André Barbieri: ‘ Seria Marçal, fenômeno
“Javier Milei” no Brasil?’
A cizânia entre
Bolsonaro e Marçal no contexto das eleições de São Paulo, briga pública que
passou a catalisar a disputa pela base de extrema direita para as eleições presidenciais
de 2026, aumentou o interesse pela identificação entre o ultraliberal argentino
que chegou à presidência e o truão brasileiro que ainda tenta se consolidar.
João Cezar de Castro
Rocha, crítico literário e historiador da UERJ, afirma que Marçal apresenta a
superação radical de Bolsonaro e uma radicalização do fenômeno direitista, uma
espécie de Bolsonaro sem filtro que coloniza a política através da “economia da
atenção” (estratégia de promoção pública feita por meio de discursos
histriônicos). Transferindo os métodos comerciais das plataformas digitais para
a política, o candidato do PRTB assalariou uma tropa de funcionários para
torná-lo conhecido com reproduções das abjeções que fala em público. Com isso,
seu modelo performático emula quase à perfeição o de Javier Milei, que ascendeu
dessa maneira.
O analista Gustavo
Segré também identifica em Marçal o “fenômeno Milei”, em função do método de
erupção meteórica de uma figura desconhecida através da exploração das redes
sociais. A fixação pelo manuseio das plataformas digitais foi uma
característica da própria ascensão de Bolsonaro, que misturava o rebotalho do
submundo das redes com semi-ideólogos de extrema direita, por ora ausentes no
caso de Marçal. Outras análises, como a de Júlia Barbon, procuram associar
Milei e Marçal na esfera da construção simbólica, dos discursos destrutivos que
representariam a verdadeira face da política “antissistema”: o “leão” mileísta
- fantasia de força na psicologia frágil da submissão ao poder econômico - é
replicado com o “M” do goiano.
Efetivamente, há
suficientes razões para a associação entre Marçal e Milei. Há entre eles
significativas similitudes na forma do fazer política, sendo ambos empresários
do entretenimento individual (quer televisivo, quer motivacional) que tiveram à
disposição o capital necessário para edificar exércitos nas redes sociais para
divulgar suas opiniões reacionárias, sua Weltanschauung de extrema direita.
Ambos utilizaram o método Andrew Tate de exploração das redes (contratação de
milhares de jovens que competiam entre si para ver quem fornecia cortes de
vídeo com maior viralização). Milei e Marçal são talibãs do neoliberalismo,
soldados fundamentalistas do sistema do capital em crise em todo o mundo.
Porta-bandeiras do empreendedorismo, sinônimo de precarização do trabalho e
desemprego. Autointitulados outsiders inimigos do “sistema”, falam com fortes
doses de improviso; em ambos, não é difícil encontrar delírios místicos ou
narrativas messiânicas. Javier Milei, quando em campanha, foi utilizado pela
burguesia argentina para girar as eleições o máximo possível à direita, antes
de migrar a ele; Marçal agora é utilizado da mesma forma pela burguesia da
Faria Lima, que já sente dificuldade em esconder o discreto encanto que o
ex-coach ligado ao crime organizado lhe exerce.
