Máquinas que cuidam? Leveza e dureza na
saúde digital
Em uma contribuição
clássica da Saúde Coletiva para pensar as tecnologias em saúde, sobretudo no
contexto do processo de trabalho em saúde, Emerson Merhy e Túlio Franco
trouxeram um olhar sob a ótica da micropolítica dos processos de trabalho. Os
médico e intelectuais sanitaristas propuseram que o trabalhador da saúde, para
atuar, “utiliza três tipos de valises: uma, vinculada à sua mão e na qual cabe,
por exemplo, o estetoscópio, bem como o ecógrafo, o endoscópio, entre vários
outros equipamentos que expressam uma caixa de ferramentas tecnológicas formada
por tecnologias duras; outra, que está na sua cabeça, na qual cabem saberes bem
estruturados como a clínica e a epidemiologia, que expressam uma caixa formada
por tecnologias leve-duras; e, finalmente, uma outra, presente no espaço
relacional trabalhador–usuário, que contém tecnologias leves implicadas com a
produção das relações entre dois sujeitos, que só tem materialidade em ato”.
Como toda tecnologia é
sociotécnica – ou seja, relacional –, nenhum objeto técnico é duro, leve-duro
ou leve per se. As valises com suas durezas ou levezas variam em acordo com o
contexto, com as relações e sujeitos que as agenciam. Em tempos de “saúde digital”
algumas transformações parecem nos convidar a algumas boas e – julgo eu –
urgentes questões. Vamos por partes!
Quando pensamos numa
valise de “tecnologias duras” – tensiômetro, tomógrafo, estetoscópio etc. – sob
o prisma da “saúde digital”, já é possível afirmar que, em muitos casos,
nenhuma pessoa na condição de trabalhador da saúde (médico, enfermeiro etc.)
precisa estar diretamente presente no encontro profissional-paciente para que
os dados clínicos do paciente sejam coletados ou mesmo uma intervenção seja
realizada. Hoje as tecnologias duras de um smartphone permitem coletar e
processar tanto imagens quanto dados físicos e exames laboratoriais, entre
outros. Do mesmo modo, robôs já fazem cirurgias, caixas-eletrônicos já realizam
diagnósticos…
É certo que, para
serem realizados, além do trabalho morto das máquinas, estes objetos técnicos
consomem o trabalho vivo de seus “operadores” com seus saberes e suas ações à
distância e/ou assíncronas. Mas, ao falarmos de tecnologia dura, enfatiza-se a
captura do momento vivo do processo de trabalho pelo trabalho morto do objeto
técnico. O/a médico/a que usa o estetoscópio analógico para captar os
batimentos cardíacos – mas nem sequer escuta atenciosamente o paciente, nem
sequer olha no olho de quem cuida e tampouco o toca efetivamente – tem no
encontro profissional-paciente um coeficiente em que predomina a dureza das
máquinas, das tecnologias duras. Ou seja, a máquina é neste caso a protagonista
do encontro; como suporte do capital é ela quem rege o tempo e a qualidade da
relação, com a dureza das coisas sem vida e, sobretudo, sem a pessoalidade que
requer o vínculo do cuidado.
Pensemos então num
estetoscópio digital, capaz de auscuta cardíaca e pulmonar sem o ouvido do
profissional, conectado na internet e transmitindo tais dados para um arquivo
na tag do perfil do paciente e armazenado em uma “nuvem” qualquer. Além do
trabalho morto contido no objeto técnico, a produção destes dados clínicos
estará consumindo o trabalho vivo de um novo “operador”, o próprio
usuário-paciente. Essa questão tanto faz sentido que, sem nos aprofundarmos,
basta lembrarmos que há décadas assistimos ao debate sobre a produção dos dados
no “capitalismo digital” a partir de formulações conceituais como os
prosumidores. Em resumo, para se referir às atuais possibilidades de o próprio
ato de consumo de algo – por exemplo de um estetoscópio digital de autominotoramento
– ser ele mesmo atividade produtiva de dados pessoais realizadas pelo
produtor-consumidor, dados que são armazenados e processados por inúmeras
empresas com fins de acumulação de capital.
