Gaspar Paz: A importância do dissenso no
espaço universitário
A canção “Sinal
fechado”, de Paulinho da Viola, nos fala de um tempo furtivo, evanescente, onde
não há espaço para diálogos mais prolongados. Um tempo, como disse Olgária
Matos, suspenso entre a monotonia e a aceleração. Tempo de indiferença, que nos
lança numa espécie de indigência. Tempo que se distribui em divisões binárias
(vermelho/verde), dilatando o condicionamento de atravessar ansiosamente a
espera.
A greve de docentes,
técnicos e estudantes de Universidades e Institutos Federais (em 2024) sacudiu
essa estagnação, reafirmando o papel do dissenso no espaço universitário e
acumulando um saldo político significativo. Vale destacar alguns pontos: (i) As
discussões ocorridas, nesse período, possibilitaram mais trocas de informações
e, por conseguinte, mais conhecimento sobre os meandros e os mecanismos
estruturantes para o funcionamento das instituições (o que implicou pensar
também seus malogros e sua estrutura dominante de poder).
(ii) Os debates
geraram uma profusão de reflexões sobre a universidade, a educação e sobre o
panorama político brasileiro, mostrando a reverberação de uma gama de escritos
publicados em espaços da mídia alternativa brasileira; (iii) As reuniões
propiciaram um espaço de crítica construtiva e a organização de lutas
consoantes, aflorando a afetividade, as trocas e o conhecimento de trabalhos e
pesquisas de diversos campos, que vêm sendo desenvolvidas nas Universidades e
Institutos Federais.
(iv) Foi um tempo de
compreensão das tensões e relações de poder nas instituições e no país como um
todo; (v) um momento de reposicionar as pautas e lutas locais e nacionais; (vi)
circunstância que preservou o direito de um espaço-tempo de reivindicação e de
atuação ética e política; (vii) instante de reconhecimento de entraves e de
obliteração das mobilizações e ações, que impedem a construção de uma educação
aberta aos anseios e à resistência popular.
Feitas essas sucintas
observações, gostaria de tocar num ponto que considero nodal para pensar os
rumos da universidade: a situação da pesquisa e da pós-graduação. Esse anseio
de diálogo sobre o tema não é novo e já foi aventado nos últimos anos na Adufes
e em outros fóruns de discussão da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes), mas dada a precariedade das condições de pesquisa no país, é urgente
que se repense o modelo de avaliação, a cobrança produtivista de resultados
(que requer uma carga horária extenuante de trabalho), e o viés
operacional-mercadológico-competitivo de funcionamento e financiamento, três
aspectos que têm se “naturalizado” nos espaços universitários brasileiros e que
incidem numa cadeia de outros problemas que se avolumam, causando péssimas
condições laborais e adoecimento aos que atuam nesses quadros.
Desde o início da
greve houve esse chamamento ao diálogo sobre esse tema. No entanto, na
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a base docente e discente foi
surpreendida com a informação oficial de normalidade de atividades em se
tratando de questões e prazos que implicassem a pós-graduação. Já nos primeiros
dias, a PRPPG Ufes manifestou-se oficialmente nesses termos. Consideramos,
contudo, que o ofício encaminhado às coordenadoras e coordenadores de Programas
de Pós-Graduação, naquela ocasião, vilipendiou o movimento docente que luta por
direitos, por recomposição do orçamento e pelo funcionamento das universidades
públicas brasileiras, entre outras pautas urgentes, e perdeu a oportunidade de
redimensionar os problemas enfrentados pelos PPG’s e o seu papel no todo da
universidade.
Ainda estamos em
situação de excepcionalidade no cenário universitário nacional, sem a devida
recomposição de recursos para as universidades e para a reestruturação da Capes
e do CNPq, situação da qual os Programas de Pós-Graduação não estão alheios
(como mostra a redução do PROAP neste ano de 2024). É importante que se diga
ainda que a reestruturação das agências de fomento governamentais com o mesmo
fisiologismo de competência e competitividade que vem sendo disseminado há anos
não é o ideal e nem é mais aceitável para as nossas universidades.
Além disso, a reitoria
da UFES calculou que haveria um decréscimo de aproximadamente R$ 14 milhões no
orçamento para 2024, o que acenava a dimensão do arrocho que nos acomete hoje.
