Matemático supera obstáculos da escola
pública e tem melhor tese de doutorado do Brasil
"É necessário
sempre acreditar que um sonho é possível / Que o céu é o limite / e você,
truta, é imbatível", cantou Mano Brown na música 'A Vida é Desafio', do
grupo Racionais MCs. O trecho é um dos lemas de Reinaldo Resende, conforme diz
em seu perfil no site da Universidade Carnegie Mellon. De fato, o matemático
nascido no bairro do Capão Redondo, em São Paulo, acreditou que era possível e
foi honrado com o prêmio de melhor tese de doutorado da área no Brasil. Hoje,
ele se dedica a vida acadêmica nos Estados Unidos.
Para chegar ao patamar
do reconhecimento, o paulistano de 28 anos contou com a confiança da família e
amigos, mas também enfrentou obstáculos. O principal deles foi a falta de
incentivo ao longo da formação em escola pública.
"Tive uma
trajetória bem incomum, digamos, no mundo da ciência, porque geralmente o
pessoal nesse mundo vem com um estudo muito forte desde a infância, desde o
ensino fundamental, médio e tudo mais. Eu comecei nas escolas públicas, que no
Brasil são bem complicadas", explica ele ao Terra. "Então, o ensino
fundamental e o ensino médio, assim, em muitas disciplinas eu não tive
professor e tudo mais. Mas era uma escola muito boa na minha região. Era uma
das melhores escolas, mas não tinha esse incentivo".
Mesmo com as
dificuldades do ensino público, nunca faltou apoio dentro de casa. O pai, José
Resende, e a mãe, Mônica Aparecida, não concluíram o ensino fundamental, no
entanto, sempre souberam a importância dos estudos na vida do filho.
"Eles sempre
priorizaram os meus estudos. Sempre falaram: 'Foca nos estudos'. Quando eu
trouxe essa ideia de fazer um cursinho pré-vestibular, ao invés de começar a
trabalhar diretamente, fazer uma faculdade, que é o caminho tradicional, em
nenhum momento eles sequer tiveram receio, medo ou qualquer palavra negativa.
Foi tipo assim: 'É isso que você quer? Vamos sentar e vamos ver o jeito que a
gente vai fazer pra isso acontecer'. Eles sempre me ajudaram", conta o
autor da melhor tese de doutorado do País.
• Relação com os estudos e mudança de
chave
Nascido em uma família
simples no bairro do Capão Redondo, em São Paulo, Resende passou a infância e
adolescência lidando com a falta de estrutura em escolas públicas da região.
Por si só, essa origem é fora do habitual entre aqueles que escolhem a carreira
da pesquisa, conforme conta.
Outro obstáculo que
precisou enfrentar foi o pensamento dominante na época: o de que bastava
concluir os estudos iniciais e seguir para o mercado de trabalho, afinal, o
mais importante era ajudar o pai e a mãe nas contas da casa.
"Era mais aquela
ideia de começar a trabalhar o mais rápido possível. Fiz ensino médio noturno
para conseguir trabalhar durante o dia, ajudar meus pais nas contas de casa,
essas coisas, porque minha mãe sempre foi dona de casa e meu pai, segurança. Então,
as contas sempre eram apertadas. Até o ponto do ensino médio, meus estudos
foram bem superficiais. Foi bem só, tipo, concluir, arrumar um emprego e
continuar a vida", continuou o pesquisador.
Por um tempo, isso foi
realmente o que aconteceu. Ainda no ensino médio, Resende ingressou no Programa
Jovem Cidadão e começou a trabalhar em uma empresa farmacêutica, onde auxiliava
os estagiários.
Foi justamente um
desses profissionais que ajudou o hoje matemático a mudar o modo como encarava
os estudos. Segundo ele, um amigo de trabalho começou a dar conselhos sobre a
importância da vida acadêmica, o que na época parecia distante para o adolescente
do Capão Redondo.
"Criei muita
amizade com um cara chamado Gabriel Higa, que era estagiário e depois virou
contador. Ele se formou na USP [Universidade de São Paulo], sempre teve um
background de estudo, da família e tudo mais. E ele me ajudou muito, me
apresentou muito esse novo mundo. Ele falou: 'Cara, gasta alguns anos
estudando, por mais que agora vai ser mais difícil, você não vai trabalhar, não
vai ganhar muito bem quanto as outras pessoas, mas lá no futuro vai pagar.
