O Golem fabricado de barro
Na mística judaica, na
literatura e no cinema, o Golem é criado artificialmente por um rabino para
salvar a vida dos judeus contra ataques antissemitas, mas liberta-se do
controle de seu criador e dissemina o medo, o pânico e a morte, em total
desacordo com o mandamento “não matarás”.
A lenda diz que o
estúpido gigante havia sido fabricado de barro e trazia em sua testa a palavra
hebraica Emet, verdade. Depois que o feitiço vira contra o
feiticeiro, o rabino destrói o Golem apagando a primeira letra de Emet,
verdade, que resulta em Met, morto. Entre as diversas versões do
Golem, a mais difundida é a do rabino cabalista de Praga do século XVI. Em
1920, Paul Wegener dirigiu o clássico filme do expressionismo alemão O Golem.
Para falar da ética e
da estética sionistas, não vou fazer referências à ideologia dos radicais
israelenses empenhados em promover a carnificina e expulsão dos palestinos para
criar um estado teocrático que se estenda do Mediterrâneo ao Jordão (e, quem sabe,
para além). Pelo contrário, vou citar o escritor mais influente de Israel, o
pacifista Amós Oz em seu romance autobiográfico De amor e trevas,
que atravessa a formação do estado. Tanto a sua família do lado paterno como do
lado materno imigrou da Europa para a Palestina no período do Mandato Britânico
e Amós Oz nasceu em Jerusalém em 1939.
Após o Holocausto, os
europeus ansiavam por se livrar dos judeus sobreviventes e, muito mais
poderosos do que os árabes, se empenharam em obrigá-los “a engolir o que a
Europa queria vomitar”. Com a publicação do Plano de Partilha da Palestina da
ONU em 1947, enquanto o pai de Amós Oz comemorava a profecia de Hertzl, “o
estado judeu bate à porta”, sua mãe dizia, “Não bate, não há porta alguma, o
que há é um precipício”.
Numa das passagens do
romance, Amós Oz introduz a fala subversiva de um companheiro, “Do ponto de
vista dos palestinos, somos estrangeiros vindo de outro planeta, que
aterrissaram e invadiram as suas terras. Devagarinho fomos tomando pedaço por
pedaço e, enquanto assegurávamos a eles ter vindo para o seu bem – para
curá-los dos vermes e do tracoma, libertá-los do marasmo, da ignorância e da
opressão feudal –, fomos espertamente garfando mais e mais de sua terra. Então,
o que você acha? Que vão nos agradecer pela benevolência? Que viriam nos
receber com fanfarras festivas? Que viriam nos oferecer numa cerimônia as
chaves de todos os lugares que ainda não tomamos só porque nossos antepassados
viveram por aqui um dia? Você ainda se surpreende quando eles empunham as armas
contra nós? E agora, depois de impor-lhes uma derrota fragorosa e ter deixado
centenas de milhares deles em campos de refugiados, ainda acha que vão fazer
festinha para nós e nos desejar tudo de bom?”.
Na construção do
Estado, as autoridades israelenses se empenharam em transformar o judeu da
diáspora humanista, internacionalista e pacifista que caminhava como um
cordeiro para o matadouro em um novo judeu forte e viril capaz de eliminar a
presença da população nativa que habitava a Palestina.
Amós Klausner foi
profundamente marcado pelo trágico suicídio de sua mãe em 1952, poucos anos
depois da criação do Estado de Israel. Em De amor e trevas, o pai
do protagonista é descrito como um intelectual, fraco e pouco viril; e o menino
resolve ir morar em um kibutz para renascer na forma de um forte e viril
israelense. Para se livrar da inhaca do judeu diaspórico, trocou também seu
sobrenome yiddish por um sobrenome hebraico, assumindo uma nova identidade.
Contudo, o destino trai Amós Oz que, ao invés de se transformar em um
agricultor, volta-se à escrita em uma narrativa extremamente intimista.
Não gosto de
ficar copiando textos originais, prefiro parafrasear as citações, mas, neste
caso, temo que não acreditariam nas minhas palavras. “Meu pai lia em dezesseis
ou dezessete línguas e sabia falar onze (todas com um sotaque russo)… O menino na
foto é meu tio David… E a menina de grandes olhos puxados, vaidosa, pequena e
charmosa, aquela menininha é meu pai.” Quando o pai chega em visita ao kibutz,
o filho se dirige a ele montado em um trator em movimento, o que o surpreende e
aterroriza. “… cheguei em um estrondo ao ponto de desembarque, em meio a uma
nuvem de poeira, alguns minutos depois que o ônibus de Tel Aviv estacionou. Meu
pai, que eu não via há mais de um ano, já estava lá, protegendo com as mãos
seus olhos do sol e nervoso, esperando por ajuda… Me dirigi em um fragor até
ele, freando quase na frente de seu nariz e, inclinando-me em sua direção, com
uma mão ao volante e a outra pousada com domínio sobre o para-lamas,
disse: Shalom. Ele olhou para mim com os olhos ampliados pelos
óculos, parecendo uma criança assustada, e retribuiu apressadamente minha
saudação, embora não tivesse certeza de quem eu era. Quando me identificou,
pareceu surpreso… ‘Permita-me observar que não foi muito prudente aquela sua
brusca freada. Você poderia ter me atropelado’”.