• Bases da radicalização do trumpismo na
América Latina
Espécimes como Javier
Milei e Pablo Marçal, assim como anteriormente Jair Bolsonaro e Nayib Bukele,
são a representação putrefata da degradação social e econômica da América
Latina, provocada pelo atraso e dependência de uma burguesia decadente. A
América Latina foi na década de 2000 um dos dínamos da economia mundial, mas
apenas em função do alto preço contingencial das matérias-primas no mercado
exterior. A bonança de países como Brasil e Argentina dependia da entrada de
dólares fruto da exportação de commodities como grãos de soja, carne bovina,
petróleo e minério de ferro, um ciclo econômico expansivo que permitia certas
concessões sociais e o êxito, parcial e limitado, de projetos nacionais como o
lulismo no Brasil ou o kirchnerismo na Argentina (enquanto estas forças
protegiam e promoviam a propriedade privada dos capitalistas, mantinham a
região no atraso e dependência de atividades primário-extrativistas e faziam
todo tipo de alianças com a direita). Quando a crise de 2008 se abateu sobre o
país e fez secar a voracidade chinesa e a entrada de dólares, o ciclo político
se inverteu. A contração na economia implicou imediata contração nas concessões
políticas. A burguesia passou a impulsionar, às vezes aberta, às vezes
veladamente, monstruosidades de extrema direita que tinham sido nutridas por
anos de conciliação, a fim de aplicar graúdos ajustes econômicos contra as
massas. A América Latina é hoje a região com menor projeção de crescimento
econômico no mundo, com um PIB paralisado e com taxas de pobreza estonteantes,
como é o caso da Argentina (com Milei, a taxa de pobreza alcança mais de 60% do
país, como mostra a Universidade Católica).
Essa situação, por
definição, tende a seguir projetando aberrações da extrema direita. O marxista
sardo Antonio Gramsci assinala que os fracassos de grandes empreendimentos
burgueses são respondidos pela classe dominante com a confecção tentativa de
líderes carismáticos que tratam de colocar ordem ao caos e evitar a guerra
civil. “Quando se verificam estas crises, a situação imediata torna-se delicada
e perigosa, pois abre-se o campo às soluções de força, à atividade de potências
ocultas representadas pelos homens providenciais e carismáticos [...] Quando a
crise não encontra uma solução orgânica, mas sim a do chefe carismático, isso
significa que existe um equilíbrio estático (cujos fatores podem ser muito
variados, mas entre os quais prevalece a imaturidade das forças progressistas)
que nenhum grupo, nem o conservador nem o progressista, dispõe da força
necessária para vencer”. Voltaremos adiante à questão da imaturidade das forças
progressistas, de que fala Gramsci. Mas é preciso acrescentar a essa reflexão
que tais projetos carismáticos - que para Leon Trótski seriam distintas
gradações de bonapartismo - são hoje parte constituinte da crise de autoridade
estatal, ou crise de hegemonia burguesa, e não sua solução. Na ausência de
novos motores para projetos hegemônicos, a burguesia se vê na obrigação de
lançar mão de sucessivas tentativas de saída reacionária, uma mais impotente
que a outra. A Bolsonaro, pode-se seguir Marçal. A Trump, pode-se seguir J.D.
Vance. E no curso desses choques, radicaliza-se as postulações da extrema
direita na mesma medida em que se mostram impotentes para resolver o problema
orgânico.
• Aproximações e diferenças
A decadência das
burguesias nacionais latino-americanas é heterogênea e tem ritmos diferentes
segundo cada país. Portanto, não admira haver diferenças entre os processos que
alçaram Milei em 2023, e Marçal hoje. Milei inaugurou na Argentina o fenômeno
de extrema direita que atravessou o mundo a partir de 2016, com o Brexit no
Reino Unido e com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Representou de
maneira distorcida (porque nem sempre com identificação ideológica) o hartazgo
ou cansaço de massas contra as duas coalizões tradicionais da burguesia
argentina, o peronismo e a direita antiperonista - ambas as quais que, com
Cristina Kirchner, Mauricio Macri, Alberto Fernández, haviam levado o país à
catástrofe. Como afirmou Christian Castillo, deputado federal do PTS na Frente
de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade (FITU), “Milei é filho das políticas
pró-FMI que o peronismo aplicou em quatro anos, e avança porque o peronismo lhe
dá bastante espaço”.
