Após tragédia, clima entra nos planos de candidatos a Porto Alegre, mas com limitações
As chuvas que
atingiram Porto Alegre e o Rio Grande do Sul entre abril e maio deste ano
deixaram um rastro de destruição e de mortes, expondo falhas no sistema de
proteção contra enchentes da capital gaúcha e a incapacidade do poder público
local de lidar com os efeitos da crise climática. Ao menos no papel, a dimensão
da tragédia fez com que o assunto ganhasse relevância inédita na disputa
eleitoral porto-alegrense, com a maior parte dos candidatos à prefeitura
abordando ao menos uma parcela da pauta climática com centralidade em seus
programas de governo.
A Agência Pública leu
os planos registrados na Justiça Eleitoral dos quatro candidatos ao comando da
capital gaúcha mais bem posicionados nas pesquisas, além de acompanhar os
debates promovidos pela Rádio Gaúcha, em 6 de agosto, e pela Rede Bandeirantes,
dois dias depois. Também ouviu pesquisadores em hidráulica, comunicação de
riscos e direito dos desastres, que avaliaram os pontos principais dos
programas de governo dos candidatos com maior intenção de voto.
Os especialistas
apontam que a maior atenção para a pauta climática é positiva, mas dizem que há
limitações nas propostas apresentadas pelos candidatos. E que há dúvidas se as
medidas serão efetivamente implementadas.
O foco de todos eles
tem sido na reconstrução e modernização do sistema de diques de contenção e
casas de bombas que protege Porto Alegre e que se mostrou insuficiente nas
enchentes deste ano. As variações são sobre o tipo de obra defendida por cada
candidato e há discordâncias sobre o fortalecimento ou a privatização do
Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), órgão atualmente responsável
pelo sistema.
As soluções técnicas
para o sistema de proteção que aparecem nos programas dos candidatos – muitas
delas formuladas junto a especialistas no tema – foram consideradas positivas
por Guilherme Marques, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas ele pondera que essa política tem de
ser pensada como algo a ser constantemente atualizado, conforme as condições
climáticas forem mudando.
<><> Por
que isso importa?
• Tragédia que afetou praticamente o Rio
Grande do Sul inteiro e causou comoção nacional foi incorporada pelos
candidatos à prefeitura da capital, que trazem propostas mais ou menos
concretas para lidar com a mudança do clima.
• Propostas, porém, não deixam claro como
as medidas serão implementadas ou atualizadas conforme a piora do clima; planos
trazem poucas medidas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
Segundo Marques, falta
atenção às ações mais ligadas à governança, como planos de contingência,
revisão do Plano Diretor, criação de órgãos voltados para a questão do clima e
implementação de sistemas de monitoramento e alerta.
“Neste segundo
conjunto de medidas, as propostas tendem a ser mais genéricas, sem muitos
detalhes sobre como serão implementadas e especialmente como serão financiadas
e articuladas com a estrutura de governança já existente”, aponta o
pesquisador, que é coordenador do Núcleo de Pesquisa em Planejamento e Gestão
de Recursos Hídricos da UFRGS.
Na visão de Marques,
antes de pensar em obras, o prefeito eleito vai precisar ter pessoal
qualificado e recursos financeiros nos órgãos de governança. “[Sem isso,] não
teremos, no futuro, os recursos necessários para manter e atualizar as
soluções. Soluções precisam ser atualizadas porque sempre existem incertezas
quanto ao clima e meio ambiente e porque nosso conhecimento é imperfeito”,
afirma.
Fernanda Damacena,
advogada e consultora especialista em direito dos desastres, meio ambiente e
mudanças climáticas, também critica a pouca profundidade das propostas.
“Precisamos de planos mais detalhados, que levem em consideração o
gerenciamento de riscos e desastres de maneira ampla e tragam à população
clareza em relação a questões como tempo de implementação e recursos
financeiros que as tornarão efetivamente exequíveis”, afirma.
A professora Eloisa
Beling Loose, da UFRGS, que pesquisa comunicação e mudanças climáticas, lembra
que o estado já passou por outras situações de desastres, mas os governos
anteriores tiveram poucas medidas efetivas para evitar que eles ocorressem
novamente.
