Como a Alemanha tenta solucionar sua
'cracolândia'
Durante os jogos da
Eurocopa 2024 realizados em Frankfurt, na Alemanha, uma realidade distante dos
campos chamou a atenção de torcedores e turistas que visitavam a cidade: a dos
usuários de crack que se concentram nas ruas no entorno da principal estação de
trem.
Nas ruas ao redor da
Bahnhofsviertel, a principal estação ferroviária do centro financeiro alemão
que atrai mais de 500 mil viajantes todos os dias, turistas e banqueiros
engravatados se misturam com pessoas acendendo cachimbos nas portas dos
estabelecimentos, prostíbulos e muito lixo nas ruas.
A
"cracolândia" alemã, também apelidada de "zumbilândia" pela
imprensa local, é atualmente um dos maiores desafios da prefeitura de
Frankfurt.
Segundo dados da
própria administração local, cerca de 350 usuários circulam pela área todos os
dias.
O fluxo varia muito.
Enquanto em alguns dias apenas poucas pessoas se reúnem na frente dos abrigos e
centros de acolhimento da prefeitura, em outros é possível encontrar grupos de
até 50 pessoas aglomeradas.
A situação atual é
bastante semelhante à observada no centro de São Paulo, na área itinerante
apelidada de Cracolândia.
O número de pessoas
que se concentra na região da Luz, na capital paulista, varia bastante até
mesmo em um único dia.
Mas no primeiro
semestre de 2024, segundo dados do painel de monitoramento das cenas de uso de
drogas, mantido pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU), em média
mais de 400 pessoas circulavam pelas zonas de aglomeração em cada período do
dia.
O fluxo já mudou
incontáveis vezes de lugar. E a presença dele é motivo para desvalorização
imobiliária, queda nas vendas do comércio nas redondezas e medo de violência.
Por tudo isso, o tema
se tornou central na disputa pela Prefeitura da capital paulista nas eleições
municipais marcadas para outubro deste ano. E assim como em São Paulo, as
autoridades alemãs sofrem para encontrar saídas para um problema que parece sem
solução.
Apesar disso, os
responsáveis pela estratégia alemã acreditam que o modelo implementado em
Frankfurt pode servir de inspiração para outras "cracolândias" pelo
mundo, inclusive no Brasil.
• Da heroína para o crack
O histórico de
Frankfurt com o uso de drogas a céu aberto não é novo.
Durante a segunda
metade da década de 1980, uma grande e complexa cena se instalou ao redor da
estação de trem Taunusanlage, localizada a cerca de 500 metros da
Bahnhofsviertel, onde está o foco do problema hoje.
Naquele momento, a
droga mais popular era a heroína. No auge da crise, mais de mil usuários se
reuniam na região para injetar, enquanto a venda acontecia quase livremente.
Além de ser um
problema social, Taunusanlage era uma questão de saúde pública. Cerca de 150
dependentes morriam de overdose a cada ano.
As primeiras soluções
implementadas pela administração local se mostraram insuficientes. Foi só na
década de 1990 que as coisas começaram a melhorar.
Mas o problema nunca
desapareceu totalmente. E, mais recentemente, a droga mais consumida passou a
ser o crack.
Um monitoramento feito
periodicamente pelo Centro de Pesquisa de Drogas (CDR) da Universidade de
Frankfurt mostra que até 1995 a cocaína em pó era a mais usada na cidade. Hoje,
o crack corresponde a cerca de 90% de todas as substâncias ilícitas consumidas
em Bahnhofsviertel diariamente.
Essa transição
aconteceu não somente em Frankfurt, mas em todo o país. Segundo o Observatório
Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA), enquanto em 2015 1,2% da
população entre 15 e 64 anos havia usado crack no último ano, em 2021 esse
total passou para 3,1%.
E embora não existam
dados mais recentes publicados pelo EMCDDA, a noção geral é que o consumo só
cresceu desde então.
Uma pesquisa
encomendada pelo Parlamento alemão e conduzida pela instituição sem fins
lucrativos IFT (Institut für Therapieforschung) em fevereiro deste ano
entrevistou funcionários de centros de acolhida e que atuam no atendimento a
usuários de droga em todo o país.
Entre os especialistas
ouvidos, quase 30% disseram ter notado um leve aumento no consumo de crack e
mais de 32% citaram um aumento acentuado.
Além de Frankfurt,
cidades como Berlim, Hamburgo e Hanover também abrigam cenas de de uso de crack
(e outras drogas) a céu aberto.
Apesar de a cocaína
ainda ser mais popular entre usuários ocasionais e recreativos, especialistas
afirmam que o crack domina entre os usuários crônicos, especialmente nas
"zumbilândias".