Mesmo com o PAC anunciado pelo governo, de forma totalmente enviesada, no dia
10 de junho de 2024 (após e em razão dos mais de 50 dias de greve docente),
reitores que compõem a Andifes julgaram que os recursos aventados são
insuficientes para manter as universidades e seu funcionamento adequado.
Buscou-se – como numa
espécie de jogo de cena – desmobilizar e desmoralizar os movimentos grevistas,
com argumentos de economia e política neoliberais para indução de projetos de
Inteligência Artificial, em universidades tão sucateadas, que sequer possuem
salas e laboratórios com equipamentos tecnológicos básicos (como aparelhagem de
som, por exemplo).
A afronta maior é que
se presume que a universidade tenha descartado seu potencial crítico e sua
resistência ativa, para se resignar aos interesses dos conglomerados privados
de educação e tecnologia, pois são estes, certamente, os que serão beneficiados
por esse aparato. E observe-se que no apagar das luzes do mês de julho, o
Governo anunciou um bloqueio de R$ 15 bilhões no Orçamento, com a justificativa
de manter a meta do arcabouço fiscal, fato que atinge a Educação em R$ 1,28
bilhão. Tal situação exige nossa atenção, pois essa luta é de todas/os/es.
A pró-reitoria
argumentou que os PPG’s da Universidade Federal do Espírito Santo
“historicamente mantêm atividades normalizadas em períodos de greve”. Esse
posicionamento, que se apartou das lutas e não considerou as reinvindicações de
63 (dentre as 69) universidades que aderiram ao movimento paredista, se
distanciou ainda das mudanças ocorridas na própria pró-reitoria da Ufes, que
teve crescimento exponencial no credenciamento de cursos de mestrado e
doutorado a partir dos primeiros decênios dos anos 2000, alavancados pelos
governos de Lula e Dilma (mas quem se lembra ainda do horizonte de
investimentos do pré-sal e do “Brasil, Pátria educadora”?
Tal horizonte teria se
perdido em meio a renúncias fiscais e isenções, que conforme a Unafisco,
alcançam a cifra de 524 bilhões de reais em 2023? Só de isenção de lucros e
dividendos distribuídos pelas empresas o valor é de 58,9 bilhões de reais. A
lógica é simples, como diz Noam Chomsky, se se dá isenção para empresários e se
nega reajuste a professores e funcionalismo público, tira-se de uns para dar a
outros: é uma escolha). Esse crescimento, que foi anunciado já há alguns anos
na página da PRPPG Ufes, não foi feito sem luta e sem o ônus da mais-valia do
trabalho docente, discente e dos TAE’s.
Cabe perguntar onde
estamos hoje com a educação e as universidades públicas? Qual o futuro?
É importante reiterar
que o ambiente de cobrança de resultados e produtividade para alcançar os
rankings de instituições estrangeiras, e uma série de outras exigências de
avaliação, têm gerado rotinas extenuantes de sobrecarga, exploração de trabalho
e adoecimento docente, discente e de técnicos. E tudo isso sem o devido
respaldo financeiro a projetos e pesquisas.
Professoras e
professores, para corresponder a critérios indecentes de organização,
estipulados pelas agências de fomento, se dividem em atividades administrativas
(pois a situação dos TAE’s é desalentadora); em prospecção de recursos para
pesquisa (“empresários de si mesmos” em busca de parcerias público-privadas
para conquistar condições mínimas de pesquisas e, ainda assim, limitadas à
anuência de temas e resultados pelos censores das empresas privadas); no
acúmulo de carga horária de ensino, pesquisa e extensão, que não cabe em seus
PAD’s; na competição entre os pares, que estabelece quem é produtivo e quem é
improdutivo; na ausência de formação, pois o exíguo tempo – arrancado das horas
– é desmotivador tanto da formação educacional, como da criatividade necessária
à pesquisa e à dedicação para a construção política da universidade que
queremos. Inclui-se nesse leque, de forma muito preocupante, a falta de
assistência e estímulo às/aos mestrandas/os e doutorandas/os das instituições
(que muitas vezes, dadas as condições adversas, são forçados a abandonar suas
pesquisas, com bolsas mais que defasadas e sem espaços para estudo, sem
renovação do acervo bibliográfico de bibliotecas e equipamentos elementares
para desenvolvimento de projetos e investimento em formação).
