, só existem 30.
Em Camizungo,
comunidade rural a 50 quilômetros de Luanda, capital de Angola, encontramos
mais de 300 famílias que continuam vivendo em moradias precárias. O cenário é
de falta de saneamento básico, dificuldade de acesso à água e insegurança
alimentar. Pior: as promessas de novas moradias levaram mais famílias para a
região, sobrecarregando a já precária infraestrutura.
A história de Pablo
Marçal com Camizungo começa em dezembro de 2019, quando o então coach e hoje
candidato à prefeitura de São Paulo pelo PRTB visitou o local e se comprometeu
a construir 270 casas. Pouco depois, a promessa já era de 300 casas.
Na ocasião, Marçal
afirmou que não abandonaria o local até que a última família do povoado fosse
colocada em uma nova casa. “Nós vamos terminar essa obra esse ano”, disse, em
um documentário publicado em 2020, olhando para um drone que o filmava com uma enxada
na mão.
No final de 2023, ele
voltou a Camizungo, numa viagem registrada em em um filme que hoje é usado para
promover sua candidatura. O título, “A última família”, sugere que Marçal
cumpriu sua promessa: a obra narra o retorno heroico à comunidade que, agora, estaria
totalmente transformada. O feito foi replicado em inúmeros posts e cortes de
seus seguidores.
O próprio Marçal, é
claro, alimenta a ilusão. Em uma entrevista em um podcast, no ano passado, por
exemplo, afirmou: “Estamos indo para a África agora. Lá, nós estamos terminando
de construir uma cidade”.
Na sabatina do MyNews,
Marçal afirmou que já arrecadou milhões e que, desde 2019, promove um leilão
anual para levantar fundos para a construção de casas para a comunidade. Na
mesma entrevista, também admitiu que o projeto está longe de estar completo, citando
que 50 casas estariam prontas.
Só que nem isso é
verdade. Até o momento, são apenas 30. Além da contagem feita no local e da
confirmação de funcionários, também utilizamos imagens de satélite
disponibilizadas pelo Google Earth para checar a informação.
O número de Marçal não
se sustenta: a área total de Camizungo é de 192.693 m², sendo que apenas uma
área de 7.556 m² abriga a construção das novas residências. Excluindo o espaço
das ruas, o espaço efetivamente construível é de 5.200 m² – como cada casa ocupa
150 m², é possível construir, no máximo, 34 casas no local.
Foram funcionários
angolanos da ONG Atos, que administra o local, que receberam o Intercept Brasil
no Camizungo, acompanhando cada passo dado na comunidade. Eles foram simpáticos
e respeitosos. Não foi possível realizar entrevistas com moradores. Mas fizemos
algumas descobertas durante a visita. Uma delas é que a lógica das doações das
casas desrespeita listas estabelecidas pelos moradores.
“Existe uma lista. Mas
a lista não é definida, não é categórica. Às vezes, por exemplo, recebemos o
senhor, o senhor vai conhecendo a aldeia e se compadece com uma família. E diz,
epá, eu quero ajudar esta família. Nós não vamos dizer que não!”, nos disse um
representante da ONG.
Também constatamos que
as casas, ao contrário do que é divulgado por Marçal, não são todas mobiliadas
e equipadas com eletrodomésticos. Foram só as primeiras, segundo o funcionário.
“Estas mobílias [apontando para uma casa com móveis] nós temos porque na época
em que estavam a se dar estas casas, as pessoas também queriam ajudar com
mobília”, afirmou um funcionário.
Pior: a promessa de
construção de casas atraiu dezenas de outras famílias para Camizungo,
acreditando que poderiam se beneficiar de moradias novas. Mas, com apenas 30
casas construídas e nenhuma perspectiva clara de novas construções, a chegada
dessas famílias tem sobrecarregado os já escassos serviços da comunidade,
agravando os problemas locais e acirrando os conflitos pela disputa de
recursos.
No local, ainda fomos
informados que as doações também são feitas por benfeitores e missionários de
outros países além do Brasil, desmentindo a narrativa de que Marçal seria o
maior responsável pelas melhorias na comunidade. “Recebemos aqui gente de toda
parte”, disseram os funcionários da Atos. Descobrimos que os poços de água, por
exemplo, são donativos de sul-coreanos.
