Brasil mata muito mais do que registram
números oficiais
Perto da hora do
almoço, o roçador Damião Pertile de Andrade, de 30 anos, tirou um intervalo do
trabalho e saiu para comprar uma marmita nas proximidades. Ele caminhava pelas
ruas da cidade de Pinhais, no Paraná, quando encontrou quatro policiais militares.
Três horas depois, o corpo de Damião chegou ao Instituto Médico Legal (IML).
O laudo da
médica-legista apontou que houve uma luta corporal entre a vítima e os agentes
do estado. O documento ainda descreveu uma hemorragia externa intensa nos dois
olhos, sangramento no nariz, escoriações nas mãos, punhos, ombro, cotovelo,
joelho, pé, além de uma fratura na perna esquerda. A família alega que a vítima
sofreu espancamento. O laudo, no entanto, foi inconclusivo. Onde deveria
constar o motivo da morte, há apenas a informação "causa
indeterminada".
No Brasil, quando uma
pessoa morre em um contexto de violência, como aconteceu com Damião, o corpo
vai para IML. Lá, a família recebe uma declaração de óbito, documento que
deveria mostrar a causa da morte, mas nem sempre é isso o que acontece. Algumas
vezes, mesmo quando o contexto é testemunhado, o documento marca um
contraditório "circunstância ignorada" ou "causa
indeterminada", o que faz com que o homicídio não seja contabilizado pelo
Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
A falta da informação
atestada pelo médico-legista exclui pessoas como Damião das estatísticas
oficiais de homicídios no Brasil e o coloca em uma outra que só cresce, a de
Morte Violenta por Causa Indeterminada (MVCI), que contempla os chamados
"homicídios ocultos".
Segundo o Atlas da
Violência de 2024, que usa dados organizados pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve
51,7 mil homicídios ocultos ocorridos entre 2012 e 2022 no Brasil. Somente em
2022, foram 5,9 mil assassinatos ignorados - uma maioria de jovens, negros, de
baixa escolaridade que deixaram de oficialmente engrossar o mapa da violência
no país.
"Meu filho morreu
algemado. Disseram que ele estava tendo um surto psicótico, mas ele estava
trabalhando. Não entendi porque mataram meu filho. Ele foi torturado até a
morte e no atestado não diz nada", reclama a mãe de Damião, a diarista
Ivonete Pertile, de 44 anos. Ivonete diz que conseguiu reunir cinco
testemunhas, pessoas que trabalhavam em uma lanchonete e oficina perto do local
do ocorrido, para relatar à polícia o que aconteceu no dia da morte do filho.
Na prática, o Brasil
mata mais do que seus indicadores epidemiológicos indicam e desconhece em que
circunstâncias essas mortes ocorreram. Realidade que impacta as políticas
públicas, defende o técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Daniel
Cerqueira, responsável pelo estudo. Ao mesmo tempo em que uma família não
recebe a chancela do Estado sobre a causa da morte de um ente querido, os
governos estaduais e federal passam a operar suas políticas de saúde e
segurança sem conhecer o real cenário da violência no território.
"Quando a gente
olha o percentual de mortes violentas com causa indeterminada em relação ao
total de mortes violentas e compara com os países desenvolvidos, a gente vê que
o nosso número está muito acima do que seria o desejável", afirma Cerqueira.
"Política de Segurança Pública é muito séria, e tem que ser feita baseada
em evidências do que funciona. Mas para isso você precisa saber como [a morte]
ocorre, quando ocorre, porque ocorre, para que a gente possa ministrar o
remédio adequado."
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Resultados são discrepantes nos estados
A situação,
entretanto, não é uniforme no país. Mais de 71% desses homicídios ocultos se
concentram em quatro estados na última década: São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro
e Minas Gerais. Os pesquisadores defendem que a ausência dessas estatísticas
leva, ainda, a mascarar as taxas de homicídios divulgadas pelos estados.
"Nesses estados e, sobretudo a partir de 2019, a gente percebe uma
deterioração na qualidade desses dados. E se isso acontece, nós temos um
termômetro quebrado", complementa Cerqueira.
Se os homicídios
ocultos de 2022 fossem somados às estatísticas oficiais, por exemplo, o estado
do Ceará saltaria cinco posições no ranking de homicídios por 100 mil
habitantes, saindo da décima para a quinta colocação. Movimento similar ao do
Rio de Janeiro, cujo índice avançaria de 21,4 mortos por 100 mil habitantes
para 26,2 - um aumento de 22,4%.
