Pablo Marçal: o espelho da decadência do
projeto de país
Estudiosos da
sociologia e da crítica literária brasileira, ao menos algumas das grandes
cabeças, perceberam que aqui, como em outros cantos do Sul global, o encontro
entre o moderno e o arcaico é parte decisiva da compreensão do país, em
distintos âmbitos de análise. Pensando a revolução, no 18 Brumário, Marx
advertia que os revolucionários tendem a recorrer aos espíritos do passado, mas
só quando se despojam de parodiá-los e encaram o novo, podem atuar na realidade
concreta. Na política burguesa, pelo contrário, é frequentemente o arcaico que
se veste de moderno.
Talvez pudéssemos
partir de que há algo análogo a isso quando pensamos que a análise política
brasileira se tornou uma análise de marketing digital, das técnicas modernas da
política. O novo fenômeno da extrema-direita, Pablo Marçal, é analisado
centralmente como alguém que utiliza bem as redes, tem o know-how do marketing
digital, sabe comunicar. Tudo isso certamente é importante, até mesmo decisivo,
mas esconde algo fundamental. Por trás de todas as possibilidades da forma,
existe um conteúdo reacionário, no sentido agudo da palavra, que deve ser
analisado.
Em vista disso,
recorrendo a um texto de Chico de Oliveira, O ornitorrinco, queremos analisar
como o fenômeno Marçal, apresentando uma forma “moderna” (empreendedora e de
marketing digital), é um sintoma agudo da longa decadência de um projeto de
país quase inquestionável. Mas que existe algo novo nessa decadência, pois como
todo processo dialético, essas mudanças quantitativas levam a saltos
qualitativos, no caso, retrógrados, saltos para trás, que são alimentados pela
ausência de alternativa política e programática pela esquerda.
• Projeto de país: “não existe
alternativa”
Não precisaríamos
refletir muito para compreender o caráter do capital e seus padrões de
acumulação na história brasileira, começando por um país de formação colonial
baseado no trabalho escravizado. Levando em conta repúblicas militares e
oligárquicas, mais as duas ditaduras (que ocupam 29 anos do século XX), não
faltam exemplos de pensamento reacionário em nossa elite política.
O problema está em
pensar que esse mesmo país foi palco de um dos mais espetaculares ascensos
operários da América Latina (1978-1980) e a criação de um partido de
trabalhadores, um fenômeno relativamente sui generis em nosso contexto
americano, o que gerou expectativas e debates intelectuais de transformação
social, mudança estrutural e mesmo projetos de país que colocavam em questão,
ao menos como reflexão, a longa subordinação semicolonial do Brasil às
potências.
Efetivamente, a
direção do PT, com Lula e Dirceu à cabeça, nunca foi nem próxima de uma
alternativa socialista e, pelo contrário, atuou em momentos decisivos (no
próprio ascenso de 1978, nas Diretas já, na Constituinte de 1988, na greve dos
petroleiros de 1995 etc.) como um sustentáculo fundamental do regime político
brasileiro. Mas isso não significa que o ascenso de 1978, a formação do partido
e todo o processo de discussão nas correntes de esquerda não geraram debates no
sentido da transformação estrutural do país, mesmo nas universidades muitos
intelectuais pensavam a partir do marxismo (nas suas distintas acepções), ainda
havia bases programáticas em setores amplos da vanguarda sindical.
O programa
democrático-popular era a alternativa reformista apresentada (contraposta ao
socialismo e a um programa de transição). Já expressava os marcantes limites de
projeto desde os anos 1980, mas mesmo essa alternativa se esvaziou
completamente com a eleição de Lula em 2002, que apontava no sentido da morte
de qualquer projeto programático de transformação social. Começou com uma
aliança com o PL (sic), com Alencar como vice, e em poucos meses apontou para a
reforma da previdência e universitária. A partir do primeiro ano do governo
Lula uma coisa já estava clara: o horizonte máximo que o PT apresentava a toda
a sua base era o de uma melhor administração, com assistência social, crédito
para consumo, projetos de construção civil e uma expansão precária da educação,
o que se efetivou a partir de 2006 com o lulismo. Não era mais um programa, mas
slogans, da picanha no final de semana, três pratos de comida e o pobre no
orçamento.
