sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Governos municipais, estaduais e federal pecam na prevenção de incêndios

O calor e a seca históricos, impulsionados pela crise climática, têm um papel fundamental na dimensão dos incêndios que tomam conta do Brasil. Mas especialistas apontam que o cenário atual poderia ser amenizado, com mais ações preventivas e de fiscalização. Destacam ainda que a escassez de recursos, aliada à falta de priorização do problema pelo governo federal, são fatores que ajudam a explicar o recorde de áreas queimadas e a propagação da fumaça pelo país.

Para a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, o combate ao fogo deveria ter sido elevado a um "verdadeiro problema nacional". "Quem dá, em tese, as autorizações para o uso do fogo em práticas agrícolas são os estados. Quem deveria estar multando, se isso não ocorre, são os estados. Quem deveria controlar os incêndios na maior parte do território, são os estados. E eles fazem isso menos do que deveriam. Mas o governo federal pode ficar omisso? Não", avaliou.

"O governo federal tem uma atribuição na política ambiental de articulação e coordenação. E acredito que a atuação está aquém do necessário", completou. Embora reconheça avanços na política ambiental da gestão Luiz Inácio Lula da Silva, Araújo disse que o poder executivo deveria ter colocado o problema como prioridade de diversos ministérios, além de coordenar ações junto aos estados.

O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) não respondeu aos pedidos de informação e questionamentos da reportagem. Em um canal de entrevistas do governo, a ministra Marina Silva chegou a admitir, nesta terça-feira (17/09) pela manhã, que são necessários mais esforços.

"É preciso que haja uma ação coordenada o mais rápido possível e nós estamos trabalhando nessa direção. As medidas têm sido suficientes? Ainda não têm sido suficientes, mas elas estão sendo ajustadas o tempo todo, mobilizando equipes o tempo todo, aumentando a quantidade de recursos o tempo todo. Mas o certo é que não haja fogo, e que os que forem pegos ateando fogo, que sejam punidos", afirmou.

Logo depois, à tarde, foi realizada uma reunião entre o presidente, os ministros e os chefes de Poderes no Planalto. Lula afirmou que houve um "agravamento da crise nos últimos dias" e que o Brasil "não estava 100% preparado para cuidar dos eventos climáticos extremos". O governo também anunciou R$ 514 milhões para combater os incêndios.

•        Falta de prevenção

O MapBiomas divulgou, na semana passada, os dados mais recentes do Monitor do Fogo. Neste ano, a área queimada atingiu 11,39 milhões de hectares, um aumento de 116% em relação a 2023. Só o mês de agosto representou 49% da área queimada no Brasil. E a expectativa é de que em setembro a situação seja ainda pior.

Durante o lançamento da pesquisa, a coordenadora do MapBiomas Fogo e diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Ane Alencar, afirmou que o governo está usando todos os seus esforços para combater o fogo. "Mas mesmo que queira combater todos os incêndios, não vai dar conta. Tem que, realmente, cortar o mal pela raiz, que é o uso do fogo."

Na visão da pesquisadora, seria preciso uma ampla conscientização sobre o problema. "A gente já sofreu com o fogo de Roraima no início do ano. Seria o momento para começar, muito fortemente, nos municípios que mais queimam, uma campanha de redução do uso do fogo. Eu desconheço que isso tenha acontecido na Amazônia de forma ampla. No Brasil também não vi."

Para o consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Mauricio Guetta, o governo tem anunciado recentemente medidas positivas e que devem incrementar a atuação do poder público no combate aos incêndios. Na semana passada, por exemplo, foi lançada a Autoridade Climática para apoiar e articular as ações no combate à mudança do clima. "Mas, além de terem vindo atrasadas, tais ações ainda não são suficientes", declarou.