Bernd Werse, diretor
do CDR, afirma que a prática de fazer crack a partir da cocaína foi introduzida
na Alemanha principalmente por soldados americanos que ocuparam algumas cidades
durante e após a 2ª Guerra Mundial.
"No final da
década de 1990 ainda existiam duas cenas de droga separadas em Frankfurt, uma
maior de uso de heroína e outras drogas injetáveis, e outro menor, de
crack", explica.
"Mas em cerca de
dois anos os dois grupos se uniram e pouco depois o crack se tornou
predominante."
Segundo Artur
Schroers, chefe do Departamento de Drogas de Frankfurt, o mercado de drogas de
Frankfurt e de todo o país foi inundado pela oferta de cocaína nos últimos
anos.
"Nunca antes
tanta cocaína foi produzida no mundo como hoje, nunca antes tanta foi lançada
no mercado, por preços comparativamente baixos e com qualidade quase
pura", afirmou à BBC News Brasil.
Em junho deste ano, as
autoridades alemãs anunciaram a maior apreensão de cocaína da história do país.
Dezenas de toneladas
originárias da América do Sul e no valor de vários bilhões de euros foram
confiscados no porto de Hamburgo em 2023, segundo o Escritório de Investigação
Criminal do Estado de Baden-Württemberg.
Um processo de
transformação urbana da área no entorno da Bahnhofsviertel e, mais
recentemente, a pandemia de covid-19, também podem ter contribuído para o
aumento no uso de crack em Frankfurt, diz Bernd Werse.
Pouco antes da crise
sanitária, proprietários da região passaram a nutrir esperanças de que o bairro
pudesse finalmente se livrar de seu passado depois que bares e restaurantes
descolados abriram suas portas e passaram a atrair novos clientes.
Mas com a pandemia e o
isolamento obrigatório, os estabelecimentos fecharam, as ruas ficaram
abandonadas e a criminalidade cresceu (Frankfurt carrega o título de cidade
mais perigosa da Alemanha).
E as constantes
operações da polícia contra os traficantes da região não têm se mostrado
suficientes para acabar com o consumo no entorno da estação.
"As pessoas
começaram a reclamar mais do uso de drogas na região nos últimos anos, o que
levou a uma diminuição da área onde os usuários se concentram", afirma.
"Com menos
espaço, aumentou o nível de agressividade entre eles, o que torna a região mais
atemorizadora para muitos moradores e frequentadores da estação."
E enquanto o perfil
típico do usuário de heroína de Frankfurt até o final dos anos 90 era mais
jovem, em torno de 30 anos, atualmente a média de idade dos que consomem crack
nas ruas do centro da cidade é de 42 anos, segundo o CDR.
"Isso significa
que muitas dos usuários estão ali há muitos anos, provavelmente desde as
décadas de 80 e 90", diz Bernd Werse.
"Mas também quer
dizer que esses usuários estão vivendo mais graças às medidas de redução de
danos implementadas pelas autoridades."
• 'O Caminho de Frankfurt'
O conjunto de medidas
adotadas pelas autoridades de Frankfurt na década de 1990 para lidar com o
consumo de opioides nas ruas do centro da cidade ficou conhecido como "The
Frankfurt Way" (algo como "O Caminho de Frankfurt", em português).
O modelo é estudado
internacionalmente por conciliar a repressão ao tráfico de drogas ilícitas com
um forte investimento em serviços sociais e de saúde para os usuários.
O sistema de suporte
construído contava com uma ampla rede de médicos e psiquiatras disponíveis dia
e noite, construção de abrigos, acomodações de emergência e leitos de descanso
diurno, fornecimento de suprimentos de higiene, alimentação, terapia e auxílio
para a busca de emprego, além da instalação de lounges e cafés noturnos nas
ruas onde o consumo se concentrava.
Parte importante do
modelo também se apoia nas salas supervisionadas para o consumo de drogas.
Nesses locais, os
dependentes têm acesso a seringas e todo material esterilizado para o uso da
substância e recebem acompanhamento médico em casos de overdose.
O espaço possibilita
ainda que assistentes sociais façam contato com dependentes e possam apresentar
a eles opções de tratamento para o vício.
Além de terem
contribuído para tirar das ruas a grande massa de usuários, as salas também
ajudaram a reduzir infecções causadas pela reutilização de seringas infectadas.
A cidade comandou
também uma intervenção policial extensa, após a qual todos os usuários que se
reuniam no centro da cidade foram levados de ônibus até abrigos espalhados pela
cidade.
Os dependentes não
residentes em Frankfurt foram retirados da cidade. Ao mesmo tempo, centros de
apoio foram estabelecidos nas suas cidades de origem.
O Caminho de Frankfurt
inclui ainda investimentos em terapia de substituição, usada principalmente
para controlar o uso da heroína.
