quinta-feira, 5 de setembro de 2024

André Barbieri: ‘ Seria Marçal, fenômeno “Javier Milei” no Brasil?’

A cizânia entre Bolsonaro e Marçal no contexto das eleições de São Paulo, briga pública que passou a catalisar a disputa pela base de extrema direita para as eleições presidenciais de 2026, aumentou o interesse pela identificação entre o ultraliberal argentino que chegou à presidência e o truão brasileiro que ainda tenta se consolidar.

João Cezar de Castro Rocha, crítico literário e historiador da UERJ, afirma que Marçal apresenta a superação radical de Bolsonaro e uma radicalização do fenômeno direitista, uma espécie de Bolsonaro sem filtro que coloniza a política através da “economia da atenção” (estratégia de promoção pública feita por meio de discursos histriônicos). Transferindo os métodos comerciais das plataformas digitais para a política, o candidato do PRTB assalariou uma tropa de funcionários para torná-lo conhecido com reproduções das abjeções que fala em público. Com isso, seu modelo performático emula quase à perfeição o de Javier Milei, que ascendeu dessa maneira.

O analista Gustavo Segré também identifica em Marçal o “fenômeno Milei”, em função do método de erupção meteórica de uma figura desconhecida através da exploração das redes sociais. A fixação pelo manuseio das plataformas digitais foi uma característica da própria ascensão de Bolsonaro, que misturava o rebotalho do submundo das redes com semi-ideólogos de extrema direita, por ora ausentes no caso de Marçal. Outras análises, como a de Júlia Barbon, procuram associar Milei e Marçal na esfera da construção simbólica, dos discursos destrutivos que representariam a verdadeira face da política “antissistema”: o “leão” mileísta - fantasia de força na psicologia frágil da submissão ao poder econômico - é replicado com o “M” do goiano.

Efetivamente, há suficientes razões para a associação entre Marçal e Milei. Há entre eles significativas similitudes na forma do fazer política, sendo ambos empresários do entretenimento individual (quer televisivo, quer motivacional) que tiveram à disposição o capital necessário para edificar exércitos nas redes sociais para divulgar suas opiniões reacionárias, sua Weltanschauung de extrema direita. Ambos utilizaram o método Andrew Tate de exploração das redes (contratação de milhares de jovens que competiam entre si para ver quem fornecia cortes de vídeo com maior viralização). Milei e Marçal são talibãs do neoliberalismo, soldados fundamentalistas do sistema do capital em crise em todo o mundo. Porta-bandeiras do empreendedorismo, sinônimo de precarização do trabalho e desemprego. Autointitulados outsiders inimigos do “sistema”, falam com fortes doses de improviso; em ambos, não é difícil encontrar delírios místicos ou narrativas messiânicas. Javier Milei, quando em campanha, foi utilizado pela burguesia argentina para girar as eleições o máximo possível à direita, antes de migrar a ele; Marçal agora é utilizado da mesma forma pela burguesia da Faria Lima, que já sente dificuldade em esconder o discreto encanto que o ex-coach ligado ao crime organizado lhe exerce.

•        Bases da radicalização do trumpismo na América Latina

Espécimes como Javier Milei e Pablo Marçal, assim como anteriormente Jair Bolsonaro e Nayib Bukele, são a representação putrefata da degradação social e econômica da América Latina, provocada pelo atraso e dependência de uma burguesia decadente. A América Latina foi na década de 2000 um dos dínamos da economia mundial, mas apenas em função do alto preço contingencial das matérias-primas no mercado exterior. A bonança de países como Brasil e Argentina dependia da entrada de dólares fruto da exportação de commodities como grãos de soja, carne bovina, petróleo e minério de ferro, um ciclo econômico expansivo que permitia certas concessões sociais e o êxito, parcial e limitado, de projetos nacionais como o lulismo no Brasil ou o kirchnerismo na Argentina (enquanto estas forças protegiam e promoviam a propriedade privada dos capitalistas, mantinham a região no atraso e dependência de atividades primário-extrativistas e faziam todo tipo de alianças com a direita). Quando a crise de 2008 se abateu sobre o país e fez secar a voracidade chinesa e a entrada de dólares, o ciclo político se inverteu. A contração na economia implicou imediata contração nas concessões políticas. A burguesia passou a impulsionar, às vezes aberta, às vezes veladamente, monstruosidades de extrema direita que tinham sido nutridas por anos de conciliação, a fim de aplicar graúdos ajustes econômicos contra as massas. A América Latina é hoje a região com menor projeção de crescimento econômico no mundo, com um PIB paralisado e com taxas de pobreza estonteantes, como é o caso da Argentina (com Milei, a taxa de pobreza alcança mais de 60% do país, como mostra a Universidade Católica).