Marçal é uma novidade
sem ser um pioneiro, já que no Brasil o símbolo da extrema direita é Bolsonaro,
catapultado à presidência da República como filho ilegítimo de um golpe
institucional pró-imperialista promovido pela Operação Lava Jato. Isso é
importante. Muitas das características de Marçal são tiradas do playbook de
Bolsonaro, a quem tem de prestar homenagem. Mais importante, o fenômeno Marçal
surgiu na arena já como franco-atirador na disputa pela coroa da extrema
direita, representando uma reação à institucionalização de Bolsonaro, como
dissemos aqui.
Isso gera muitas
tensões e contradições, pois como assinala Fernando Exman, fica patente que o
bolsonarismo é maior que Bolsonaro, o que poderia significar choques e reformas
no interior do amplo segmento de extrema direita no Brasil. “Como você disse: eles
vão sentir saudades de nós”, escreveu Marçal, contestado rapidamente por
Bolsonaro: “Nós? Um abraço.” Em réplica, Marçal afirmou ter doado R$100 mil à
candidatura de Bolsonaro à presidência e ajudado na estratégia digital da
campanha. O embate prosseguiu com outros integrantes da claque bolsonarista. O
deputado federal Eduardo Bolsonaro tratou de desqualificar Marçal e o PRTB,
pelo vínculo com o crime organizado (a ironia é gratuita). O vereador Carlos
Bolsonaro, do Rio de Janeiro, escreveu que cogitaria o voto em Marina Helena,
do Novo. Depois que Tarcísio de Freitas anunciou, comicamente, que não tinha
preferências eleitorais entre Marçal e Boulos, Eduardo e Carlos sinalizaram que
apoiariam Marçal em um eventual segundo turno (deixando o governador de São
Paulo pendurado no vazio). Enquanto isso, Bolsonaro e seu clã correm contra o
tempo para parir um segundo turno a Ricardo Nunes, e aplicar uma derrota ao
candidato do PRTB. Nada está definido, e a disputa pela base votante
reacionária de direita em São Paulo segue a todo vapor.
Milei usou e abusou do
personagem de salvador da nação mas, ao menos em campanha, não exibia o
discurso de alguém “eleito por Deus”, dirigido ao público evangélico. Marçal
segue o script do predecessor e aposta na figura eleita por Deus para “com o
povo, enfrentar todos eles”, buscando aproximar-se dos evangélicos - embora sua
teologia da prosperidade individual não aceite a mediação religiosa, e seja um
desafio aos mandarins evangélicos. Diz que “a igreja não tem quatro paredes,
tem duas pernas, eu e você somos igreja”, uma ética protestante similar à
estudada pelo sociólogo conservador Max Weber. Não à toa, Silas Malafaia,
Sóstenes Cavalcante e outras lideranças evangélicas atacam Marçal em defesa de
Bolsonaro, adepto do controle tradicional das cúpulas evangélicas sobre os seus
fiéis.
Do ponto de vista da
estrutura partidária, Milei não provinha de nenhuma das duas coalizões centrais
da política argentina (nem do peronismo, nem do macrismo), e teve de criar à
queima-roupa um arremedo de partido, La Libertad Avanza. Marçal, embora não venha
do métier político, já passou por siglas do Centrão, como o PROS e o
Solidariedade, e agora candidata-se pelo PRTB, um dos partidos fisiológicos
mais obscurantistas do país, envolvido com o tráfico e com o PCC. Isso já lhe
rende títulos de jornais e ataques de adversários dos quais não consegue se
desvencilhar, ele, que é já condenado por envolvimento em quadrilha que roubava
contas bancárias pela Internet.