Nesse caso, a droga é
substituída por outros opioides, geralmente metadona, com quantidade estipulada
e o uso monitorado por um médico.
A abstinência não é
necessariamente uma das metas visadas nesse tipo de tratamento, mas sim o
controle do uso.
As ações iniciadas a
partir de 1992 resultaram não apenas em um declínio nas mortes relacionadas ao
consumo de drogas — de 147 casos em 1991 para menos de 40 uma década depois —
mas também em um claro declínio na criminalidade.
Em 2023, foram
registradas 32 mortes associadas às drogas em Frankfurt. O número ainda é bem
inferior ao de antes da implementação das soluções locais, mas o crescimento da
disponibilidade e do consumo de crack preocupa os especialistas, especialmente
porque os tratamentos e recursos adotados para controlar o uso de opioides
parecem não estar funcionando no contexto atual.
"O crack pode ser
fumado em baforadas rápidas nas ruas. O efeito começa depois de alguns segundos
e passa depois de cerca de dez minutos. O desejo pelo próximo trago começa
imediatamente. Pessoas que usam crack, portanto, tendem a ficar onde podem obter
e consumir seus bens rapidamente", diz Artur Schroers, chefe do
Departamento de Drogas de Frankfurt.
E, ao contrário do
tratamento com heroína, não há medicamentos que substituam a cocaína em pó e o
crack para controlar o uso da droga de forma comprovadamente efetiva.
• 'Redução de danos'
A nova realidade
enfrentada por Frankfurt e pela Alemanha tem exigido uma nova abordagem, dizem
especialistas.
"O Caminho de
Frankfurt abriu as portas para a instalação de muitas instituições onde os
usuários podem buscar ajudar. Mas temos visto que não funciona
completamente", diz Bernd Werse.
"Se essas
instituições não estivessem lá seria muito pior, mas ainda há muitas pessoas
usando nas ruas."
A prefeitura de
Frankfurt, por meio do Departamento de Drogas, afirma estar investindo em
melhorias e mudanças em sua estratégia.
Entre as ações
implementadas mais recentemente estão a ampliação do número de acomodações de
emergência, a expansão do atendimento médico e de enfermagem e a extensão dos
horários de funcionamento dos cafés noturnos destinados ao acolhimento dos
usuários.
Além dos serviços de
higiene já existentes dentro dos centros de atendimento da prefeitura, um
contêiner com cinco banheiros e quatro chuveiros também foi instalado perto da
estação.
"Essa [nova]
dinâmica de consumo significa que precisamos expandir os serviços de redução de
danos", diz Artur Schroers, do Departamento de Drogas.
"Além disso, as
ofertas de assistência devem estar disponíveis de forma incondicional e
facilmente acessíveis, alcançando assim os mais afetados."
As autoridades locais
também trabalham na construção de um grande centro integrado focado nos usuários
de crack, que incluirá uma área de consumo de drogas controlada no pátio
interno.
Uma estratégia similar
já foi adotada em Hamburgo, onde também há uma cena de uso de crack a céu
aberto no centro da cidade e 88 mortes relacionadas ao uso de substâncias
ilícitas foram registradas no ano passado.
No centro da cidade
portuária no norte da Alemanha, também próximo a uma das maiores estações de
trem, as autoridades locais instalaram um grande centro chamado de The Drob
Inn.
Mas diferentemente de
outros postos de atendimento do tipo, os usuários têm permissão para ficar e
usar drogas em um pátio localizado na frente do edifício.
Ainda trata-se de uma
área pública, mas que está localizado em uma região de menor circulação de
pessoas.
Segundo os defensores
da estratégia, a proximidade do pátio com o centro de atendimento facilita para
que profissionais da saúde e policiais supervisionam o cotidiano dos
dependentes, ao mesmo tempo em que esse modelo pode ser visto como menos
intimidador pelos dependentes do que uma sala de uso supervisionado.
"Não é uma
solução completa, mas de certa forma ajuda a evitar que essas pessoas fiquem
espalhadas em áreas onde os moradores circulam e há estabelecimentos
comerciais", avalia Bernd Werse.
Fato é que os
responsáveis pela estratégia de Frankfurt acreditam que o modelo atual de
combate ao uso de drogas e acolhimento de dependentes, assim como as
estratégias aplicadas desde a década de 90, podem ser uma boa fonte de
inspiração para outras "cracolândias" ao redor do mundo.
"A disseminação
do crack não é um problema ou fenômeno inerente a Frankfurt e Hamburgo, mas
constitui uma realidade em muitas cidades de grande e médio porte da
Alemanha" e de outros países, diz Artur Schroers.
Fonte: BBC News Brasil
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