Guetta salientou que nas terras indígenas, as áreas mais preservadas do país, o combate aos incêndios não tem surtido efeito. "Um exemplo de medida adicional fundamental seria a adoção de ações preventivas de forma coordenada antes do período seco. Outro é a adoção de um ambicioso plano de recuperação florestal que possa reduzir situações de seca extrema. Ainda há muito a ser feito se quisermos enfrentar com efetividade a 'pandemia do fogo' e a emergência climática."

•        Mais recursos e mais brigadistas

A previsão de recursos específicos para a fiscalização e o combate aos incêndios aumentou durante o ano. Inicialmente estava destinado um aporte de R$ 171,5 milhões no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O número subiu para R$ 267,5 milhões. "Mesmo assim deveria ter aumentado mais e deveriam ter sido contratados mais brigadistas", analisou Suely Araújo.

Até o fim de agosto, o Ibama havia contratado 1.907 brigadistas, incluindo chefes de brigada e de esquadrão. Uma nova portaria permite que o número chegue a 2.227. Somados aos profissionais do ICMBio, o número de profissionais passa de 3 mil. Eles atuam nas áreas públicas federais, nas terras indígenas e nas unidades de conservação, mas também auxiliam os estados em biomas como a Amazônia e o Pantanal.

No domingo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino decidiu que o governo pode abrir créditos extraordinários para o combate aos incêndios florestais e para a contratação de brigadistas, recursos que ficarão fora da meta fiscal. É a partir dessa decisão que o governo anunciou os R$ 514 milhões, que serão usados por diversos ministérios.

•        Fogo contra o combate ao desmatamento

Pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) e copresidente do Painel Científico para a Amazônia, o climatologista Carlos Nobre trabalha com uma hipótese: que parte dos incêndios possam ser uma forma de criminosos tomarem terras públicas, principalmente na Amazônia.

"Historicamente, os criminosos fazem o trabalho inicial, que é a geração do mercado ilegal de terras. Eles desmatam uma floresta, deixam secá-la por dois meses e colocam fogo. Todas as cinzas das plantas e árvores são fertilizantes para o solo pobre da Amazônia. Plantam gramíneas, o pasto, levam o boi e vendem a terra no mercado ilegal. Depois, politicamente, procuram legalizá-la. Essa é a lógica", explicou.

Nobre destaca que o combate ao desmatamento tem sido efetivo no governo atual. Como o processo de desflorestamento pode levar dias e semanas, imagens de satélites alertam fiscais, que podem embargar as áreas e emitir multas. "Então, como os criminosos vão fazer o desmatamento? Fogo."

Segundo o pesquisador, o sistema de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) é suficiente para o combate aos incêndios. Entre uma hora e meia e duas horas após a ignição, é possível detectar o fogo e enviar brigadistas ou bombeiros. No entanto, o tempo é curto se o objetivo é prender os criminosos. "Tem que desenvolver um sistema de detecção do fogo muito mais deficiente", avaliou. Ele sugere o uso de drones e inteligência artificial, por exemplo.

Na decisão de domingo, o ministro do STF Flávio Dino também frisou a questão do combate policial. Ordenou que os recursos do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol) sejam direcionados para investigações e medidas de combate a crimes ambientais no país. E solicitou que todos os entraves à investigação sejam levados a ele.

É praticamente um consenso, também, que as penas para quem colocar fogo de forma ilegal, mesmo em práticas agrícolas, devam aumentar. Atualmente, a punição para quem ateia fogo de forma irregular é de 2 a 4 anos de prisão. Para Suely Araújo, o governo federal deveria enviar um projeto de lei ao Congresso Nacional com urgência constitucional.

Mas mesmo se for aprovado um projeto com esse objetivo, também será preciso fiscalizar o cumprimento da lei. Porque há 90 anos, desde o Código Florestal de 1934, são necessárias solicitações de autorizações para os órgãos ambientais para o uso do fogo. "É, provavelmente, a regra ambiental mais descumprida do país", declarou Araújo.