Mas a analogia nos
interessa porque expressa características genéticas da extrema direita hoje. O
ascenso meteórico de Milei e de Marçal foi alcançado estimulando o sentimento
da antipolítica nas massas. Efetivamente, o discurso político de Milei na Argentina
esteve fundado na “luta contra a casta”, contra o “sistema político”, erguendo
a motosserra para “eliminar os privilégios que o povo argentino está cansado de
ver”. Uma vez no governo, mostrou que o que entendia por “casta” era a própria
massa de milhões de trabalhadores e pobres. Articulou-se com toda a “velha
casta política”, oferecendo inúmeros privilégios aos políticos tradicionais,
para que fosse aprovado o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que
representava um ataque econômico ultraliberal contra o conjunto da população
pobre e trabalhadora no país. Fracassada a primeira tentativa no Congresso,
vendo derrotado seu projeto pelas mobilizações nas ruas - apesar da colaboração
passiva das direções sindicais peronistas - Milei reativou as negociações para
a aprovação da Lei de Bases, um projeto semelhante, que foi aprovado mediante
entrega de cargos, benesses e todo tipo de artifício fisiológico - com a
colaboração da direita, do radicalismo (UCR) e inclusive do peronismo. Passagem
express da antipolítica para nababo da casta governante argentina, ainda que
cause curto-circuitos na estrutura política mainstream.
Marçal também
apresenta o figurino da antipolítica, e ao menos no discurso de campanha,
reverbera aquilo que João Cezar de Castro Rocha considera como a destruição da
política. Projeta sua figura como aquele que está “sozinho, atacado por todo o
sistema”, odiado por aquilo que Milei chamava de “casta”, que anuncia estar
preparado para eliminar. “Deixa que eu resolvo” é a fórmula personalista do
novo aspirante a líder carismático da direita, que faria aquilo que Bolsonaro
não fez. De fato, Marçal tenta no possível explorar a institucionalização da
extrema direita levada a cabo por Bolsonaro (Tarcísio de Freitas é o símbolo
máximo disso). Diante da supressão de suas redes sociais pela Justiça
Eleitoral, Marçal lançou nova campanha como vítima de perseguição “daquilo que
está aí”, com o lema “coloca pressão, que o sistema inteiro se assusta”. Os
traços messiânicos da mensagem estão inscritos no chamado à população a
multiplicar suas aparições nas redes, uma personificação do político que,
“junto ao povo, vai acabar com a política” - sorrateiramente piscando ao regime
político, chamando um “cessar-fogo” com Lula se eleito.
Esse discurso da
antipolítica é atrativo para amplas massas, castigadas pelo flagelo da crise
capitalista e desconfiadas de toda a estrutura política baseada na substituição
dos partidos enraizados socialmente para formações fisiológicas
superestruturalizadas. Milei e Marçal dão a esse discurso o sentido específico
do antipartidarismo, ainda que se sirvam da forma partido, e buscam
substituí-la pela veneração ao “líder”. Milei criou um semi-partido próprio que
considera mero instrumento de seu movimento paleolibertário, e Marçal diz que
foi obrigado a contragosto a entrar em partidos para disputar eleições. Em todo
caso, seriam veículos para o estrelato do indivíduo. Como vimos com Bolsonaro,
muitas vezes esse culto à personalidade da direita se apoia em valores vagos e
incoerentes, sintetizados em fórmulas curtas que adquirem a solidez dos ditos
populares.
Gramsci estudou esse
fenômeno nos Cadernos do Cárcere. Em seu diálogo crítico com a obra do
politólogo Robert Michels acerca dos sistemas partidários, reflete a dimensão
existente, na extrema direita, entre a organização e o papel da liderança como
“intérprete insubstituível” dos objetivos das massas desesperadas. Examina a
questão da forma partido em seu sentido lato, o de tendência política
específica (como no caso da extrema direita), diz: Mussolini é outro exemplo de
líder partidário que tem algo de profeta e crente [...] Com ele, também a noção
do axioma: “o partido sou eu” teve o máximo desenvolvimento [...] Além do mais,
o chamado “carisma”, no sentido de Michels, coincide sempre no mundo moderno
com uma fase primitiva dos partidos de massa, com a fase em que a doutrina se
apresenta às massas como algo nebuloso e incoerente, que necessita de um papa
infalível para ser interpretada e adaptada às circunstâncias.