Já São Paulo, com 2,4
mil homicídios ocultos calculados naquele ano, deixaria de ser o estado com o
menor índice de violência do país e veria sua taxa de homicídios quase dobrar,
saltando de 6,8 para 12.
Se considerado todo o
período de 2012 a 2022, São Paulo foi o recordista de homicídios não
contabilizados, com 18,5 mil, seguido pela Bahia, que deixou de registrar 7,8
mil mortes. Segundo o Ipea, 1,6 mil homicídios foram classificados desta
maneira no Paraná, estado de Damião.
Os dados nacionais
escancaram, ainda, outra contradição: enquanto o número total de homicídios
registrados no país caiu 29,26% entre 2017 e 2022, o oposto aconteceu com os
homicídios ocultos, que aumentaram 67% no mesmo período. Hoje, ao menos 11,4%
dos assassinatos ficam fora das estatísticas.
Desde a morte do
filho, em março, Ivonete Petrile tem corrido atrás de provas que possam
comprovar o que ela acredita ter acontecido. Uma das que já conseguiu foi as
imagens de câmeras de segurança instaladas na rua onde Damião morreu.
"Para mim, foi um homicídio, ele foi assassinado. Eu quero que a justiça
aconteça, eles matam um ser humano que estava trabalhando, prestando serviço
para a prefeitura", afirma.
Procurada, a
Secretaria de Estado da Segurança Pública do Paraná (SESP/PR) não respondeu até
o fim desta reportagem sobre o resultado das investigações sobre a morte de
Damião Andrade.
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Metodologia revela desintegração entre Saúde e Segurança
No Brasil, as mortes
violentas são registradas de duas formas. Na área da saúde, é feita uma
declaração de óbito no IML, que é levada para gerar o atestado de óbito nos
cartórios. Neste documento, estão as informações descritas pelo médico-legista.
Na área da segurança, estão as informações do boletim de ocorrência registrado
na Polícia Civil, que pode conter detalhes dados pelos peritos e testemunhas do
ocorrido.
Para chegar ao número
de 51,7 mil homicídios "ocultos” no Brasil, a equipe do Ipea olhou para
esses dados da saúde e usou uma metodologia de machine learning, que estudou
como as 294,7 mil mortes violentas que o Estado não conseguiu identificar a causa
do óbito desde 1996 se relacionavam com os assassinatos registrados no Brasil
no período.
Essa análise é
possível pois a ficha de notificação preenchida pelo agente de saúde dispõe de
uma série de detalhes sobre a morte. O médico-legista tenta inferir, pela
condição do corpo, se aquela morte foi causada por terceiros (homicídio ou
acidente) ou pela própria pessoa (suicídio). O profissional também preenche
campos como o local do ocorrido - se foi em via pública ou em casa, por exemplo
- e o instrumento usado na ação - se foi uma faca, ou uma perfuração por arma
de fogo. Tudo isso gera padrões identificados pela pesquisa.
"No caso da morte
violenta, tem que ter a circunstância da morte para o médico-legista. Se o
médico-legista não tem a circunstância dessa morte, se ele fica em dúvida, ele
põe lá como indeterminado. Ele diz não sei se foi agressão, suicídio ou acidente",
afirma Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz.
Para chegar a essa
conclusão, o profissional também pode usar informações disponíveis nos boletins
de ocorrência policial. O problema é que nem sempre o documento está acessível
ou contém a informação. O perito criminal aposentado e membro do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP) Cássio Almeida de Rosa defende que, mesmo assim, há
indícios técnicos que favorecem essa conclusão como, por exemplo, se um corpo
tem dezenas de perfurações de um projétil de arma de fogo.
"Para cada
modalidade de morte, você tem os elementos que podem levar a você por concluir
por homicídio e suicídio. Se uma pessoa chega atingida por 10 projéteis de arma
de fogo, praticamente não tem como ser suicídio. É quase impossível. Assim como
não tem como ser um acidente", afirma Rosa. Essas informações, por outro
lado, devem ser contextualizadas com as informações obtidas no local do crime e
da investigação. "Se isso não acontece, é muito fácil incorrer em erro.
Por isso que muitas vezes ele [o médico-legista] deixa ignorado."
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Gestão da informação tem desafios
Especialistas ouvidos
pela DW são unânimes em considerar que o preenchimento desta etapa - e a forma
com as informações são tratadas na sequência - escancara os problemas de
integração entre a Saúde e a Segurança Pública como o principal fator que leva
ao desarranjo dos dados de mortes no país.