Depois de relatar os
horrores da guerra que se seguiu à aprovação do Plano de Partilha da Palestina
na ONU, o forte e viril protagonista membro do kibutz narra seu encontro com
David Ben-Gurion e descreve minuciosamente o herói nacional, a personalidade mais
importante da história de Israel, o criador do novo judeu israelense, como uma
caricatura do judeu do shtetl, “…um homem andando de um lado para o
outro com pequenos e rápidos passos, as mãos cruzadas atrás das costas, os
olhos no chão, a cabeça grande projetada para a frente como se fosse dar uma
cabeçada… um homem baixo e atarracado, cuja altura era inferior a um metro e
sessenta… este homenzinho compacto e de constituição poderosa, algo entre um
montanhês forte e patriarcal e um anão velho e enérgico… Tinha uma profética
cabeleira prateada que rodeava sua careca como um anfiteatro. Na margem
inferior de sua imensa testa havia duas sobrancelhas grossas e cinzentas,
abaixo das quais um par de olhos cinzentos e afiados perfurava o ar. Tinha um
nariz largo e áspero, um nariz descaradamente feio, um nariz pornográfico, como
uma caricatura antissemita. Seus lábios, por outro lado, eram finos e
retraídos, mas seu queixo me parecia o maxilar proeminente e desafiador de um
velho marinheiro. Sua pele era áspera e vermelha como carne crua. Sob um
pescoço curto, seus ombros eram largos e poderosos. Seu peito era enorme. A
camisa de gola aberta revelava um peito com pelos da largura de um palmo. Sua
barriga era descaradamente protuberante, como a corcova de uma baleia. Parecia
tão sólido como se fosse feito de concreto. Mas toda essa magnificência
terminava, para meu espanto, num par de pernas de anão que, se não fosse uma
blasfêmia, seríamos tentados a dizer quase ridículas”.
A descrição do pai
intelectual, fraco e pouco viril, e a do criador do novo judeu forte e viril
como uma caricatura do judeu da diáspora expressam a ética e a estética
sionistas adotadas pelo Estado de Israel. A postura eminentemente crítica do
pacifista Amós Oz nas passagens citadas também pode ser encontrada em seus
comentários sobre o mau leitor que está lendo o seu romance autobiográfico, o
leitor preguiçoso, sociológico, fofoqueiro e voyeur, que fica procurando a
essência da obra no espaço entre o texto e seu autor, e não entre o texto e o
leitor.
Usando a imagem de um
painel para colocar a cabeça e tirar fotos, Amós Oz sugere que “Em vez de
tentar enfiar lá a cabeça do autor, como costuma fazer o leitor banal, quem
sabe se você poderia enfiar na abertura a sua própria cabeça, e ver o que
acontece”.
“O mau leitor é
um tipo de amante psicopata que pula em cima e rasga a roupa da mulher que cai
em suas mãos. E quando ela já está completamente nua, ele continua em sua sanha
e arranca sua pele, impaciente, joga fora sua carne e, por fim, quando já está
chupando seus ossos com os dentes grosseiros e amarelados, só então é que se dá
por satisfeito: Cheguei. Agora estou dentro, bem dentro, por dentro. Cheguei.”
Vou me permitir fazer
uma nota no próprio texto, porque é mais política do que metodológica. Não leio
hebraico e utilizo as traduções em português e inglês. Na edição em português,
o item 5, dedicado ao mau leitor, ocupa seis páginas. Na edição em inglês o
item 6 ocupa o lugar do 5. Procurei incansavelmente os parágrafos sobre o mau
leitor na tradução em inglês e nada, custei a acreditar que todas as seis
páginas dedicadas ao mau leitor foram deliberadamente excluídas da edição.
O editor-in-chief certamente considerou de mau gosto e
censurou a crítica ao leitor, porque os norte-americanos não suportariam um
autor falar mal daquele que o está lendo. Conferi a edição em espanhol e ali
estavam as seis páginas na íntegra, todas as queixas do Amós Oz contra el
mal lector, el lector perezoso, sociológico, cotilla y mirón.