Gramsci adverte, ao
mesmo tempo, que por trás de toda incoerência há um programa, que necessita ser
combatido pela esquerda socialista. “Em certos momentos de ‘anarquia
permanente’ devida ao equilíbrio estático das forças em luta, um homem
representa a ‘ordem’, isto é, a ruptura por meios excepcionais do equilíbrio
mortal, e em torno dele se agrupam os ‘amedrontados’, as ‘ovelhas hidrófobas’
da pequena burguesia: mas há sempre um programa, mesmo que genérico, e genérico
exatamente porque tende apenas a readaptar a cobertura política exterior a um
conteúdo social”.
Precisamente, há um
programa (e uma ideologia) por trás dos discursos vagos e incoerentes sobre
“deixa que eu resolvo”, “sou eu e o povo contra todos” e similares. A
antipolítica é o correlato ideológico da política neoliberal de eliminar todos
os obstáculos possíveis para o livre automatismo do mercado. Como dizem Dardot
e Laval em A Nova Razão do Mundo, a antipolítica serve aos interesses de um
tipo de governo cuja essência é determinada pela desobstrução de todas as
travas para a valorização do capital. Não é segredo que para Milei o mundo se
reduz ao indivíduo empreendedor que, pisoteando os demais, cria a riqueza por
sua própria força e criatividade. Tanto assim que o DNU e a Lei de Bases,
considerados pela extrema direita argentina como o elixir da juventude de uma
economia em frangalhos, foram escritos pelos próprios empresários bilionários
que se beneficiarão delas (a reforma trabalhista de Milei teve suas cláusulas
feitas à medida dos “mega-empreendedores” de Techint, Mercado Livre, Ledesma e
diversas patronais da Associação Empresarial Argentina). Marçal é também um
sacerdote do empreendedorismo e do fundamentalismo individualista neoliberal,
ao ponto de defender em debates eleitorais a construção de “programas para
criação de novos empresários nas escolas públicas” como combate à esquerda. Em
suas peças publicitárias como “coach” incentiva os jovens a abandonar a CLT e
empreender, e em campanha chegou a fazer vídeo insinuando demagogicamente uma
carteira de trabalho, a fim de convencer o mundo de que a felicidade está em um
emprego com salários de miséria. Tanto para Milei como para Marçal, a
ideologia-programa do empreendedorismo tem apenas um significado: precarização
e deterioração completa do trabalho.
Essa
ideologia-programa de ataque em regra a tudo o que é coletivo se expressa no
agudo anticomunismo de ambos. Ironicamente, Marçal buscou competir com o
bolsonarismo na capacidade de cada de “eliminar o comunismo”. A Eduardo
Bolsonaro, afirmou que teria muito mais eficácia em tirar essa “cambada de
comunistas” de São Paulo (em que inclui, comicamente, seres como “Ricardo
Nunes, o PMDB e o PSDB”). Em outra oportunidade, disse que não era comunista
porque seria um “governalista, ou seja, você cuidar da sua vida primeira para
depois cuidar dos outros”. Javier Milei construiu sua campanha ideologicamente
contra aquilo que entendia por comunismo, com toda a ignorância da extrema
direita sobre o tema. Qualificou o comunismo de “satânico e cancerígeno” e uma
“enfermidade da alma”. Efetivamente, no debate presidencial argentino perguntou
à candidata da esquerda socialista, Myriam Bregman (dirigente do PTS,
ex-deputada federal pela FITU), por que queria “instalar na Argentina o
comunismo, que foi um fracasso no terreno econômico, social e cultural, além de
ter assassinado 150 milhões de pessoas”. Bregman contestou categoricamente:
“Javier Milei, não sei se quem te disse isso foi Macri em um momento de
inutilidade de vocês dois, mas na verdade isso que diz é falso, uma fake news
de características enormes, que se repete por aí, mas não porque se repete
pelas redes sociais passa a ser verdade. Por que vocês repetem essas besteiras?