Tenta estudar, tenta entrar numa universidade um pouco mais prestigiosa, porque
agora vai ser um pouco mais complicado, mas depois vai ter o retorno'",
lembra.
Com a conclusão do
ensino médio, em 2012, Resende deixou o trabalho de lado no ano seguinte e
focou nos estudos dentro do cursinho pré-vestibular popular da Poli-USP, em
Santo Amaro.
"Daí, eu comecei
a estudar de verdade. Lá no cursinho da Poli, vi como a galera se dedicava aos
estudos, eu entendi como que era essa coisa de entrar em universidade pública,
a diferença que faz lá na frente. E aí eu comecei a me dedicar muito pesadamente
aos estudosdepois do ensino médio, no cursinho pré-vestibular", destaca.
O ano dedicado apenas
ao cursinho foge um pouco do "caminho tradicional", conforme o
próprio Resende explica. No entanto, não faltou apoio do pai e da mãe na hora
de tomar a decisão.
"Esse [apoio nos
estudos] é um dos principais motivos que eu sempre agradeço, porque nenhum dos
dois tem estudo. Meu pai parou na 1ª série, já começou a trabalhar com 10 anos,
eu acho. Ele era da Roça. E minha mãe fez até a 5ª série, e também parou os
estudos. Então, eles têm uma relação quase zero com estudos. Porém, eles sempre
priorizaram os meus estudos", conta.
Além dos pais, já em
outra fase da vida, quem também apoiou a opção de Resende pela vida acadêmica
foi a esposa, Ingrid Verena.
"Ela me ajudou
durante o processo inteiro, abdicou de várias coisas para me dar a oportunidade
de focar 100% no meu trabalho", acrescenta.
• Decisão pela pesquisa
Por influência do
amigo, Resende queria mesmo era seguir carreira na área de economia durante o
período de inscrições para os vestibulares. Porém, a mudança na escolha e a
decisão pela matemática aconteceram graças à admiração por dois professores do
cursinho.
"Até durante o
cursinho pré-vestibular, a maior parte do ano, eu estava pretendendo aplicar
para economia. Só no final do ano, lá umas semanas antes da FUVEST, que eu
mudei, coloquei matemática primeiro, engenharia segundo. Porque eu conheci uns
professores no cursinho da Poli, a Thaís e o Eduardo, que eram professores
sensacionais, os dois de matemática. E eles me despertaram a vontade de
entender matemática muito grande", conta.
Já na universidade,
Resende tinha dois caminhos para seguir: a vida acadêmica dedicada às pesquisas
ou o trabalho em empresas, principalmente em bancos. Como é de se perceber, a
escolha foi pelos livros, e aconteceu de maneira gradual ao longo da graduação.
"Quando eu
comecei a faculdade, eu vi que eu estava me sentindo muito feliz de estudar, e
não era o mesmo sentimento que eu sentia quando eu trabalhava. Durante a
faculdade, foi passando o tempo e eu vi que era uma escolha de ir para a
indústria e tentar fazer muito dinheiro, como matemático em banco, essas
coisas, ou ser feliz, que é onde eu encontrei minha felicidade nos estudos.
Fazer menos dinheiro, mas ainda assim ter a felicidade. Então, foi uma coisa
gradativa durante a graduação", acrescenta.
• A tese vencedora
Mais do que
felicidade, o foco na carreira acadêmica lhe rendeu o Prêmio Professor Carlos
Teobaldo Gutierrez Vidalon 2024, com a tese 'Alguns resultados de regularidade
em teoria geométrica da medida', que desenvolveu no Programa de Pós-Graduação
em Matemática do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP. A
argumentação foi orientada por Stefano Nardulli, da Universidade Federal do ABC
(UFABC), e coorientado por Camillo De Lellis, da Princeton University.
Para explicar sua
tese, Resende usou de exemplos do dia a dia, como a simples brincadeira de
bolhas de sabão.
"Quando você
assopra a bolha de sabão, às vezes você vê aquelas bolinhas bonitinhas, né?
