Como comunidades tradicionais aplicam
'economia feminista' para manter floresta amazônica em pé
Em meio aos impactos
que o Brasil vem enfrentando por eventos climáticos, como uma sequência de
secas históricas que atinge a Amazônia, um estudo inédito elaborado a partir do
convívio com comunidades tradicionais do bioma aponta um caminho para combater
o atual cenário.
Publicado em 5 de
setembro, dia da Amazônia, o livro Culturas Alimentares: um estudo sobre
comunidades amazônicas aposta "em uma outra economia" para garantia
de direitos básicos às populações da região.
O estudo, elaborado
pela Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase), foi
desenvolvido junto a comunidades agroextrativistas nos estados do Pará e Mato
Grosso, na Amazônia Legal.
Entre os pontos que o
trabalho defende está a compreensão da importância que as mulheres têm para
movimentar trocas entre as próprias famílias e com comunidades vizinhas.
"É preciso que a
gente dialogue com a concepção de economia feminista, por exemplo, que chama
atenção para o autoconsumo como parte da economia. A economia não se reduz a
uma relação monetizada", explica a autora Maria Emília Lisboa Pacheco, assessora
do Núcleo de Políticas e Alternativas (NuPa) da Fase, em entrevista ao programa
Bem Viver.
Além dela, o trabalho
é assinado por Rosângela Pezza Cintrão, pesquisadora associada ao Centro de
Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Ceresan) e
pós-doutoranda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
O estudo foi realizado
ao longo da execução do Projeto Amazônia Agroecológica, apoiado pelo Fundo
Amazônia, administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES).
Para detalhar o
conceito "economia feminista", a autora traz um exemplo do convívio
entre comunidades em um dos locais da pesquisa.
"É interessante,
no caso do Mato Grosso, em que as mulheres que migraram de outras regiões do
Brasil, junto com as que lá estão, estão fazendo o aproveitamento de produtos
locais como é, por exemplo, a produção de pães com mesocarpo do babaçu ou com a
farinha do pequi, que estão chegando nas escolas. É um alimento enriquecido com
essa composição, sem nenhum produto químico, e que as crianças apreciam
muito."
"São as mulheres,
sobretudo, que assumem a liderança na troca de sementes em todos os encontros
que ocorrem. Tem sempre as mulheres chegando com alguma semente, com alguma
muda, e trocando com outras, e essa circulação permite uma reprodução dessas sementes."
Outro exemplo que a
autora traz sobre o funcionamento de outras economias possíveis são as feiras,
comuns em centros urbanos, mas que ganham um outro contexto dentro da cultura
destas comunidades.
"No caso dessas
comunidades, nós precisamos entender que o princípio da reciprocidade alimenta
também essa economia e alimenta uma economia local", defende Pacheco.
"Por isso que
também chamamos a atenção no livro sobre a importância das feiras. Estamos
falando dos circuitos curtos, que trazem a possibilidade de relação direta com
consumidores, e isso é muito importante."
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Confira a entrevista na íntegra
• Qual foi o objetivo do estudo?
Nosso estudo foi feito
com comunidades agroextrativistas, famílias ribeirinhas, mas também
quilombolas.
A nossa perspectiva
era exatamente debater, conhecer, valorizar as culturas alimentares
tradicionais. Isso significa não perder de vista que uma alimentação de
qualidade também tem um sentido de preservação ambiental, de conservação da
biodiversidade, e, em resumo, de enfrentamento das mudanças climáticas.
É disso que trata essa
nossa publicação. Ao mesmo tempo que mostra que essa dinâmica depende também de
garantir os direitos territoriais, o direito à terra dessas comunidades.
Na Amazônia, existe o
que nós chamamos das formas tradicionais de uso da terra. Isso significa que
são famílias que têm os seus próprios estabelecimentos, seu cultivo de
alimentos em quintais produtivos.
Sendo que quintal na
Amazônia tem um sentido muito amplo, porque significa aquele espaço pequeno em
torno da casa, mas significa os vários lugares, sobretudo aqueles onde as
mulheres trabalham.
Assim como o trabalho
tem organização comunitária, na Amazônia, temos com muita frequência os
chamados mutirões, que é o trabalho coletivo nas comunidades. Ele ganha outro
nome em outros lugares, lá no Mato Grosso, numa comunidade quilombola, se chama
puxirum, por exemplo.