Porque precisam ocultar que defendem um sistema capitalista em que 30% dos
alimentos produzidos são jogados fora, enquanto crianças morrem de fome, porque
defende um sistema baseado no roubo do trabalho assalariado. Nós pelo contrário
- eu sou socialista, Milei - defendemos que todos os recursos da economia
possam ser planificados em função das necessidades sociais, e não de um punhado
de ricos, que vocês defende”.
Esse anticomunismo é a
maneira com que se opõem à verdade de que toda a riqueza humana construída até
hoje foi fruto da cooperação do trabalho em íntima relação com a natureza. Como
assinalam Emilio Albamonte e Matias Maiello, a potência da cooperação do
trabalho é a que permite criar não apenas novas forças materiais, mas novas
fases da civilização humana - e para obstar isso, o capitalismo é obrigado a
apropriar-se permanentemente do trabalho cooperativo. O único “mérito” - se é
que se pode dizer assim - do indivíduo empreendedor é aplicar os artifícios
mais eficientes para roubar o produto do trabalho cooperativo, e escravizá-lo
como condição para a continuidade da acumulação ampliada do capital. Essa é a
razão central de por que apenas uma grande batalha anticapitalista no terreno
político, mas também ideológico-cultural, pode enfrentar a extrema direita,
adepta sagaz da exploração máxima do trabalho.
• Uma esquerda que deseja radicalizar a
luta contra a extrema direita e o capital
E aqui podemos voltar
ao tema da imaturidade das forças progressistas, de que falava Gramsci. No caso
de São Paulo, Guilherme Boulos do PSOL é a consubstanciação do oposto do
necessário para enfrentar Marçal e a extrema direita. Mesmo do ponto de vista estritamente
eleitoral, Boulos omite conscientemente que o empreendedor Marçal tem um
programa aberto para que os trabalhadores e a população pobre trabalhe até
morrer. Elege não opor-se às bases da exploração capitalista, que Marçal
compartilha com Nunes e Tarcísio - distintos tons de bolsonarismo - e que eleva
à máxima potência. Ao contrário, Boulos usa mimeticamente os mesmos argumentos
aceitos e ditados pela fração da classe dominante que está reunida ao redor da
Frente Ampla Lula-Alckmin, beneficiada por ataques neoliberais do governo
federal, como o Arcabouço Fiscal e os cortes orçamentários na Saúde e na
Educação.
Junto com a liberal
Tábata Amaral, Boulos não se cansa de dizer que Marçal é um bandido.
Entretanto, deixa intocada a reforma trabalhista - também impulsionada por sua
vice, a golpista Marta Suplicy - que Marçal defende em nome da destruição dos
direitos laborais no altar da ditadura patronal nas fábricas, empresas e
plataformas. Boulos não defende plenos direitos trabalhistas a todos como
contraponto ao empreendedorismo neoliberal de Marçal. Recrutou para seu
gabinete um coronel da Polícia Militar que era Comandante da Rota na ocasião da
chacina de Osasco e Barueri, mimetizando Nunes, que também havia recrutado um
comandante da Rota para seu projeto de governo. Dialoga com os empresários e
com as cúpulas evangélicas, assegurando que não problematizará a privatização
da Sabesp feita por Tarcísio. Eliminou do seu programa a defesa da legalização
das drogas, pareando-se com o sentimento conservador imposto pela perseguição
policial à juventude negra. Quer “cuidar de São Paulo” e “combater
desigualdades” sem tocar no trabalho organizado pela agenda do golpe
institucional. Uma consciente direitização a fim de ser aceito como “um igual”
pelos verdadeiros dirigentes econômicos da cidade que pretende governar.