Mas, de vez em quando, você assopra as bolhas de sabão e forma, tipo, duas
bolinhas conectadas. E para você aplicar a teoria clássica de matemática,
física ou até de engenharia, matemática aplicada e tudo mais, essas coisas são
muito mais complicadas, porque você tem as coisas que a gente chama de 'quina'.
Então, você tem uma bolinha, você tem uma coisa 100% redonda, super suave.
Quando você tem duas bolinhas conectando, você tem umas quinas, assim, tipo um
'V', sabe? Onde elas se conectam", iniciou a explicação.
Situações como a usada
pelo matemático na explicação também acontecem em outros campos. Essa
ocorrência dificulta a aplicação de métodos matemáticos e físicos, até resolver
problemas de engenharia.
"Então, o que a
gente tenta fazer é: 'Ok, esses objetos são mais complicados de se entender,
porém, nos contextos que a gente quer aplicar, eles não deveriam ser tão
complicados'", diz.
Com sua tese, Resende
ajuda a levar propriedades da matemática para profissionais de outras áreas.
"A teoria que eu
faço e parte da minha tese é: se você tem um contexto suficientemente bom, onde
a gente quer aplicar na engenharia, nas finanças, nessas coisas, esses objetos
são diferentes do que a gente está acostumado, mas, ainda assim, a gente consegue
aplicar muita coisa da teoria que os engenheiros sabem aplicar, o pessoal da
economia, da administração, sabem aplicar. Então, é tentar trazer dessa
abstração matemática propriedades mais aplicáveis para pessoas de outras áreas,
digamos assim", explica
Além da certificação,
o autor do trabalho recebe o valor de R$ 3 mil. Embora soubesse da nomeação e,
consequentemente, da chance da conquista, o matemático ficou surpreso com a
concretização da vitória.
"Foi muito louco.
Eu não estava esperando muito. Assim, o Brasil é um país muito forte na
matemática, as pessoas não sabem muito disso, mas o Brasil é reconhecido
mundialmente em várias áreas da matemática. Então, apesar de a gente não ter
muito incentivo do governo na ciência, a gente faz muito bem na matemática,
mesmo assim. E eu pensei: 'Pô, sou mais um cara que está fazendo minha tese
aqui, tem um monte de gente forte'. Me nomearam lá para o prêmio, mas não
esperava que isso ia acontecer", admite.
Na correria do dia em
que recebeu a notícia, o acadêmico sequer teve tempo para comemorar. Ao receber
o email do anúncio, ele apenas avisou à esposa e aos pais e logo entrou na sala
de aula para trabalhar;
"Foi uma coisa
que eu nem consegui ter uma reação na hora. Abri meu e-mail antes de dar aula,
e estava lá a premiação, saí para dar aula. No momento, foi bem assim. Primeiro
eu mandei para a minha esposa e para os meus pais, e fui dar aula. Depois de
dar aula, eu sentei e fui almoçar. Eu falei: 'Porr*, ganhei um prêmio'. Estava
no trabalho, então controlei o choro e tudo, mas a felicidade foi imensa",
relembra.
Atualmente, ele vive
nos Estados Unidos e continua os estudos com pós-doutorado na Universidade de
Carnegie Mellon, em Pittsburgh. Por lá, o matemático encontra condições de
trabalho melhores do que as que teria em sua área no Brasil.
"Para jovens como
eu, pessoas que estão acabando o doutorado agora, honestamente, a única
motivação que tem para ficar no Brasil é a cultura e a família, porque as
oportunidades que você tem fora, tanto na Europa, mas principalmente nos
Estados Unidos, são absurdamente distantes. Você tem muito mais oportunidade de
emprego, ganha muito melhor, as condições de trabalho são muito melhores
também. Então, apesar de o Brasil ser muito forte na matemática, a falta de
incentivo na ciência no Brasil faz com que os jovens queiram sair para buscar
esse incentivo em algum outro lugar", completa.
Agora, Resende se
prepara para voltar para um curto período no Brasil. No dia 23 de setembro, ele
estará em São Carlos, no interior de São Paulo, para receber o prêmio
Gutierrez. Ainda na cidade, ele dará início a uma série de palestras que
passarão por São Paulo e Rio de Janeiro, antes de voltar para os Estados
Unidos.
Fonte: Redação Terra
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