“Estamos em um momento
em que a pauta tem apelo porque muitos ainda vivem os efeitos do desastre
climáticos, mas é preciso ficar atento para ver o quanto as promessas
associadas ao enfrentamento das mudanças climáticas serão, de fato, priorizadas
na [próxima] gestão”, diz.
Até o momento, o
prefeito Sebastião Melo (MDB) está à frente nas pesquisas eleitorais.
Levantamento realizado pela Real Time Big Data e divulgado na última terça (3)
aponta Melo com 40% das intenções de voto. Logo depois vem a deputada federal
Maria do Rosário (PT), com 32%. A margem de erro é de 3 pontos percentuais.
Juliana Brizola (PDT), também deputada federal, vem na sequência com 13%,
enquanto o deputado estadual Felipe Camozzato (Novo) registrou 4%.
<><> Melo
nega responsabilidade pela tragédia e foca em ações já tomadas
Candidato à reeleição,
Sebastião Melo dedica boa parte das 27 páginas de seu plano de governo a
enaltecer os feitos de sua gestão. O candidato enfatiza as ações tomadas pela
prefeitura no pós-enchente, incluindo o resgate e o acolhimento de moradores
das áreas mais criticamente afetadas, medidas habitacionais e de socorro
financeiro. Ele afirma ter destinado mais de R$ 800 milhões em ações em seis
eixos, entre eles a reconstrução de equipamentos públicos destruídos pelas
chuvas e uma série de medidas tributárias.
Nos debates promovidos
pela Band e pela Rádio Gaúcha, Melo defendeu as ações de seu governo e fez
críticas à atuação do governo federal, rechaçando as acusações de Maria do
Rosário e de Juliana Brizola de que sua gestão tem responsabilidade na dimensão
da crise que atingiu a capital gaúcha.
Segundo um grupo de 42
especialistas, no entanto, o sistema de proteção falhou porque não recebeu as
manutenções permanentes necessárias por parte da prefeitura. O orçamento
destinado para “melhorias no sistema contra cheias” foi de R$ 0 em 2023, como
revelou o UOL – à época, a prefeitura alegou investimentos em outras áreas que
se relacionam com o combate às enchentes. O município contabilizou cinco mortes
e 46 bairros foram afetados, sendo que alguns deles ficaram debaixo d’água por
mais de um mês.
Em seu plano de
governo, o candidato à reeleição destaca o investimento em andamento de “um
conjunto de R$ 510 milhões em obras de reconstrução de drenagem e segurança
hídrica” e o desenvolvimento de um plano de ação climática que sua gestão está
conduzindo em resposta às enchentes. Ele promete medidas junto à Defesa Civil,
como a criação de um sistema de medição e alerta de riscos, a atualização do
plano de contingência e a implementação de um centro de monitoramento e
previsão do tempo.
Em Porto Alegre, o
setor de energia, que inclui transportes, representa 58,3% das emissões de
gases do efeito estufa – os responsáveis pelo avanço das mudanças climáticas. O
setor de resíduos representa 32,9%, e a agropecuária e a mudança de uso da
terra somam juntas 8,8%, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e
Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg).
O programa de governo
do emedebista não fala diretamente das causas das mudanças climáticas, trazendo
como principal proposta de redução de emissões a ampliação da frota de ônibus
elétricos, sem especificar quanto. Há 12 veículos do tipo na cidade atualmente.
Não há medidas relacionadas ao setor agropecuário. No setor de resíduos, o
plano defende apenas parcerias público-privadas na coleta de lixo e na
destinação de resíduos.
Para Eloisa Beling
Loose, da UFRGS, pouco se fala das causas da crise climática, durante e fora do
período eleitoral. “A população sabe o que são esses gases [do efeito estufa]?
Onde eles estão? Quais atividades são mais emissoras? O que deve ser feito para
reduzi-los ou evitá-los? Se queremos fugir dos piores cenários já traçados
pelos cientistas do clima, falar sobre o que nos trouxe até aqui é relevante”,
aponta.
