quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Pablo Marçal: o espelho da decadência do projeto de país

Estudiosos da sociologia e da crítica literária brasileira, ao menos algumas das grandes cabeças, perceberam que aqui, como em outros cantos do Sul global, o encontro entre o moderno e o arcaico é parte decisiva da compreensão do país, em distintos âmbitos de análise. Pensando a revolução, no 18 Brumário, Marx advertia que os revolucionários tendem a recorrer aos espíritos do passado, mas só quando se despojam de parodiá-los e encaram o novo, podem atuar na realidade concreta. Na política burguesa, pelo contrário, é frequentemente o arcaico que se veste de moderno.

Talvez pudéssemos partir de que há algo análogo a isso quando pensamos que a análise política brasileira se tornou uma análise de marketing digital, das técnicas modernas da política. O novo fenômeno da extrema-direita, Pablo Marçal, é analisado centralmente como alguém que utiliza bem as redes, tem o know-how do marketing digital, sabe comunicar. Tudo isso certamente é importante, até mesmo decisivo, mas esconde algo fundamental. Por trás de todas as possibilidades da forma, existe um conteúdo reacionário, no sentido agudo da palavra, que deve ser analisado.

Em vista disso, recorrendo a um texto de Chico de Oliveira, O ornitorrinco, queremos analisar como o fenômeno Marçal, apresentando uma forma “moderna” (empreendedora e de marketing digital), é um sintoma agudo da longa decadência de um projeto de país quase inquestionável. Mas que existe algo novo nessa decadência, pois como todo processo dialético, essas mudanças quantitativas levam a saltos qualitativos, no caso, retrógrados, saltos para trás, que são alimentados pela ausência de alternativa política e programática pela esquerda.

•        Projeto de país: “não existe alternativa”

Não precisaríamos refletir muito para compreender o caráter do capital e seus padrões de acumulação na história brasileira, começando por um país de formação colonial baseado no trabalho escravizado. Levando em conta repúblicas militares e oligárquicas, mais as duas ditaduras (que ocupam 29 anos do século XX), não faltam exemplos de pensamento reacionário em nossa elite política.

O problema está em pensar que esse mesmo país foi palco de um dos mais espetaculares ascensos operários da América Latina (1978-1980) e a criação de um partido de trabalhadores, um fenômeno relativamente sui generis em nosso contexto americano, o que gerou expectativas e debates intelectuais de transformação social, mudança estrutural e mesmo projetos de país que colocavam em questão, ao menos como reflexão, a longa subordinação semicolonial do Brasil às potências.

Efetivamente, a direção do PT, com Lula e Dirceu à cabeça, nunca foi nem próxima de uma alternativa socialista e, pelo contrário, atuou em momentos decisivos (no próprio ascenso de 1978, nas Diretas já, na Constituinte de 1988, na greve dos petroleiros de 1995 etc.) como um sustentáculo fundamental do regime político brasileiro. Mas isso não significa que o ascenso de 1978, a formação do partido e todo o processo de discussão nas correntes de esquerda não geraram debates no sentido da transformação estrutural do país, mesmo nas universidades muitos intelectuais pensavam a partir do marxismo (nas suas distintas acepções), ainda havia bases programáticas em setores amplos da vanguarda sindical.

O programa democrático-popular era a alternativa reformista apresentada (contraposta ao socialismo e a um programa de transição). Já expressava os marcantes limites de projeto desde os anos 1980, mas mesmo essa alternativa se esvaziou completamente com a eleição de Lula em 2002, que apontava no sentido da morte de qualquer projeto programático de transformação social. Começou com uma aliança com o PL (sic), com Alencar como vice, e em poucos meses apontou para a reforma da previdência e universitária. A partir do primeiro ano do governo Lula uma coisa já estava clara: o horizonte máximo que o PT apresentava a toda a sua base era o de uma melhor administração, com assistência social, crédito para consumo, projetos de construção civil e uma expansão precária da educação, o que se efetivou a partir de 2006 com o lulismo. Não era mais um programa, mas slogans, da picanha no final de semana, três pratos de comida e o pobre no orçamento.

Indo além dos slogans e analisando estruturalmente o país, o sociólogo Chico de Oliveira, com seu olhar agudo, já em 2003 fez a descrição do projeto que ganhava forma, um tanto sui generis, que ele metaforizou na imagem de um ornitorrinco:

Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela Terceira Revolução, a molecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversificada numa ponta, quando ligada aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; noutra, extremamente primitiva, ligada exatamente ao consumo dos estratos pobres. Um sistema financeiro ainda atrofiado, mas que, justamente pela financeirização e elevação da dívida interna, acapara uma alta parte do PIB (...) Em termos da PEA ocupada, fraca e declinante participação da PEA rural, força de trabalho industrial que chegou ao auge na década de 1970, mas decrescente também, e explosão continuada do emprego nos serviços.