Mas voltemos ao Golem
fabricado de barro (adamá), tal qual Adão, “E o Eterno Deus formou o
homem do pó da terra” (Gênesis 2:7). Criado artificialmente pelo ser humano, o
estúpido gigante que se liberta do criador e se empenha em destruir o mundo é
uma ideia fixa, possível inspiração para o afamado Frankenstein de
Mary Shelley (1918), humanoides e androides, que continuam sendo reproduzidos
em Blade Runner de Ridley Scott (1982), The Terminator de
James Cameron (1984) etc.
Tal qual o Golem, o
Estado de Israel foi criado artificialmente para salvar a vida dos judeus do
antissemitismo. Tal qual o Golem, o Estado de Israel saiu do controle e tem
disseminado o medo, o pânico e a morte, inclusive entre os dissidentes
israelenses e judeus da diáspora que, apesar da igualdade de direitos a judeus
e não judeus constar de sua Declaração de Independência de 1948, ousam
discordar que Israel seja a única democracia do Oriente Médio.
¨ O judeu pós-judeu. Por Wladimir Safatle
“Em certos momentos,
face a acontecimentos públicos, sabemos que devemos recusar […]. Há uma razão
que não aceitamos, há uma aparência de razoabilidade que nos causa horror, há
uma oferta de acordo e de conciliação que não mais escutaremos”.
Essa é uma afirmação
de Maurice Blanchot que abre O judeu pós-judeu: judaicidade e
etnocracia. Ela expressa nitidamente a natureza desse livro, tão singular
quanto necessário.
A escrita da obra
nasce de uma recusa. Dois intelectuais judeus, um morando no Brasil – conhecido
como um dos grandes nomes da filosofia nacional, leitor rigoroso de Gilles
Deleuze, Michel Foucault, Friedrich Nietzsche, editor com intervenções
políticas maiores nesses últimos anos – e outro morando em Israel – dividindo
seu tempo como engenheiro com atuação no setor de alta tecnologia e ativista
ligado a ONGs de defesa de palestinos.
Dois intelectuais que
decidem usar sua capacidade analítica e sua memória histórica para recusar o
horror de ver o nome de seu pertencimento comunitário usado para nomear a
indiferença à violência do massacre.
O livro, nesse
sentido, não é apenas fruto de um gesto de recusa. Ele também nasce de um
desejo de resgatar um sentido emancipatório da experiência da judaicidade,
presente nessa impressionante tradição messiânica herética que vai de Franz
Rosenzweig a Walter Benjamin e Jacques Derrida, entre outros, mas que aparece
atualmente cada vez mais distante e silenciada. Tema esse também presente em
trabalhos maiores de outro intelectual vinculado a tal messianismo herético:
Michael Löwy.
Daí o par presente no
subtítulo do livro, “judaicidade e etnocracia”. Ele expressa o desejo de se
compreender como legatário de uma história de “sofrimento, perseguição, exílio,
fuga, sobrevivência” sem que tal legado se consolide na defesa de uma etnocracia
que usará a experiência do trauma social para justificar a militarização da
sociedade e práticas de apartheid, além da violência contra
palestinos e palestinas descrita, perante a Corte Internacional de
Justiça, como genocidária.
Há semanas, vimos
países como a França escaparem por pouco de serem, neste exato momento,
governados por um partido de extrema direita com vínculos orgânicos com o
colaboracionismo da República de Vichy, com o colonialismo e com discursos e
práticas abertamente racistas, xenófobas e supremacistas.
Não será um sintoma
menor ver esse mesmo partido mobilizar o discurso do antissemitismo contra seus
adversários de esquerda, em larga medida simplesmente comprometidos com a causa
palestina, e receber apoio aberto de setores expressivos da comunidade judaica
de seu país. Como se, para esses setores, estivéssemos diante de um “mal
menor”.
Haverá, contudo, quem
se pergunte como foi possível essa inversão que faz da extrema direita mundial
aliada objetiva das políticas hegemônicas na sociedade israelense
contemporânea, seja ela figurada em Marine Le Pen, Donald Trump ou Jair
Bolsonaro. Aqueles que lerem o livro de Laor e Pelbart, em vez de seguir esse
caminho macabro que vemos em analistas políticos brasileiros que procuram
normalizar a extrema direita, podem encontrar uma importante reflexão a esse
respeito.
A tese dos autores é
que o risco desse alinhamento com a extrema direita era uma possibilidade
sempre presente no projeto de constituição do Estado de Israel e sua
permeabilidade a acordos com forças teológico-políticas que visavam consolidar
um horizonte de etnocracia por meio daquilo que o livro chama de “combinação
explosiva entre halachá (a lei religiosa) e o Estado”.
Forças essas que
voltam hoje como operadores centrais do jogo político, o que coloca questões
importantes sobre a permeabilidade de nossas “democracias ocidentais” ao
horizonte teológico-político.