Indo além dos slogans
e analisando estruturalmente o país, o sociólogo Chico de Oliveira, com seu
olhar agudo, já em 2003 fez a descrição do projeto que ganhava forma, um tanto
sui generis, que ele metaforizou na imagem de um ornitorrinco:
Como é o ornitorrinco?
Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque
nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor
industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela
Terceira Revolução, a molecular-digital ou informática. Uma estrutura de
serviços muito diversificada numa ponta, quando ligada aos estratos de altas
rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; noutra,
extremamente primitiva, ligada exatamente ao consumo dos estratos pobres. Um
sistema financeiro ainda atrofiado, mas que, justamente pela financeirização e
elevação da dívida interna, acapara uma alta parte do PIB (...) Em termos da
PEA ocupada, fraca e declinante participação da PEA rural, força de trabalho
industrial que chegou ao auge na década de 1970, mas decrescente também, e
explosão continuada do emprego nos serviços.
O sociólogo percebia
em seus ensaios o caráter desigual da economia brasileira, que reunia, por um
lado, no polo urbano, grandes metrópoles com explosão do setor de serviços (de
ponta, para uma fração de classe, e muito precário para outra) e população trabalhadora
vivendo em grandes periferias e alimentando a acumulação a partir de ser sugada
por uma impiedosa exploração laboral. Por outro, uma força de trabalho cada vez
menor no setor rural, mas sem isso significar um campo como símbolo apenas
atrasado; ao contrário, um lugar de combinação da herança colonial com o
ultramoderno agrobusiness.
Em outras palavras, o
urbano, símbolo do moderno, era embasado em uma indústria da segunda revolução
industrial, um inchaço dos serviços e um trabalho cada vez mais precarizado. Já
o campo, sinônimo do atraso nas leituras cepalinas do subdesenvolvimento,
acabou se entrelaçando com o capital financeiro, com as tecnologias de ponta e
a própria indústria existente, formando um grande centro de gravidade na
economia brasileira, que chega a ser intitulada internacionalmente como “a
fazenda do mundo”. Tudo isso muito bem articulado com uma arquitetura econômica
neoliberal, em que o chamado tripé macroeconômico (metas de inflação, câmbio
flutuante e responsabilidade fiscal) se tornou uma verdadeira égide da política
econômica, com o objetivo fundamental do pagamento de juros e amortizações da
dívida pública, que abocanha uma fatia próxima a 50% do PIB nacional segundo
dados de economistas críticos.
Daqui que o próprio
Chico de Oliveira explica em Hegemonia às avessas, porque o PT, que parecia tão
distinto do PSDB, aplicou seu programa econômico. A cartilha econômica
neoliberal brasileira lembrava os dizeres de Margareth Thatcher: “there is no
alternative”, e a forma desengonçada do Ornitorrinco parecia nosso destino
manifesto nas cabeças das elites e dos dirigentes reformistas. O problema é que
sem alternativa dos trabalhadores o capitalismo é um sistema de decomposição, e
seus sintomas não poderiam deixar de expressar.
• Os limites do ornitorrinco e os seus
embates
O caminho de
esgarçamento pela direita do projeto de país vigente não foi aberto sem que
houvesse enfrentamento com a classe trabalhadora e a juventude. Primeiro,
durante o final do governo Dilma, depois, como resposta ao golpe institucional.