Isso acontece porque
no Brasil a divisão entre as pastas gera duas bases estatísticas sobre
homicídios. Uma delas é a do Ministério da Saúde, que tem objetivo
epidemiológico, ou seja, estrutura as informações sobre saúde de uma população
para gerar ações de prevenção. A outra é operada pela Segurança Pública dos
estados, coletada nos boletins de ocorrência e investigações policiais, para
fins de punição. O "homícidio", usado na ficha do sistema de saúde,
se equipara às mortes violentas intencionais, nos dados usados pela polícia.
Se o médico não tiver
informações cadavéricas suficientes para determinar um laudo de homicídio, há
ainda uma segunda instância de preenchimento dos dados no sistema, em que um
diagnóstico poderia ser complementado ou corrigido a partir das informações policiais,
cruzando o laudo médico com o resultado da perícia criminal e a investigação
policial feita em campo.
Segundo Cássio Rosa,
isso não acontece na maioria das vezes. "O que a gente precisa é que os
mecanismos de controle da informação sejam revistos e uniformizados. Você tem
que ter uma pessoa responsável por passar essa informação ao Ministério da Saúde
e ela não tem que se restringir ao laudo do IML. As diferentes agências têm que
se comunicar, já que estão lidando com um dado que é comum às duas", diz.
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Investigação criminal impacta os dados da saúde
Outro problema
identificado pelos especialistas é que, em alguns casos, a polícia não avança
nas investigações sobre uma morte, de modo que não conclui de forma oficial se
a vítima foi assassinada. Sem esta definição, mesmo que exista integração, o
sistema de saúde não consegue qualificar os seus dados.
"Pode haver essa
discrepância entre o número de mortes que a gente chama de homicídios no
sistema de saúde e na polícia mas tem um segundo motivo ainda que pode levar
que essas mortes terminem como causa indeterminado, que a própria polícia
muitas vezes não conseguiu aferir qual foi a causa do óbito", disse Daniel
Cerqueira.
"É um dado da
saúde, mas esse tipo de informação para mortes violentas depende do atestado
feito pelo IML, que está no âmbito da segurança pública, na polícia
técnico-científica", defende Cristina Neme.
Levantamento do
Instituto Sou da Paz, por exemplo, mostra que o Brasil esclareceu apenas 1 em
cada 3 homicídios nos últimos 7 anos. Casos de inquéritos nunca fechados se
acumulam, e dificultam o cruzamento de informações.
Para Neme, a distorção
também gera impunidade. "O prejuízo é que não tem investigação. Se fica
perdida como morte a esclarecer e foram homicídios pela polícia, ou foram uma
agressão de violência doméstica contra mulher, e fica como (causa) indeterminada,
não tem a investigação e a punição do culpado", afirma.
Em nota, o Ministério
da Justiça afirmou que a pasta firmou um acordo de cooperação técnica com o
Ministério da Saúde, para qualificar os registros de mortes por causas externas
inespecíficas, "com o objetivo de compartilhar dados e atualizar os registros
no SIM”. A integração também envolve parceria com o Conselho Federal de
Medicina para melhorar o preenchimento das Declarações de Óbito pelos médicos.
A pasta também aponta
que o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski enviou para avaliação do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma Proposta de Emenda Constitucional.
para tornar constitucional o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). "A
ideia é que a União tenha mais poderes para fazer um planejamento nacional de
segurança, sem prejuízo da competência dos Estados e do Distrito Federal de
legislarem sobre o tema", escreveu.
O estado de São Paulo
respondeu que, ao analisar os dados de 2022, "não foram encontradas
divergências significativas entre as duas fontes [saúde e segurança] em relação
ao número de homicídios". O Estado afirmou estar investiu num sistema, o SPVida,
que faz um monitoramento e análise dos casos registrados com vítimas fatais,
para diminuir a subnotificação.
Já o Rio de Janeiro
afirma que há convênio assinado entre a Secretaria de Saúde e o Instituto de
Segurança Pública, com o objetivo de aprimorar a informação e possui um núcleo
instituído entre as pastas para regular as informações. Segundo o estado, a iniciativa
ajudou a reduzir o percentual de mortes por causas indeterminadas. Minas Gerais
afirmou que trabalha em seu planejamento com os dados de Segurança "e
formula políticas públicas que são consideradas de sucesso a partir dessa
metodologia".
Fonte: Deutsche Welle
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