Essas e outras
questões revelam a frustração que toma de assalto a vida docente – em angústias
e ansiedades cada vez mais crescentes – fruto da percepção que seu espaço de
trabalho é teleguiado pelo mercado, já que a própria universidade assume os
ares, as normas e a operacionalidade de empresas privadas.
Estamos presenciando,
portanto, o esfacelamento do espaço público, que caminha a passos largos, mesmo
que às vezes não se perceba ou se naturalize suas insinuações. E, de fato, tudo
é feito a partir de disfarces, justamente para que esse esfacelamento se
invisibilize numa espécie de complexidade (des)informacional. O uso acrítico da
tecnologia, por exemplo, faz parte do mascaramento que tem gerado a maior onda
de não-presencialidade nas instituições educacionais do país.
Isso implica, sem
meias palavras, na expulsão de estudantes do espaço universitário (sobretudo
estudantes cotistas) e, portanto, como disse Florestan Fernandes (em 1978), a
retirada da “vitalidade cultural ou política” da universidade. Decorre disso, o
que o sociólogo brasileiro chamou de “universidade do silêncio”, pois o
silenciamento dos anos ditatoriais perdura e se aprofunda no seio
universitário, gerando as comunicações extorquidas, o fatalismo como moeda
corrente dos discursos e jogos do poder, e o apagamento da resistência
educacional, aquela resistência empenhada na construção de uma universidade
outra, motivada pelo amplo compromisso social.
E é por isso que
precisamos retomar esses pontos, desmascarando o que há de mais violento,
legalista, autoritário e manipulador nas universidades, violência esta que se
agudizou sobremaneira desde o golpe de 2016 e em seu desenlace destruidor nos
anos que se seguiram (de 2019 a 2022). Como disse Florestan Fernandes, “Se não
fizermos isso, traficaremos com o erro de uma aliança tácita com os inimigos de
toda e qualquer transformação institucional profunda, em qualquer esfera da
sociedade brasileira. Esse erro já foi cometido de boa-fé antes. Repeti-lo…
seria uma estupidez política” (FERNANDES, 2020, p. 38).
Tudo isso deixa
transparecer, como ressaltou a filósofa Marilena Chaui, que “O papel da
universidade é ser uma parte da luta de classes. A universidade não pode ser
apenas um lugar que reflete sobre a luta de classes. Ela tem que compreender
que é parte dessa disputa, seja pelo seu alunado, pela divisão entre seus
professores, seja pelo papel das administrações e burocracias, que operam
muitas vezes a favor da classe dominante. Somos parte da luta de classes e
somos obrigados como instituição de ensino, a entender esse papel que
desempenhamos na sociedade” (CHAUI, 2018, p. 421).
Isso significa que
está mais do que na hora de tomarmos parte também da discussão e decisão
coletiva do orçamento e da construção universitária, tarefa que nos é tantas
vezes sonegada. Como diz Marilena Chaui, “A universidade reproduz, em pequeno,
a situação geral da sociedade brasileira, que executa ordens despachadas em
pacotes, sem jamais intervir na discussão e na decisão dos processos
econômicos, sociais e políticos” (CHAUI, 2018, p. 233).
Essa inacessibilidade
é constrangedora, pois se reflete em discursos que deploram a crítica,
apontando-a como causa de polarizações, incompreensões e infortúnios. Para
evitar esse expediente, tais atores investem nas decisões consensuais. No
fundo, isso revela a impossibilidade ou os entraves da política, e a manutenção
de um tipo de poder que se sustenta numa associação de burocracia, legalismo
(como sistema coercitivo) e uso de paixões tristes (como o medo).
Na contracorrente
desse consensual, chamamos a atenção para o papel político-pedagógico do
dissenso no espaço universitário. O dissenso como abertura de caminhos, como
tomada de posição, que não se conforma a conciliações inconciliáveis ou a
fastidiosas posições que insistem capciosamente na exclusão dos que divergem.
Trata-se de trazer uma outra via às lutas políticas, via de resistência e
reivindicação pela construção coletiva dos rumos da universidade. É hora de
continuar as lutas necessárias.
Fonte: A Terra é
Redonda
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