Começando por Junho,
em 2013, ainda no segundo governo Dilma, os limites do lulismo, ou
ornitorrinquismo, foram enfrentados pela juventude aos milhões nas ruas. Em
Maio de 2014, vimos a onda de greves operárias, dos garis, rodoviários,
metroviários, funcionários de universidades, algumas com aspectos
antiburocráticos, em que a classe mostrava que tinha força e disposição no que
antecedeu ao golpe. Em Abril, de 2017, tivemos uma das maiores greves gerais da
história do Brasil. Rigorosamente, uma paralisação nacional, mas numa escala
bem forte, que dados apontavam atingir 40 milhões de pessoas e tinha na mira a
reforma da previdência, um dos baluartes da decadência nacional pós-golpe. A
derrota dessas lutas, com a ausência de direções de esquerda (junho) ou decisão
de combate pelas direções sindicais e políticas (greve geral), não poderiam
passar sem marcas.
É de enorme
importância remarcar que houve luta, houve possibilidade de alternativa pela
classe trabalhadora ao curso do golpe institucional de 2015-2016. A covardia de
não enfrentá-lo com toda a força das centrais e partidos nas ruas foi o beco
sem saída da decadência. Com o instrumento imperialista da Lava Jato, a
implementação do golpe institucional de 2015-2016 e a prisão de Lula
(praticamente sem resistência), o caminho da asfixia da classe trabalhadora e
uma resolução ainda mais reacionária estava aberto.
O projeto do golpe é
conhecido, uma miríade de contrarreformas, começando pela trabalhista de Temer,
o teto de gastos e reforma da previdência de Bolsonaro. Mais estruturalmente, o
que estava em jogo? Esgarçar as contradições. As cidades com trabalho mais
explorado e desindustrializado, o agronegócio cada vez mais poderoso
(descolando parte do centro econômico para o centro-oeste), o pagamento da
dívida pública mais religioso, as doutrinas de ajuste fiscal mais intensas
(vide Paulo Guedes), o conservadorismo na sociedade estimulado. À luz desse
processo, não parece um raio num céu sereno que Bolsonaro tenha se tornado a
expressão cabal da decadência brasileira. A brutalidade do retrocesso, com
tinturas bonapartistas e ideologia fascistizante.
• O cárcere neoliberal da imaginação e o
espelho da decadência
E eis que 2022 marcou
a unificação de neoliberais confessos e lulistas para “barrar o bolsonarismo”,
barrar o retrocesso. Mais que barrar algo (pela via eleitoral, sempre bom
lembrar), pode-se dizer que se resgatou algum projeto?
Para compreender o
projeto atual é importante resgatar a reflexão sobre o lulismo. André Singer,
na sua explicação dos “sentidos do lulismo”, dizia que este manifestava o
encontro “de Lula, com uma fração de classe, o subproletariado” por meio de
programas de combate a pobreza e ativação do mercado interno, melhorando o
consumo. O fato é que no contexto de boom das commodities e condições de
crédito favoráveis, era possível vender uma ilusão de prosperidade pelo
consumo.
O fenômeno atual, que
poderíamos definir, como faz Danilo Paris, como de “lulismo senil”
[https://www.esquerdadiario.com.br/Lulismo-senil-em-um-regime-politico-degradado],
é mais consonante com suas condições precárias. Como projeto, diz almejar a
retomada de programas sociais com responsabilidade fiscal, que levaria a
estabilização da democracia (burguesa) brasileira e com isso a
institucionalização da extrema-direita, recriando um ambiente democrático para
pensar nosso velho ornitorrinco. Ou seja, seu horizonte está em pensar em impor
limites à extrema-direita, mantendo o ordenamento econômico vigente, tentando
recompor alguns programas sociais, com a aposta de que as condições políticas
melhorem gradualmente.
O problema estratégico
é o seguinte: do ponto de vista do “campo”, o lulismo senil bate recorde.
Ofereceu o maior plano safra da história, com investimentos de nada menos do
que 400 bilhões de reais. Esgarça esse pilar antigo. Do ponto de vista urbano,
vemos uma flagrante decadência da indústria e uma ascensão da burguesia
agro-industrial, mas mantendo o setor de serviços crescente baseado no trabalho
ultraprecário. Da maré de terceirização dos primeiros governos Lula, agora a
proposta desse ano foi de regulamentar o trabalho uberizado, num país de
gigantesco trabalho informal. E não contente em manter todas as reformas de
Bolsonaro, a cara do ministério da economia, Fernando Haddad, tem como méritos
novas reformas e o arcabouço fiscal, um novo Teto de Gastos à la Temer,
mecanismo de manutenção da “responsabilidade fiscal”.