O sociólogo percebia em seus ensaios o caráter desigual da economia brasileira, que reunia, por um lado, no polo urbano, grandes metrópoles com explosão do setor de serviços (de ponta, para uma fração de classe, e muito precário para outra) e população trabalhadora vivendo em grandes periferias e alimentando a acumulação a partir de ser sugada por uma impiedosa exploração laboral. Por outro, uma força de trabalho cada vez menor no setor rural, mas sem isso significar um campo como símbolo apenas atrasado; ao contrário, um lugar de combinação da herança colonial com o ultramoderno agrobusiness.

Em outras palavras, o urbano, símbolo do moderno, era embasado em uma indústria da segunda revolução industrial, um inchaço dos serviços e um trabalho cada vez mais precarizado. Já o campo, sinônimo do atraso nas leituras cepalinas do subdesenvolvimento, acabou se entrelaçando com o capital financeiro, com as tecnologias de ponta e a própria indústria existente, formando um grande centro de gravidade na economia brasileira, que chega a ser intitulada internacionalmente como “a fazenda do mundo”. Tudo isso muito bem articulado com uma arquitetura econômica neoliberal, em que o chamado tripé macroeconômico (metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal) se tornou uma verdadeira égide da política econômica, com o objetivo fundamental do pagamento de juros e amortizações da dívida pública, que abocanha uma fatia próxima a 50% do PIB nacional segundo dados de economistas críticos.

Daqui que o próprio Chico de Oliveira explica em Hegemonia às avessas, porque o PT, que parecia tão distinto do PSDB, aplicou seu programa econômico. A cartilha econômica neoliberal brasileira lembrava os dizeres de Margareth Thatcher: “there is no alternative”, e a forma desengonçada do Ornitorrinco parecia nosso destino manifesto nas cabeças das elites e dos dirigentes reformistas. O problema é que sem alternativa dos trabalhadores o capitalismo é um sistema de decomposição, e seus sintomas não poderiam deixar de expressar.

•        Os limites do ornitorrinco e os seus embates

O caminho de esgarçamento pela direita do projeto de país vigente não foi aberto sem que houvesse enfrentamento com a classe trabalhadora e a juventude. Primeiro, durante o final do governo Dilma, depois, como resposta ao golpe institucional.

Começando por Junho, em 2013, ainda no segundo governo Dilma, os limites do lulismo, ou ornitorrinquismo, foram enfrentados pela juventude aos milhões nas ruas. Em Maio de 2014, vimos a onda de greves operárias, dos garis, rodoviários, metroviários, funcionários de universidades, algumas com aspectos antiburocráticos, em que a classe mostrava que tinha força e disposição no que antecedeu ao golpe. Em Abril, de 2017, tivemos uma das maiores greves gerais da história do Brasil. Rigorosamente, uma paralisação nacional, mas numa escala bem forte, que dados apontavam atingir 40 milhões de pessoas e tinha na mira a reforma da previdência, um dos baluartes da decadência nacional pós-golpe. A derrota dessas lutas, com a ausência de direções de esquerda (junho) ou decisão de combate pelas direções sindicais e políticas (greve geral), não poderiam passar sem marcas.

É de enorme importância remarcar que houve luta, houve possibilidade de alternativa pela classe trabalhadora ao curso do golpe institucional de 2015-2016. A covardia de não enfrentá-lo com toda a força das centrais e partidos nas ruas foi o beco sem saída da decadência. Com o instrumento imperialista da Lava Jato, a implementação do golpe institucional de 2015-2016 e a prisão de Lula (praticamente sem resistência), o caminho da asfixia da classe trabalhadora e uma resolução ainda mais reacionária estava aberto.

O projeto do golpe é conhecido, uma miríade de contrarreformas, começando pela trabalhista de Temer, o teto de gastos e reforma da previdência de Bolsonaro. Mais estruturalmente, o que estava em jogo? Esgarçar as contradições. As cidades com trabalho mais explorado e desindustrializado, o agronegócio cada vez mais poderoso (descolando parte do centro econômico para o centro-oeste), o pagamento da dívida pública mais religioso, as doutrinas de ajuste fiscal mais intensas (vide Paulo Guedes), o conservadorismo na sociedade estimulado. À luz desse processo, não parece um raio num céu sereno que Bolsonaro tenha se tornado a expressão cabal da decadência brasileira. A brutalidade do retrocesso, com tinturas bonapartistas e ideologia fascistizante.

•        O cárcere neoliberal da imaginação e o espelho da decadência

E eis que 2022 marcou a unificação de neoliberais confessos e lulistas para “barrar o bolsonarismo”, barrar o retrocesso. Mais que barrar algo (pela via eleitoral, sempre bom lembrar), pode-se dizer que se resgatou algum projeto?

Para compreender o projeto atual é importante resgatar a reflexão sobre o lulismo. André Singer, na sua explicação dos “sentidos do lulismo”, dizia que este manifestava o encontro “de Lula, com uma fração de classe, o subproletariado” por meio de programas de combate a pobreza e ativação do mercado interno, melhorando o consumo. O fato é que no contexto de boom das commodities e condições de crédito favoráveis, era possível vender uma ilusão de prosperidade pelo consumo.