Também não encontramos
evidências de que os homens angolanos não trabalhavam ou escovavam os dentes,
como já disse Marçal diversas vezes. Durante nossa visita, encontramos uma
comunidade engajada e trabalhadora, dedicada a superar os desafios da pobreza desde
muito antes da chegada de Marçal – e sem qualquer evidência de “mudança de
mentalidade” promovida por ele.
As 30 casas
construídas se intercalam com moradias precárias, feitas com chapas de metal.
Há conflitos para receber os donativos e dividir os recursos.
• Dinheiro foi arrecadado para CNPJs de
ONGs sediadas no sertão da Paraíba
Marçal capta recursos
para Camizungo desde 2019. Na primeira viagem, disse ter levado com ele à
Angola uma comitiva com 100 empreendedores brasileiros para que conhecessem a
comunidade e também fizessem suas doações. Nós perguntamos diretamente à
assessoria do candidato do PRTB quanto ele já captou para a comunidade. Não
tivemos resposta.
De acordo com Marçal,
o custo estimado para construir cada casa seria de R$ 50 mil. Em 2023, quando
comemorou seu aniversário fazendo um leilão beneficente em prol de Camizungo,
arrecadou o que seria suficiente para colocar as 30 casas desse valor de pé: R$
1,5 milhão. No ano seguinte, foram mais R$ 3 milhões.
“Todos os meus
aniversários a gente faz arrecadação, faz leilão, eu levo muitos empresários
para lá para investir, todos os eventos que eu já produzi na África, o recurso
fica nesse lugar”, afirmou Marçal em entrevista ao UOL, em julho.
Mas se o dinheiro já é
suficiente para construir, no mínimo, 90 casas, por que elas não estão de pé?
Também perguntamos isso ao candidato. Não houve resposta.
Descobrimos, então,
que pelo menos duas vezes Pablo Marçal pediu doações para Camizungo informando
CNPJs de organizações que, aparentemente, têm pouca relação com a empreitada em
Angola. As duas, por coincidência, são sediadas em uma cidade remota no interior
da Paraíba, chamada Prata, com pouco mais de 4 mil habitantes.
Uma delas, de fato,
tem o nome Instituto Atos na razão social. A ONG foi registrada em junho de
2023, em nome de Milene Lima Sousa, identificada como diretora, e Beatriz Souza
de Oliveira, como presidente. O CNPJ aparece no final do filme mais recente sobre
Camizungo publicado por Marçal, em março deste ano. Nenhuma das
administradoras, porém, aparece nos materiais institucionais como
representantes ou mesmo funcionárias da organização.
No Portal da
Transparência de Prata, inclusive, encontramos a informação de que Beatriz é
prestadora de serviços da prefeitura. Não conseguimos contato com nenhuma das
duas. Itamar e Fernanda não retornaram aos contatos da reportagem para explicar
a abertura do CNPJ em Prata, bem como a participação de Milene e Beatriz no
quadro de administradores da ONG na Receita Federal.
Outro CNPJ, para o
qual foi direcionado pelo menos R$ 1,5 milhão arrecadado durante o leilão de
aniversário de 2023, pertence a outra organização, chamada Centro Vida
Nordeste. A organização é chefiada por Rosana Tavares da Silva Menezes e José
Leandro Ferreira de Almeida.
No seu site, porém, a
ONG diz atuar pela “promoção do desenvolvimento sustentável e a preservação
ambiental no semiárido brasileiro”. Não foi possível localizar nenhuma
publicação ou menção a atividades do Centro Vida Nordeste em Angola.
• Projeto de evangelização ligado à
família criadora da Igreja Lagoinha
Na comunidade de
Camizungo, além das 30 casas com tijolos sustentáveis, há centenas de casas
feitas com chapas de metal, um campo de futebol, posto médico e escola. As
benfeitorias que encontramos no local são fruto de um projeto iniciado em 2010
na África por Itamar Vieira e Fernanda Vieira, então missionários da Igreja
Nacional do Senhor Jesus Cristo, fundada pela pastora brasileira Valnice
Milhomens.
Em 2018, o casal
intensificou sua missão em Angola, mais especificamente em Camizungo. Para
captar doações de caráter humanitário, o casal Vieira criou o Instituto Atos,
uma organização não-governamental.