Ainda que não dê “nome
aos bois” da crise climática, a atenção dada à pauta no plano de governo de
Melo em 2024 contrasta positivamente com o programa que ele registrou em 2020,
quando venceu a eleição no segundo turno contra Manuela d’Ávila (PCdoB) com 54,6%
dos votos.
Na época, o plano de
Melo não fazia nenhuma menção aos recorrentes problemas da capital gaúcha com
as chuvas. As únicas propostas relacionadas à questão climática eram recuperar
as nascentes do Guaíba e dar descontos no IPTU para imóveis que adotassem medidas
de sustentabilidade ambiental. Segundo monitoramento do G1, o prefeito cumpriu
parcialmente o primeiro plano e integralmente o segundo.
Em seu programa de
2020, Melo defendia também o autolicenciamento ambiental. Nessa modalidade, o
empreendedor se compromete a respeitar as normas ambientais e o poder público
apenas atua como órgão fiscalizador, sem realizar análise prévia. A medida é criticada
por especialistas por ir de encontro aos princípios da precaução e da
prevenção, já que danos ambientais são frequentemente irreversíveis, e é
necessário evitar que eles ocorram, e não apenas atuar quando eles já
ocorreram.
Um projeto de lei
instituindo a medida foi aprovado no final de 2020 – com voto favorável do
candidato à prefeitura do Partido Novo, Felipe Camozzato, então vereador – e
sancionado por Melo no início de seu governo. Medida semelhante foi sancionada
pelo governo estadual de Eduardo Leite (PSDB) e há um projeto de lei com essa
proposta tramitando no Congresso Nacional.
<><>
Rosário fala em “cidades-esponja” e defende transição energética
Favorita a enfrentar
Sebastião Melo em um segundo turno da eleição de 2024, a deputada petista Maria
do Rosário aborda a questão climática na maior parte das 57 páginas de seu
plano de governo, denominado “POAção”. Logo na introdução, a candidata afirma que
a tragédia foi construída pelo “negacionismo e imobilismo diante das mudanças
climáticas” e pelo “desmonte da gestão pública, desvalorização de seus peritos,
técnicos e engenheiros”.
Entre os planos de
governo dos principais candidatos, o de Rosário é o que mais claramente
reconhece as mudanças climáticas como “uma realidade”. Ela aponta que é
fundamental a adoção de “medidas de mitigação, adaptação, proteção e também de
recuperação” para que Porto Alegre se torne menos vulnerável a eventos
climáticos.
A candidata defende a
“modernização e manutenção do sistema de contenção de enchentes”, a adoção de
estratégias como as das chamadas “cidades-esponja”, que usam soluções baseadas
na natureza para absorver as águas da chuva, e medidas para fazer frente à nova
realidade climática, como a recuperação de áreas verdes degradadas, educação
ambiental e transição energética.
O programa de governo
da petista propõe a formulação de um plano de contingência para enfrentamento
de eventos extremos com participação da sociedade, a reestruturação do Dmae e a
criação de uma estrutura pública dedicada à drenagem e proteção, nos moldes do
Departamento Municipal de Esgotos Pluviais (DEP), extinto em 2017.
No campo da habitação,
Rosário defende que haja a remoção de famílias de áreas de risco de maneira
dialogada e, em casos específicos, com a adoção de medidas para evitar novas
ocupações.
Nos debates, Rosário
disparou contra a atuação do atual prefeito e defendeu a participação do
governo Lula (PT) frente à tragédia climática que acometeu Porto Alegre,
prometendo agir em conjunto com o governo federal na reconstrução da capital
gaúcha. A candidata foi a única a falar em sustentabilidade, transição
energética e em emissões de gases do efeito estufa ao longo dos debates.
<><>
Brizola e Camozzato discordam sobre futuro do Dmae
Terceira colocada nas
pesquisas, Juliana Brizola (PDT) também abordou o tema de maneira recorrente ao
longo de seu programa de governo, que tem 55 páginas. O programa da deputada
federal para 2024 é bem mais focado na questão climática do que o de 2020, quando
o problema dos alagamentos e propostas ambientais apareceram timidamente. Ela
ficou em quarto na ocasião, com 6,4% dos votos.