Por isso que nós
defendemos no livro que a garantia da alimentação de qualidade é parte da luta
pelo direito dos bens comuns. Mas a floresta não é um bem comum porque ela já
nasce com esse status. Ela é um bem comum em razão das regras estabelecidas de
convívio com a floresta.
Mas é importante
comentar que nós estamos observando que tem havido uma mudança nos atos
alimentares e há barreiras muito sérias para que seja garantido esse direito,
como nós dizemos, do direito ao gosto.
Isso é uma sabedoria
de não só acesso ao alimento, mas também de sua transformação.
Estamos falando de
barreiras como a expansão de grandes empreendimentos de logística para atender
ao crescimento do monocultivo da soja na Amazônia.
Muitas terras, que
eram terras de produção de alimentos, hoje, estão transformadas em terras que
produzem a mercadoria soja.
E também há uma
mudança do sentido dos rios. Nós até dizemos, há um livro antigo que se chama O
Rio Comanda a Vida, de Leandro Tocantins, e nós temos que nos perguntar se o
rio ainda comanda a vida.
Porque nós vemos
situações da água de rios contaminadas por mercúrio, em razão do garimpo, da
expansão da mineração, ou rios e igarapés contaminados por veneno, em razão da
expansão de monocultivos.
Isso está impedindo,
em muitos lugares, o acesso direto, por exemplo, ao peixe.
Mas queríamos também
chamar a atenção para a situação de seca. Não é apenas uma estiagem, nós temos
visto na Amazônia a situação de seca e isso traz um impacto sobre a variedade
dos alimentos, de sementes, de mudas.
É uma situação grave,
mas há uma luta permanente por assegurar esse direito a uma alimentação
variada.
E é importante nós
sabermos que as músicas, as danças, as festas, como a festa da mandioca, a
festa do açaí, são formas de resistência cultural para que se assegure a
reprodução das culturas alimentares.
Só que, apesar desta
cultura, quero lembrar que, tristemente, a Amazônia, a região Norte como um
todo, continua com o maior índice de fome e, para entender isso, é preciso
olhar muito de perto o que está se passando nesses territórios. Como a
devastação ambiental provoca também a fome ou os limites a uma alimentação
adequada e saudável.
• Então entender a mudança nos hábitos
alimentares é a aposta do estudo para discutir como chegamos neste ponto
crítico de mudanças climáticas?
Sim. Nós procuramos
mostrar que, primeiro, a gente precisa ressignificar o sentido, por exemplo, de
escala. Quando se fala em escala, em geral, é um conceito associado a uma
expansão de forma padronizada, homogênea, não só do mesmo produto, mas, às
vezes, da mesma variedade.
Isso é uma negação da
complexidade do que é a natureza e da relação desses povos com a natureza.
Escala precisa ser
ressignificada também em relação ao que é um policultivo. Ou seja, um cultivo
variado de alimentos e de coleta dentro de um determinado espaço.
Segundo: é preciso
também que a gente recomponha o sentido econômico. O que representa a economia
tem muitos sentidos. É preciso que a gente dialogue com a concepção de economia
feminista, por exemplo, que chama atenção para o autoconsumo como parte da economia.
A economia não se
reduz a uma relação monetizada. E, no caso dessas comunidades, nós precisamos
entender que o princípio da reciprocidade alimenta também essa economia e
alimenta uma economia local.
Por isso que também
nós chamamos a atenção no livro sobre a importância das feiras porque
defendemos como um princípio também da agroecologia que, para nós, deve ser o
futuro do mundo.
[Esse conceito],
aliás, tem a sua origem histórica em práticas de manejo de harmonia com a
natureza, exatamente como as comunidades tradicionais e povos originários
praticam.
Estamos falando dos
circuitos curtos, que trazem a possibilidade de relação direta com
consumidores, e isso é muito importante.
O consumidor passa a
ser quase que um coprodutor, porque a feira não é um lugar apenas onde se
compra, mas é um lugar onde se troca ideias, onde se conhece a origem do
alimento e movimenta a economia local, assim como os mercados institucionais.