A organização,
liderada pelo casal Vieira, convidou Marçal a atuar como apoiador e captador de
recursos em 2019. Mas ele não é único parceiro de peso: também cumpre o mesmo
papel, por exemplo, a própria Ana Paula Valadão, também pedindo doações nas
redes.
Embora apresentado
como uma iniciativa de ações sociais e construção de moradias, na prática, o
projeto é mais uma ação de evangelização de comunidades rurais em Angola.
Vieira é, hoje, apóstolo da Igreja Diante do Trono em Angola, denominação
batista renovada fundada por Ana Paula Valadão, da família criadora da Igreja
Lagoinha.
Em uma entrevista
disponível na internet, um dos professores da unidade escolar de Camizungo,
mantida pela ONG Atos, explica a linha pedagógica da escola da comunidade. “Por
intermédio da Bíblia nós conseguimos encontrar todas as disciplinas”, disse.
• Marçal e a sociedade no espelho. Por
Florestan Fernandes Jr.
Nesta quarta-feira
(04/09), em audiência na Comissão de Meio Ambiente do Senado, a ministra,
Marina Silva, esclareceu a imensidão do abismo em que estamos. Afirmou que a
crise ambiental é tamanha, que o Pantanal, a maior planície alagada do planeta,
corre o risco de desaparecer até o final do século. O alerta levou a senadora
Leila Barros (PDT-DF) a fazer um desabafo emocionado. Para a parlamentar,
ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei, não existe qualquer comprometimento
de boa parte dos parlamentares com a gravidade da questão ambiental. Salvar o
meio ambiente não está na pauta. Estão mais preocupados com a guerra
ideológica, em atacar seus adversários políticos, em gravar lacrações dentro do
plenário para postar nas suas redes sociais.
É comum ouvirmos que o
parlamento é o espelho do povo de um país. Infelizmente, de uns anos para cá,
está bem difícil para os mais lúcidos olhar para esse espelho disfórmico.
Hoje, os campeões de
votos na política são os tais influencers e coaches, esse novo ramo de
atividade, que comercializa um “modo de vida” ou uma “expertise” de
sabe-se-lá-o-que. O fato é que esse nicho veio pra ficar, inclusive tem ocupado
noticiário policial, com acusações de charlatanismo, organização criminosa,
tráfico e outras coisas mais. Perto dessa turma que veio na esteira do
bolsonarismo, as “rachadinhas” (desvio de dinheiro público subtraído dos
salários de assessores), uma das predileções da família Bolsonaro nos
parlamentos estadual, municipal e federal, parece fichinha.
A nova turma dos
coaches/influencers angariou o apoio de parte do agronegócio e do sistema
financeiro. Com a chegada de Pablo Marçal, parece muito claro que a extrema
direita perdeu de vez qualquer prurido moral e ético. Marçal, condenado em 2005
por participar de uma organização criminosa que invadia contas bancárias pela
internet e tinha como principais vítimas, idosos e aposentados, agora é o
candidato incensado do mercado financeiro para ser o prefeito de São Paulo, a
maior cidade da América do Sul.
O jovem coach, que tem
milhões de seguidores nas plataformas, é a personificação do que existe de pior
no capitalismo selvagem brasileiro. Marçal representa a exposição daquilo que
os donos do capital praticam, mas que não desejam expor; aquilo que os constitui,
mas que é guardado em escondido: as suas vísceras, o desprezo pelo ser humano,
o abuso da boa-fé das pessoas pra enriquecer, o engano, a exploração dos mais
pobres e vulneráveis.
Nos debates, o
desrespeito aos jornalistas, aos adversários e aos espectadores, é consumido
(sim, o termo é esse) pelos seguidores como uma virtude de Marçal. A ele
compensa ser visto como alguém “politicamente incorreto”, de fora do sistema,
que se contrapõe às normas e aos políticos tradicionais.
Hipnotizados pela
performance do coach, seus seguidores e apoiadores não se dão conta de que são
como cegos a caminho do precipício ao qual fatalmente poderão levar a todos
nós.
Como disse Nelson
Rodrigues, “os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela
quantidade. Eles são muitos.”
Fonte: Por Paulo
Motoryn e Cláudio C. Silva, em The Intercept/Brasil 247
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