No entanto, longe de
apenas servir para a descrição de um caso específico e dramático, o livro
aponta para um problema ainda mais estrutural que diz respeito aos riscos e
limites dos usos de noções como identidade e trauma social no campo da política
contemporânea, principalmente quando esses usos são mobilizados para a
justificação da existência de um Estado.
Por isso, o livro de
Bentzi Laor e Peter Pál Pelbart
é um documento
fundamental para refletirmos sobre outras perspectivas políticas que, a partir
da experiência concreta da opressão, creem encontrar refúgio e horizonte de
luta mobilizando continuamente a identidade e a fidelidade ao trauma
irreparável.
De fato, a afirmação
da identidade pode inicialmente aparecer como modo de defesa contra
experiências de violência e vulnerabilidade. Ela permite a consolidação da
partilha da memória dos traumas sofridos, a construção de espaços de
identificação e de luto.
A identidade, porém
tem dois tempos. Há sempre o risco de ela paulatinamente se tornar um
dispositivo de imunização, principalmente quando gerida pela figura de um
Estado que se coloca como guardião do trauma coletivo. Pois, nesse caso, tudo
se passa como se o Estado começasse a dizer: “Fomos violentados uma vez,
ninguém velou por nós, temos, pois todo o direito de utilizar o que for
necessário para garantir nossa inviolabilidade e segurança contra todos os que
apareçam colocando novamente em risco nossa integridade”.
Pode-se dizer que essa
é uma premissa que constitui o direito de defesa próprio a todo e qualquer
Estado no mundo, mas seria o caso de lembrar, no caso da história recente
israelense, que nenhum direito de defesa significa direito de massacre, que há
um elemento importante a ser levado em conta quando a experiência do massacre
sistemático do outro produz em mim apenas a pura indiferença e insensibilidade,
além do desejo de definir quem irá ocupar minhas fronteiras.
Seria também o caso de
se perguntar se o argumento do direito de defesa continua a valer quando recebo
reações vindas de um território que ocupei ilegalmente
durante mais de 50 anos, ignorando de forma
soberana toda e qualquer lei internacional que me obriga à desocupação
imediata.
Daí uma colocação tão
central como esta que encontramos no livro: “Coabitar não é uma escolha, mas
sim uma condição da vida política. Os eventos posteriores a 7 de outubro
indicam que Israel quer decidir qual população não deve lhe fazer fronteira, e
já está em curso um movimento que reivindica a remoção da população de Gaza
[…]. Isso nada tem a ver com defesa, mas com despossessão”.
Ou seja, a
transformação do Estado em guardião do trauma social impede a consolidação de
uma disposição genérica que aponte para uma solidariedade indiscriminada com
toda situação de violência semelhante àquela sofrida, independentemente de quem
seja agora o oprimido.
Ela impede a
compreensão de que o sujeito capaz de guardar o trauma social não é o Estado,
mas algo como uma comunidade por vir, cujos limites ignoram as fronteiras e
permitem um verdadeiro internacionalismo monádico capaz de se implicar de forma
real com a alteridade e com a multiplicidade das vozes de suas dores.
Nesse sentido, o que
“O Judeu Pós-judeu”mostra é como situações históricas concretas fornecem a
oportunidade para a realização de horizontes de criação política. Criação
daquilo que não estamos dispostos a abandonar, mesmo que apareça no presente
como mera utopia.
A condição diaspórica
e nômade da judaicidade, sua errância e desterritorialização históricas são
transformadas pelos autores, seguindo reflexões de Hannah Arendt e Judith
Butler, em armas contra a consolidação de uma identidade guerreira e
militarizada, cada vez mais forte entre nós.
Elas são a potência a
ser recuperada para a consolidação de uma política pós-identitária que
ansiamos, que sentimos como uma latência dramática, continuamente silenciada
por aqueles que aprenderam a mobilizar os medos sociais no interior de uma
sociedade capitalista em crise profunda e que tenta sobreviver alimentando a
ideia de que devemos aceitar que não há lugar para todos, que melhor vale lutar
para ser o grupo restrito que irá atravessar o dilúvio.
A noção de um judeu
pós-judeu mostra como a reflexão, vivenciada dramaticamente pela subjetividade,
sobre o desconforto diante das desventuras da identidade, mas também sobre a
fidelidade ao pertencimento a uma história soterrada pelo presente é uma força
de abertura de futuros.
A mesma força que já
levou um dia Isaac Deutscher a afirmar: “Religião? Sou ateu. Nacionalismo
judaico? Sou um internacionalista. Em nenhum sentido, portanto, sou judeu.
Contudo, sou judeu pela força de minha solidariedade incondicional com os
perseguidos e exterminados. Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como
minha tragédia; porque sinto o pulso da história judaica”.
Como lembram os
autores, essa é uma força utópica que extrapola o destino singular de um povo.
Fonte: Por Samuel
Kilsztajn, em A Terra é Redonda
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