Com isso em mente, vem
à cabeça: estaria a dureza de tais objetos técnicos invadindo o cuidado de si?
Ou estaríamos colocando nas mãos de qualquer cidadão leigo o saber-fazer de um
profissional? Seriam com isso os usuários-pacientes mais responsáveis e protagonistas
da sua saúde, mais autônomos? Ou estaríamos atribuindo responsabilidades
indevidas a um leigo? Quem seria o efetivo responsável pela produção desses
dados e qual seria a contrapartida de tal produção?
Agora olhemos para as
tecnologias leve-duras. Os sanitaristas se referem a elas para dizer sobre a
“valise da cabeça”, pois são elas que permitem “o recorte” que o “olhar do
médico sobre o usuário, enquanto objeto de sua intervenção”, produz e, então,
permite capturar o “mundo” e as “necessidades” do paciente “sob uma forma
particular de significá-lo”. A epidemiologia, a clínica médica, a psicanálise,
os questionários, os prontuários, os protocolos etc. são suas sedimentações
como “saberes bem definidos”, que na cabeça do profissional funcionam como
“trabalho morto” e que, portanto, é nela que encontramos o lado duro desta
caixa de ferramentas. Mas se aí reside a “dureza”, onde encontramos o lado da
“leveza”?
Os autores, de modo
hábil, trazem para análise aquele x da questão que é – paradoxalmente – muitas
vezes esquecido: o mundo, as necessidades e os desejos dos usuários, dos
pacientes. Ou seja, quando os usuários são atendidos menos como pacientes e
mais como sujeitos. É “no agir do médico sobre o usuário, mediante seu trabalho
vivo em ato”, que a “dureza” dos “saberes bem definidos” encontra a realidade;
e nesta vemos a “relação centralmente leve que o usuário real impõe para o
raciocínio clínico”. O paciente é um sujeito do encontro, não só um paciente da
ação médica.
Merhy & Franco
chamam atenção para o fato de que há um outro singular – que existe, sente e
fala – do lado do protocolo biomédico “endurecido”. E é nessa escuta, nesse
entre existente no ato clínico que, portanto, emerge a leveza da qual falam os
sanitaristas. Ela é fruto da distância entre a cabeça do profissional –
treinada pelos protocolos – e os ouvidos que de fato escutam o outro, os olhos
que o observam e as mãos que o tocam, todos atentos à singularidade do
encontro. É neste terreno “da valise da cabeça e de seus processos produtivos,
que os produtos da valise da mão adquirem significados como atos de saúde”.
Contudo, sabemos
também que esta interação pode ser “circunscrita pela imposição do lado mais
duro deste processo sobre o mais leve”, isto é, que os saberes técnicos
endurecidos na cabeça do profissional podem implicar numa interdição às
possibilidades de o mundo do usuário participar de fato. Ou como Lilia
Schraiber disse certa vez: os “operadores de protocolos” não escutam o paciente
como sujeito-singular. Na verdade, com frequência, os profissionais de saúde
agem apenas como “uma unidade de produção de procedimentos”.
E aqui nos aparecem
outras novidades da “transformação digital da saúde” que merecem
problematizações. Hoje, parte dos saberes que estavam na “valise da cabeça”
agora são eles mesmos saberes processados em sistemas algorítmicos
automatizados (SAA).Os protocolos já eram algoritmos, agora são
automatizados!Um robô treinado com dados clínicos e epidemiológicos se
relaciona com o usuário-paciente e o orienta a tomada de decisões – quando não
decisões terapêuticas biomédicas/medicamentosas, decisões sobres ações de
promoção à saúde e prevenção à doença. Seja uma nova dieta ou novas práticas
comportamentais, seja um encaminhamento clínico ou aconselhamento de práticas
integrativas, partes importantes da atenção à saúde já são realizadas por SAA.
Podemos dizer que tais
SAA são, enfim,a realização do “endurecimento dos processos produtivos em torno
de saberes tecnológicos muito bem definidos”. Parece que a atual “transformação
digital” não só pode recrudescer a captura do momento vivo das práticas de
cuidado e atenção à saúde pela lógica do trabalho morto, como também o próprio
saber antes vivo na cabeça do “operador” é agora um tipo de “trabalho morto” na
forma de algoritmos de machine learninge cia. Afinal, hoje o profissional pode
– a depender das pressões das metas e resultados, e também dá sua ética –
delegar sua “valise da cabeça” para as large language models como o
OpenEvidence, para que ela pense por ele.