O fenômeno atual, que poderíamos definir, como faz Danilo Paris, como de “lulismo senil” [https://www.esquerdadiario.com.br/Lulismo-senil-em-um-regime-politico-degradado], é mais consonante com suas condições precárias. Como projeto, diz almejar a retomada de programas sociais com responsabilidade fiscal, que levaria a estabilização da democracia (burguesa) brasileira e com isso a institucionalização da extrema-direita, recriando um ambiente democrático para pensar nosso velho ornitorrinco. Ou seja, seu horizonte está em pensar em impor limites à extrema-direita, mantendo o ordenamento econômico vigente, tentando recompor alguns programas sociais, com a aposta de que as condições políticas melhorem gradualmente.

O problema estratégico é o seguinte: do ponto de vista do “campo”, o lulismo senil bate recorde. Ofereceu o maior plano safra da história, com investimentos de nada menos do que 400 bilhões de reais. Esgarça esse pilar antigo. Do ponto de vista urbano, vemos uma flagrante decadência da indústria e uma ascensão da burguesia agro-industrial, mas mantendo o setor de serviços crescente baseado no trabalho ultraprecário. Da maré de terceirização dos primeiros governos Lula, agora a proposta desse ano foi de regulamentar o trabalho uberizado, num país de gigantesco trabalho informal. E não contente em manter todas as reformas de Bolsonaro, a cara do ministério da economia, Fernando Haddad, tem como méritos novas reformas e o arcabouço fiscal, um novo Teto de Gastos à la Temer, mecanismo de manutenção da “responsabilidade fiscal”.

A incapacidade de um projeto alternativo, de trabalho, educação, transporte e saúde, se evidencia quando a cria mais nova do lulismo, Guilherme Boulos, tem uma votação maior nas camadas com maior renda do que no “subproletarido” que dizia Singer. Significa que não pode oferecer um projeto que responda, nem mesmo do ponto de vista reformista, aos anseios da população trabalhadora, pois está antes de tudo comprometido em rezar a cartilha da responsabilidade fiscal, vivendo o cárcere da imaginação neoliberal para a esquerda. É precisamente esse ciclo vicioso que alimenta Marçal, que consegue disseminar os valores conservadores entre os mais velhos e vender esperança de prosperidade a partir do empreendedorismo entre os mais jovens. E se utiliza do crescimento do evangelismo de direita na sociedade, a partir da desesperança das condições econômicas.

Pois do projeto que toma o Brasil como fazenda do mundo, Marçal é uma expressão direta. Os dois maiores financiadores de suas campanhas, Helio Seibel e Elvio Ferro Filho, são empresários do agronegócio de Goiás – beneficiados pelo plano Safra. Do ponto de vista das cidades, o candidato da extrema-direita se aproveita da ampla informalidade, e de que o próprio projeto do governo era regulamentar a uberização com o PL 12/2024, para usar semioticamente o símbolo da carteira de trabalho, ao mesmo tempo que no discurso defende o empreendedorismo neoliberal como forma de prosperidade para as periferias do estado. No fundo econômico, a arquitetura financeira se mantém intacta para todos os candidatos, com a fórmula de responsabilidade fiscal e respeito à cartilha econômica do pacto federativo.

Pensando a partir do velho Chico de Oliveira, o ornitorrinco em extinção se tornou um bicho para o qual ainda não encontramos metáfora. É mais agrobusiness, tem um trabalho ainda mais informal e precário, que foi além da reestruturação dos anos 1990 e agora é uberizado. Está mais enjaulado que nunca em pagar dívida pública, com seu novo pacote de reformas, arcabouço e agora até autonomia do Banco Central. E tem dentro de seu regime político uma força política de extrema-direita, que representa e incentiva o esgarçamento dessas contradições (um campo mais forte, um trabalho urbano mais precarizado, e o conservadorismo dos valores como base espiritual desse processo).

É de se presumir que dessa estranha criatura advinda do Ornitorrinco seja necessário um embate profundo para que se ganhe as feições de um bicho revolucionário. 2013, 2014 e 2017 mostram que a alternativa verdadeira não foi construída por dentro da institucionalidade, mas com a juventude e a classe trabalhadora nas ruas - sem dúvida o período que a direita mais ficou na defensiva no Brasil nos últimos anos foi em abril de 2017. Seus limites atestam que uma análise efetivamente realista da situação não pode esperar uma alternativa política e programática a não ser com a juventude e classe trabalhadora organizada.

Lenin certa vez escreveu que Tolstoi era o espelho da revolução. Não queria dizer que sua literatura a compreendeu, mas que expressou com riqueza a complexidade de suas contradições. Na ausência dela, e mesmo do imaginário dela na esquerda institucional, o que vemos é a decadência capitalista, sem alternativa programática.

Pablo Marçal é a reação à institucionalização da extrema-direita, a expressão da arcaica espoliação capitalista no novo país do agronegócio que se veste com tinturas modernas, a imagem no espelho dessa decadência no projeto de país.

 

Fonte: Esquerda Diário

 

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