Nós estamos insistindo
que o Estado deve se responsabilizar pela produção desses alimentos e o Estado
pode fazê-lo, e cada vez melhor, na medida em que a gente tem a expansão, por
exemplo, do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Aquisição
de Alimentos, o Programa de Preço Mínimo para os Produtos da
Sociobiodiversidade.
• Vocês citaram nos estudo barreiras que
essas comunidades vêm enfrentando para manter os hábitos alimentares
tradicionais. Poderia falar mais desse processo?
Quando eu digo que
está em curso uma mudança de hábitos alimentares na Amazônia e entre essas
comunidades é porque tem havido também o aumento dos produtos alimentícios
ultraprocessados.
Os produtos
ultraprocessados são aqueles que vêm de fórmulas da indústria. São artificiais
porque o gosto, a cor, a textura, são fruto de uma quantidade enorme de
produtos que também estão adoecendo a população.
E aí nós fizemos um
apelo. Fazemos um apelo no livro para que médicos, nutricionistas, cuidem de
olhar melhor o significado das culturas alimentares.
E nós dizemos isso
porque lá encontramos, por exemplo, restrição médica sobre o consumo da farinha
de mandioca. A farinha de mandioca é o pão da Amazônia.
E há crescentemente,
por parte de alguns médicos, a preocupação que a farinha esteja adoecendo,
provocando mal-estar, provocando até câncer. E nós estamos entendendo que é
preciso dizer de que farinha estamos falando.
Uma farinha produzida
artesanalmente não contém produtos químicos.
O que contém é a
farinha industrializada que tem corantes. Então, o apelo que nós fazemos é que
também é preciso estudar, conhecer melhor os impactos negativos desses produtos
químicos.
Porque, imagine, no
Baixo Tocantins, onde nós fizemos o estudo com muitas comunidades que tem o
consumo do açaí associado ao peixe ou ao camarão de rio e também à farinha de
mandioca...
E sabe o que acontece?
O risco é que o açaí ganhou uma expressão nacional e internacional. E nós
estamos muito atentos no trabalho educativo que a Fase faz de realçar a
importância do policultivo e não caminhar para uma expansão homogênea do
plantio do açaí, como se fosse uma monocultura, um monocultivo.
É importante que a
dieta seja associada do a outros alimentos, frutos que são tão importantes,
cupuaçu, bacaba, mangaba... São dezenas e dezenas de frutos que muitas vezes
nem são conhecidos em outros lugares do Brasil.
Por isso que também
estamos defendendo a composição da nova cesta básica, porque ela inclui uma
variedade grande de alimentos nos vários biomas
• Você citou de uma economia feminista, o
que precisamos entender disso?
Vamos trazer um
exemplo: o caso do Mato Grosso. Esse estudo foi feito exatamente onde há uma
transição de biomas. E aí o trabalho das mulheres tem sido muito
importante.
É interessante no caso
do Mato Grosso que as mulheres que migraram de outras regiões do Brasil, junto
com as que lá estão, estão fazendo o aproveitamento de produtos que conheceram
lá, como é, por exemplo, a produção de pães com mesocarpo do babaçu ou com a
farinha do pequi, que estão chegando nas escolas.
Então, é um alimento
enriquecido com essa composição, sem nenhum produto químico, e que as crianças
apreciam muito.
E são as mulheres,
sobretudo, que assumem a liderança na troca de sementes em todos os encontros
que ocorrem. Tem sempre as mulheres chegando com alguma semente, com alguma
muda, e trocando com outras, e essa circulação permite uma reprodução dessas
sementes.
Sobretudo nesse
momento em que assola a seca, incêndios, muitas vezes criminosos, essa
conjungação com a destruição ambiental, em razão da expansão de mineração, e
também de monocultivos, esse papel das mulheres tem que ser reconhecido. O
direito delas de se auto-organizarem, de conseguirem a sua autonomia política e
econômica.
E, no Brasil, um país
patriarcal, existem muitos preconceitos, muitas formas de violência contra as
mulheres. Por isso, o trabalho da Fase também associa essa perspectiva
socioambiental como uma perspectiva sociopolítica centrada nos direitos.
Para nós, não haverá
mudanças sem nos basearmos no direito dessas populações, na defesa delas e no
apoio para que elas continuem se organizando e reivindicando do Estado o
reconhecimento de seus direitos.
Fonte: Basil de Fato
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