Gramsci advertia que
“na luta política, não se pode imitar os métodos de luta das classes
dominantes, sem cair em emboscadas fáceis”. De fato, tais métodos colaboram com
a emboscada dos experimentos de radicalização da extrema direita. Com Lula,
Alckmin e Marta Suplicy, Boulos assumiu o compromisso de preservar a ordem do
capitalismo asselvajado no Brasil pós-golpe institucional, que para solucionar
suas constantes crises produz em série Bolsonaros, Tarcísios, Marçais.
Contra Javier Milei na
Argentina, a esquerda atua de maneira bem distinta. O comportamento político do
Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), que encabeça a Frente de Esquerda
e dos Trabalhadores, é de choque programático e ideológico frontal contra a
extrema direita mileísta. Enquanto o peronismo em suas diversas faces,
incluindo o kirchnerismo, colabora através dos sindicatos e da superestrutura
estatal para preservar o equilíbrio do governo Milei, a esquerda argentina
aposta na mobilização nas ruas e na luta de classes. Inclusive com uma presença
histórica no Congresso Nacional, utiliza suas bancadas para impulsionar a luta
extraparlamentar, convocando no próprio parlamento as mobilizações contra o DNU
e a Lei de Bases, contra a proposta de corte orçamentário na educação pública,
em defesa dos aposentados e contra as demissões. Levanta um programa
anticapitalista de 10 pontos para unir os trabalhadores, as mulheres e a
juventude contra o empreendedorismo ultraliberal de Milei, na defesa do aumento
salarial automático indexado à inflação; dos serviços públicos de qualidade
administrados pelos trabalhadores; do meio ambiente com o fim do extrativismo
capitalista; da redução da jornada de trabalho a 30h semanais, sem redução
salarial, para por fim ao desemprego; do fim da submissão ao FMI, com a
abolição do pagamento da fraudulenta dívida pública e o monopolío do comércio
exterior; entre outros.
Ademais, na Argentina
vemos uma esquerda que elabora teoricamente, que produz ideologicamente de
forma constante em defesa do marxismo e das ideias socialistas, com elaborações
teóricas virtuais e a publicação impressa de livros e brochuras, a fim de recriar
na nova geração de jovens e trabalhadores o imaginário do comunismo em diálogo
com as atuais tendências de pensamento.
Uma esquerda que está
disposta a radicalizar programática e ideologicamente o enfrentamento contra a
extrema direita, o Judiciário e toda a ordem capitalista está ganhando
prestígio, tem apelo em segmentos influenciados pelo peronismo e cresce como
nunca na Argentina. Prepara o futuro. Trata-se de um exemplo para a esquerda
brasileira. No Brasil, um enfrentamento dessa natureza exige um compromisso com
a força da mobilização e da luta dos trabalhadores, dos negros, das mulheres,
dos LGBTs, dos indígenas e todos os setores oprimidos, com um programa que
ataque os fundamentos da dependência e do atraso capitalistas que produzem
mosntruosidades como Marçal. Um combate integral, que se proponha a revogação
imediata de todas as reformas: reforma trabalhista, reforma da previdência,
novo ensino médio, lei da terceirização irrestrita; a revogação do arcabouço
fiscal; a abolição de quaisquer privilégios do agronegócio que destrói o meio
ambiente, como o Plano Safra; o atendimento imediato das reivindicações das greves
em curso; o fim da terceirização e da uberização do trabalho, pela efetivação
dos terceirizados e por plenos direitos laborais a todos; nenhum corte na
educação e na saúde, mais verbas para as universidades federais e estaduais,
seguindo o exemplo da luta da UERJ.
O grande desafio é
construir uma força de esquerda socialista no Brasil e na América Latina que
saiba o que quer, e vá além dos limites permitidos pela ordem no enfrentamento
contra a extrema direita e o capital. Só assim pode-se interferir decisivamente
no eterno retorno das novas faces do trumpismo que seguirão surgindo no curso
da crise capitalista.
Fonte: Esquerda Diário
Nenhum comentário:
Postar um comentário