 

•        Incêndios devastam destinos turísticos no país

Muita fumaça, parques fechados, animais mortos e dificuldade para respirar. É assim que Alinne Assunção, coordenadora administrativa da associação de guias da Chapada dos Guimarães, define o cenário em uma das regiões mais procuradas para o ecoturismo no país.

Desde o início de agosto, quando as queimadas na região do Cerrado se intensificaram, diversos passeios foram cancelados e as paisagens mudaram completamente. "Tivemos uma diminuição de 80% na procura em relação aos atrativos. As queimadas prejudicam os passeios, tanto pelo cenário quanto pelo ambiente que fica super insalubre", destaca Assunção.

Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, algumas unidades permanecem total ou parcialmente fechadas. O órgão informou ainda que foram registrados 36.290 hectares de áreas queimadas em todo o município da Chapada dos Guimarães (MT), sendo 3.807 na região de proteção ambiental.

Por causa do fogo intenso, muitas áreas que eram exploradas por turistas em várias regiões do Brasil foram interditadas e seguem previsão de reabertura. Uma delas é a Floresta Nacional de Brasília, onde as chamas já consumiram 700 hectares da área de proteção ambiental e ameaçam agora casas nas proximidades do parque.

<><> Outras regiões turísticas prejudicadas

Desde o início do mês, o fogo também atinge o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, reconhecido Patrimônio Mundial Natural da Unesco. O ICMBio comunicou que, até o momento, a área queimada dentro do parque é estimada em 8 mil hectares, e a extensão total, incluindo o entorno, alcança cerca de 10 mil hectares. Embora a região ainda esteja sofrendo com alguns focos de incêndio, a parte turística segue aberta à visitação.

O problema não se limita somente à região Centro-Oeste. Destinos turísticos no Sudeste também já sofrem com os impactos das secas e queimadas.

Em São Paulo, alguns parques precisaram ser fechados para garantir a segurança dos turistas. Segundo a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo (Semil), 81 unidades de conservação localizadas na região metropolitana e interior do estado estão fechadas desde o início de setembro. A pasta informou ainda que somente os parques estaduais Campos do Jordão e Cantareira estão parcialmente abertos para visitação.

Incêndios florestais também forçaram o fechamento de todos os parques estaduais do Rio de Janeiro, no último sábado (14/09). A medida, que abrange 40 unidades de conservação, incluindo o Parque Estadual da Serra da Concórdia e os Monumentos Naturais Serra da Beleza e Serra da Maria Comprida, visa proteger a região e os visitantes durante o período de estiagem.

Em Minas Gerais, a água das cachoeiras de Bom Despacho, em Santa Cruz de Minas, desapareceu. Sem chuva há mais de três meses, a região entre São João Del Rei e Tiradentes, importantes pontos turísticos de Minas Gerais, enfrenta uma seca preocupante. Já o Parque Nacional da Serra Canastra sofreu com queimadas no início do mês. Os incêndios no local já foram controlados.

<><> Queimadas fora do comum e crise climática

As queimadas que devastam diversos pontos turísticos brasileiros são impulsionadas pela seca histórica que atinge o país. No entanto, em muitos casos, o início do fogo tem sido provocado de forma criminosa, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.

A destruição das paisagens naturais, como cachoeiras e trilhas, compromete o potencial turístico dessas regiões, além de afetar a infraestrutura local, incluindo pousadas e restaurantes. De acordo com um estudo do Sebrae Nacional, realizado em parceria com o Ministério do Turismo, o ecoturismo representa 60% da receita do setor turístico brasileiro.

"Os turistas, em geral, querem visitar lugares bonitos, agradáveis e com boa infraestrutura. Quando os destinos sofrem com enchentes, temporais, poluição das águas, incêndios e outros, isso afeta diretamente as atividades ligadas ao turismo", enfatiza Marcela do Nascimento Padilha, doutora em Geografia e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Marcello Tomé, coordenador do Programa de Pós-graduação em Turismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), alerta que os incêndios não só modificam a "beleza cênica", como também representam perigo à saúde, com a emissão de fumaça e gases tóxicos e o risco de queimaduras ou até morte. "As queimadas podem impedir o acesso e o aproveitamento dos atrativos turísticos, além de causar prejuízos significativos às comunidades locais", acrescenta.

