Fungo pode revolucionar gastronomia e
combate ao desperdício
Num mundo onde o
desperdício de alimentos atingiu proporções assombrosas, um fungo pode ser
chave para combater o problema e vem chamando a atenção de laboratórios de
pesquisa a restaurantes estrelados.
Há séculos o
Neurospora intermedia vem silenciosamente fazendo sua mágica nas cozinhas da
Indonésia, transformando polpa de soja em uma iguaria fermentada chamada oncom.
Agora, graças aos esforços de um chefe de cozinha que se tornou químico, Vayu
Hill-Maini, e de um grupo de outros chefes inovadores, esse humilde fungo pode
estar prestes a se converter num herói na crise global de desperdício de
alimentos.
"O sistema
alimentar gera um enorme desperdício e precisamos urgentemente de soluções para
lidar com esse problema e com os desafios que ele representa para a segurança
alimentar e a sustentabilidade", disse Hill-Maini, pós-doutorando da
Universidade da Califórnia, em Berkeley, à revista Interesting Engineering.
"O que acontece
com todos os grãos envolvidos no processo de fabricação de cerveja, toda a
aveia que não se transformou em leite de aveia, a soja que não se transformou
em leite de soja? Isso tudo é jogado fora", observou.
Publicado na revista
Nature Microbiology, o estudo de Hill-Maini aponta que o Neurospora pode
transformar materiais vegetais indigeríveis em alimentos nutritivos e ricos em
proteínas em apenas 36 horas. Mas a verdadeira magia está em sua versatilidade:
o fungo pode crescer em 30 tipos diferentes de resíduos agrícolas, desde bagaço
de cana-de-açúcar e de tomate até cascas de banana e de amêndoas, sem produzir
toxinas prejudiciais.
<><> Do
laboratório para a mesa
Essa descoberta gerou
colaborações com chefes de cozinha renomados, levando a fermentação fúngica do
laboratório para algumas das cozinhas mais prestigiadas do mundo.
No restaurante Blue
Hill at Stone Barns, em Nova York, o chefe Andrew Luzmore tem feito
experimentos com produtos à base de Neurospora, incluindo uma criação com gosto
de queijo quente, mas feita inteiramente de pão de arroz mofado."É
incrivelmente delicioso”, entusiasma-se Luzmore. "Parece e tem gosto de
queijo cheddar ralado no pão tostado. É uma mostra clara do que se pode fazer
com isso.”Uma sobremesa memorável Do outro lado do Atlântico, no Alchemist, um
restaurante com duas estrelas Michelin em Copenhague, o chefe Rasmus Munk
elevou a gastronomia fúngica a novos patamares. Sua sobremesa à base de
Neurospora consiste numa camada de vinho de ameixa gelificado coberta com um
creme de arroz sem açúcar inoculado com Neurospora, fermentado por 60 horas e servido
gelado com calda de raspas de limão tostadas.
"Descobrimos que
o processo alterou drasticamente os aromas e sabores, acrescentando aromas
doces e frutados”, diz Munk. "Achei incrível descobrir de repente sabores
como banana e frutas em conserva sem acrescentar nada além dos próprios fungos.
No início, estávamos pensando em criar um prato salgado, mas os resultados nos
fizeram decidir servi-lo como sobremesa.”
<><> A
ciência por trás do sabor
A pesquisa de
Hill-Maini foi além da criação de novos sabores. Sua equipe descobriu dois
tipos distintos de Neurospora: cepas silvestres encontradas em todo o mundo e
cepas especificamente adaptadas aos resíduos agrícolas gerados pelo homem.
Essas cepas domesticadas são particularmente hábeis em decompor a celulose – o
carboidrato complexo das paredes celulares das plantas – e convertê-la em
alimentos nutritivos.
"Acreditamos que
tenha ocorrido uma domesticação à medida que os seres humanos começaram a gerar
resíduos ou subprodutos e isso criou um novo nicho para o Neurospora
intermedia", explica Hill-Maini. "Com isso, provavelmente surgiu a
prática de fazer oncom. E descobrimos que essas cepas são melhores na
degradação da celulose. Portanto, parece haver uma trajetória única nos
resíduos, do lixo ao tesouro."
<><> Uma
solução saborosa para um problema global
Diante da estimativa
de que um quinto dos alimentos produzidos para consumo humano seja perdido ou
desperdiçado em todo o mundo, o que equivale a um bilhão de refeições por dia
ou 1,3 bilhão de toneladas de alimentos por ano, o impacto potencial da
fermentação fúngica é enorme. Hill-Maini imagina um futuro em que alimentos
apreciados serão feitos com ingredientes que, de outra forma, seriam
desperdiçados.
"Nos últimos
anos, acho que os fungos chamaram a atenção do público por seus benefícios à
saúde e ao meio ambiente, mas sabe-se muito pouco sobre os processos
moleculares que esses fungos realizam para transformar ingredientes em
alimentos", aponta o chefe de cozinha. "Nossa descoberta abre os
olhos para essas possibilidades e ressalta o potencial desses fungos para a
saúde e a sustentabilidade globais."
Fonte: Deutsche Welle
Nenhum comentário:
Postar um comentário