O programa de Brizola
para esta eleição traz propostas para a recuperação e modernização do sistema
de proteção contra enchentes e a criação de um sistema de monitoramento e
alerta integrado, de uma gerência do clima no Dmae e de um departamento de
resiliência e proteção contra as cheias.
A pedetista defende
ainda a atualização do plano diretor de drenagem urbana da capital gaúcha e a
formulação de uma estratégia metropolitana de resiliência e adaptação às
mudanças climáticas, em conjunto com municípios vizinhos a Porto Alegre, além
de projetos de infraestrutura verde para redução de ilhas de calor.
A mitigação aparece
somente em proposta de eletrificação da frota de ônibus. A candidata não aborda
as causas das mudanças climáticas.
Um dos principais
projetos de Brizola, defendido tanto no plano de governo quanto nos debates, é
a criação de um fundo emergencial de R$ 50 milhões para socorrer micro e
pequenos negócios afetados pelas enchentes, com crédito subsidiado e sem juros.
Na área econômica, ela defende ainda redução de IPTU nos bairros mais afetados
e repactuação de dívidas fiscais.
Já o candidato do
Novo, Felipe Camozzato, tem como uma das principais bandeiras a privatização
integral do Dmae, com a utilização dos recursos arrecadados na reconstrução e
modernização do sistema de diques e bombas da capital, que ele considera mal
executado. O deputado propõe ainda processar o governo federal “para buscar
ressarcimento e atribuição de competência em relação ao sistema de proteção
contra enchentes”.
Camozzato defende
fortalecer a Defesa Civil municipal e a “capacitação de lideranças locais nas
áreas de risco para atuar em conjunto” com o órgão, assim como a revisão e
consolidação dos planos de contingência e de gestão de risco de Porto Alegre.
Ele propõe investimentos em bacias de amortecimento de cheias, redução de
impostos e a realocação de famílias que estão em zonas de risco. Defende também
um sistema de monitoramento com alertas em tempo real.
O programa de governo
do candidato do Novo reconhece que as mudanças climáticas são “ocasionadas por
fatores como as ações antrópicas” e que isso tem provocado “um aumento da
intensidade e da frequência de eventos extremos”. Camozzato não propõe, no entanto,
ações de redução das emissões do município.
<><> Outro
lado
A Pública contatou as
assessorias de imprensa dos quatro candidatos. Até a publicação, apenas Felipe
Camozzato e Maria do Rosário deram retorno.
O candidato do Novo
afirmou que “o papel do prefeito é atuar tanto na prevenção quanto na mitigação
dos riscos e dos impactos” e ressaltou que “é essencial colocar as pessoas
certas nos lugares certos, garantindo uma administração focada em resultados”. Camozzato
apontou também a importância de “se criar uma estrutura que vá além do nível
municipal” no que diz respeito ao sistema de proteção contra enchentes,
envolvendo governos estadual e federal.
Em relação a seu voto
favorável ao projeto de autolicenciamento, defendeu a medida que, em sua visão,
“não se contrapõe ao desenvolvimento sustentável, pois é aplicado para
atividades de baixo risco ambiental”. Questionado sobre propostas na área da
mitigação das mudanças climáticas, Camozzato defendeu medidas de adaptação,
como parques e áreas verdes que acumulam água e diminuem os riscos de
inundações. Leia a íntegra da resposta.
Já Maria do Rosário
afirmou que “pensar um projeto de cidade com sustentabilidade socioambiental e
qualidade desde o primeiro momento está no centro” suas preocupações como
candidata, destacando medidas que tomou como deputada nessa seara. A candidata
do PT afirmou que, caso eleita, vai trabalhar para efetivar as propostas
relacionadas ao clima “desde a transição” e criticou a “irresponsabilidade na
gestão financeira da atual administração”.
Fonte: Por Rafael
Oliveira, em Agência Pública
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