Seria o caso então –
com o perdão do trocadilho – de chamarmos esse processo de trabalho pautado em
SAA de trabalho morto-vivo? Imagine a cena: o paciente que questiona seu/a
médico/a e este – tradicionalmente refratário/a a qualquer questionamento “desde
baixo” –, para ratificar sua autoridade clínica reafirma categoricamente a sua
decisão diagnóstica e terapêutica ao mostrar para o paciente, na tela do
computador, o protocolo sugerido por um SAA calibrado em tempo real pela
Medicina Baseada em Evidências.
Estariam as
tecnologias leve-duras da “saúde digital” fazendo o pêndulo da balança travar
do lado da dureza, intensificando as interdições das necessidades e desejos do
usuário-paciente aparecerem ativamente no encontro? Ou estaríamos abrindo as
possibilidades do profissional não se reduzir a ser “operador de protocolos” e
passar a uma efetiva atenção pessoalizada e singularizada àquele/a que se
encontra sob seus cuidados?
A última valise é a
“valise do espaço relacional trabalhador-usuário” que “só se realiza em ato e
nas interseções do médico e do usuário”, sempre produzindo “relações,
expressando, como seus produtos, por exemplo, a construção ou não de
acolhimentos, vínculos e responsabilizações, jogos transferenciais, entre
outros”. A tecnologias leves acontece quando as situações mais duras são
praticamente insignificantes, “pois mesmo que para o encontro também tenha que
se ter uma certa materialidade dura, ele não é dependente desta.” Aqui é o
acolhimento, a escuta, o diálogo, o vínculo etc. que predominam. E,
consequentemente, no balanço geral, é neste espaço que os desejos e interesses
do usuário apresentam maiores chances de se expressarem e serem ouvidos, ou
seja, o usuário-paciente tem maior liberdade, autonomia como sujeito-singular.
Ora, não podemos
desprezar o fato de que é na leveza que talvez resida um dos principais pontos
em sobressalto na “saúde digital”. Se não podemos atribuir ao SAA a designação
ontológica e axiológica de sujeito; é possível reconhecermos um nível de simetria
prática, conversacional… entre pessoa e SAA. Enquanto agentes-actantes, ambos
se comunicam, transmitem informações um ao outro e, sobretudo, alteram suas
ações a partir do feedback loops, ou seja, produzem outputs novos emergidos da
interação (dos inputs) – o que os ciberneticistas chamam de transversalidade
entre cognição humana e maquínica.
Em uma pesquisa
publicada na Nature sobre a desigualdade no acesso ao tratamento à saúde
mental, centrou-se nas ferramentas digitais – um chatbot – para reduzir a
lacuna de acessibilidade. Com uma população (n) de mais de 120.000 usuários do
NHS, avaliou-se o volume de encaminhamento de pacientes e a diversidade de
etnia, gênero e orientação sexual. Descobriu-se, entre outros, que indivíduos
não binários e de minorias étnicas aumentaram sua procura de serviços de saúde
mental depois e com o chatbot ofertado, um aumento de 179% e 29%
respectivamente. Nesse contexto um dos achados mais intrigantes foi que entre
as principais razões vantajosas, do ponto de vista dos usuários, para a adesão
ao serviço digital, estava a ausência do envolvimento humano e, com isso, a
possibilidade de procurar ajuda sem medo de julgamento ou discriminação.
Podemos analisar,
ponderar e julgar muitas questões vindas desses dados, mas certamente uma de
destaque é: seria esse um exemplo factual da presença de uma leveza maquínica?
Será que os SAA são capazes de promoverem acolhimentos mais leves que muitos
profissionais? Será que uma máquina pode oferecer cuidado mais humanizado que
uma pessoa? Ou seria o caso de nos perguntarmos quais profissionais estão nos
atendendo de modo que até mesmo máquinas podem ser mais acolhedoras?
Fonte: Por Leandro
Modolo, em Outra Saúde
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