A incapacidade de um
projeto alternativo, de trabalho, educação, transporte e saúde, se evidencia
quando a cria mais nova do lulismo, Guilherme Boulos, tem uma votação maior nas
camadas com maior renda do que no “subproletarido” que dizia Singer. Significa
que não pode oferecer um projeto que responda, nem mesmo do ponto de vista
reformista, aos anseios da população trabalhadora, pois está antes de tudo
comprometido em rezar a cartilha da responsabilidade fiscal, vivendo o cárcere
da imaginação neoliberal para a esquerda. É precisamente esse ciclo vicioso que
alimenta Marçal, que consegue disseminar os valores conservadores entre os mais
velhos e vender esperança de prosperidade a partir do empreendedorismo entre os
mais jovens. E se utiliza do crescimento do evangelismo de direita na
sociedade, a partir da desesperança das condições econômicas.
Pois do projeto que
toma o Brasil como fazenda do mundo, Marçal é uma expressão direta. Os dois
maiores financiadores de suas campanhas, Helio Seibel e Elvio Ferro Filho, são
empresários do agronegócio de Goiás – beneficiados pelo plano Safra. Do ponto de
vista das cidades, o candidato da extrema-direita se aproveita da ampla
informalidade, e de que o próprio projeto do governo era regulamentar a
uberização com o PL 12/2024, para usar semioticamente o símbolo da carteira de
trabalho, ao mesmo tempo que no discurso defende o empreendedorismo neoliberal
como forma de prosperidade para as periferias do estado. No fundo econômico, a
arquitetura financeira se mantém intacta para todos os candidatos, com a
fórmula de responsabilidade fiscal e respeito à cartilha econômica do pacto
federativo.
Pensando a partir do
velho Chico de Oliveira, o ornitorrinco em extinção se tornou um bicho para o
qual ainda não encontramos metáfora. É mais agrobusiness, tem um trabalho ainda
mais informal e precário, que foi além da reestruturação dos anos 1990 e agora
é uberizado. Está mais enjaulado que nunca em pagar dívida pública, com seu
novo pacote de reformas, arcabouço e agora até autonomia do Banco Central. E
tem dentro de seu regime político uma força política de extrema-direita, que
representa e incentiva o esgarçamento dessas contradições (um campo mais forte,
um trabalho urbano mais precarizado, e o conservadorismo dos valores como base
espiritual desse processo).
É de se presumir que
dessa estranha criatura advinda do Ornitorrinco seja necessário um embate
profundo para que se ganhe as feições de um bicho revolucionário. 2013, 2014 e
2017 mostram que a alternativa verdadeira não foi construída por dentro da
institucionalidade, mas com a juventude e a classe trabalhadora nas ruas - sem
dúvida o período que a direita mais ficou na defensiva no Brasil nos últimos
anos foi em abril de 2017. Seus limites atestam que uma análise efetivamente
realista da situação não pode esperar uma alternativa política e programática a
não ser com a juventude e classe trabalhadora organizada.
Lenin certa vez
escreveu que Tolstoi era o espelho da revolução. Não queria dizer que sua
literatura a compreendeu, mas que expressou com riqueza a complexidade de suas
contradições. Na ausência dela, e mesmo do imaginário dela na esquerda
institucional, o que vemos é a decadência capitalista, sem alternativa
programática.
Pablo Marçal é a
reação à institucionalização da extrema-direita, a expressão da arcaica
espoliação capitalista no novo país do agronegócio que se veste com tinturas
modernas, a imagem no espelho dessa decadência no projeto de país.
Fonte: Esquerda Diário
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