Pedro Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), destaca o papel das condições climáticas extremas no agravamento dos incêndios. Segundo ele, o aumento das temperaturas e a falta de umidade tornam a vegetação mais vulnerável ao fogo, e muitos dos incêndios que se alastram em biomas como o Pantanal e o Cerrado têm origem criminosa.

"Embora o fogo faça parte de um processo natural de renovação em alguns biomas, o que vemos hoje é uma situação fora de controle, alimentada por fatores humanos e ambientais", explica Côrtes.

A crise climática também afeta os recursos hídricos dessas regiões. Côrtes explica que a falta de chuvas reduz o volume de água em rios e cachoeiras, essenciais para a atração de turistas.

<><> Mudança na rotina e impacto nas atividades

Trabalhando com o turismo na Chapada dos Guimarães há 12 anos, a publicitária Fernanda Lemes atua com o marido em uma agência de ecoturismo e em um hostel na região. Desde o início dos incêndios, ela conta que as paisagens mudaram completamente e que o impacto nas atrações tem sido bem grande. "Os mirantes estão todos queimados e há animais mortos. É bem triste o que está acontecendo", diz.

Por causa do agravamento das queimadas, Lemes diz que muitos clientes desistiram dos passeios e, muitas vezes, pedem a devolução do dinheiro. Como alternativa, são oferecidas remarcações ou passeios para municípios próximos, como Nobres e Jaciara, também no Mato Grosso.

Ela ainda não sabe mensurar o prejuízo financeiro, mas acredita que será alto. Para Lemes, a alternativa mais viável nesse momento é pedir para os clientes adiarem a visita. "Tentamos evitar o cancelamento, porque cancelar impacta na reserva da pousada, impacta na reserva do atrativo, no restaurante. A Chapada é uma cidade que vive disso", ressalta.

Assunção também reforça o impacto da falta de turistas no local. Como muitos guias trabalham de forma independente, ela conta que a renda de cada um está sendo bem afetada e teme uma piora ainda maior no setor.

Ela ainda acrescenta que, devido às queimadas, a qualidade do ar está muito ruim, prejudicando a respiração e, consequentemente, a rotina de trabalho. "Cerca de 98% dos nossos profissionais de turismo são autônomos, então eles dependem da boa saúde para poder trabalhar. Essas pessoas passam por dificuldades terríveis", diz.

<><> Recuperação na prática

Para mitigar os impactos das queimadas e secas nos destinos turísticos, a recuperação precisa ser completa. Isso envolve tanto o suporte às famílias afetadas quanto a restauração dos ecossistemas danificados, destaca Tomé.

O especialista da UFF ressalta que, além de investimentos em infraestrutura e recuperação das áreas, é fundamental promover os destinos de maneira sustentável. Ele reforça que melhorias no combate a incêndios, tanto em termos de equipamentos quanto de pessoal, são necessárias para enfrentar novos focos de queimadas, que vêm ocorrendo com frequência alarmante.

A promoção dos destinos, após a recuperação, também é uma etapa importante para resgatar a atratividade das áreas turísticas que sofreram com os incêndios. Côrtes acrescenta que a solução para as queimadas passa por um esforço coletivo que envolve a população e os governos.

Além das ações de combate, a responsabilidade pelos incêndios precisa ser investigada e os causadores, punidos. "É necessário que as polícias estaduais e a federal conduzam investigações para responsabilizar os grupos ou indivíduos que iniciaram esses incêndios, o que pode desestimular novos crimes ambientais no futuro", conclui Côrtes.

 

Fonte: DW Brasil

 

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