Essa situação, por definição, tende a seguir projetando aberrações da extrema direita. O marxista sardo Antonio Gramsci assinala que os fracassos de grandes empreendimentos burgueses são respondidos pela classe dominante com a confecção tentativa de líderes carismáticos que tratam de colocar ordem ao caos e evitar a guerra civil. “Quando se verificam estas crises, a situação imediata torna-se delicada e perigosa, pois abre-se o campo às soluções de força, à atividade de potências ocultas representadas pelos homens providenciais e carismáticos [...] Quando a crise não encontra uma solução orgânica, mas sim a do chefe carismático, isso significa que existe um equilíbrio estático (cujos fatores podem ser muito variados, mas entre os quais prevalece a imaturidade das forças progressistas) que nenhum grupo, nem o conservador nem o progressista, dispõe da força necessária para vencer”. Voltaremos adiante à questão da imaturidade das forças progressistas, de que fala Gramsci. Mas é preciso acrescentar a essa reflexão que tais projetos carismáticos - que para Leon Trótski seriam distintas gradações de bonapartismo - são hoje parte constituinte da crise de autoridade estatal, ou crise de hegemonia burguesa, e não sua solução. Na ausência de novos motores para projetos hegemônicos, a burguesia se vê na obrigação de lançar mão de sucessivas tentativas de saída reacionária, uma mais impotente que a outra. A Bolsonaro, pode-se seguir Marçal. A Trump, pode-se seguir J.D. Vance. E no curso desses choques, radicaliza-se as postulações da extrema direita na mesma medida em que se mostram impotentes para resolver o problema orgânico.

•        Aproximações e diferenças

A decadência das burguesias nacionais latino-americanas é heterogênea e tem ritmos diferentes segundo cada país. Portanto, não admira haver diferenças entre os processos que alçaram Milei em 2023, e Marçal hoje. Milei inaugurou na Argentina o fenômeno de extrema direita que atravessou o mundo a partir de 2016, com o Brexit no Reino Unido e com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Representou de maneira distorcida (porque nem sempre com identificação ideológica) o hartazgo ou cansaço de massas contra as duas coalizões tradicionais da burguesia argentina, o peronismo e a direita antiperonista - ambas as quais que, com Cristina Kirchner, Mauricio Macri, Alberto Fernández, haviam levado o país à catástrofe. Como afirmou Christian Castillo, deputado federal do PTS na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade (FITU), “Milei é filho das políticas pró-FMI que o peronismo aplicou em quatro anos, e avança porque o peronismo lhe dá bastante espaço”.

Marçal é uma novidade sem ser um pioneiro, já que no Brasil o símbolo da extrema direita é Bolsonaro, catapultado à presidência da República como filho ilegítimo de um golpe institucional pró-imperialista promovido pela Operação Lava Jato. Isso é importante. Muitas das características de Marçal são tiradas do playbook de Bolsonaro, a quem tem de prestar homenagem. Mais importante, o fenômeno Marçal surgiu na arena já como franco-atirador na disputa pela coroa da extrema direita, representando uma reação à institucionalização de Bolsonaro, como dissemos aqui.

Isso gera muitas tensões e contradições, pois como assinala Fernando Exman, fica patente que o bolsonarismo é maior que Bolsonaro, o que poderia significar choques e reformas no interior do amplo segmento de extrema direita no Brasil. “Como você disse: eles vão sentir saudades de nós”, escreveu Marçal, contestado rapidamente por Bolsonaro: “Nós? Um abraço.” Em réplica, Marçal afirmou ter doado R$100 mil à candidatura de Bolsonaro à presidência e ajudado na estratégia digital da campanha. O embate prosseguiu com outros integrantes da claque bolsonarista. O deputado federal Eduardo Bolsonaro tratou de desqualificar Marçal e o PRTB, pelo vínculo com o crime organizado (a ironia é gratuita). O vereador Carlos Bolsonaro, do Rio de Janeiro, escreveu que cogitaria o voto em Marina Helena, do Novo. Depois que Tarcísio de Freitas anunciou, comicamente, que não tinha preferências eleitorais entre Marçal e Boulos, Eduardo e Carlos sinalizaram que apoiariam Marçal em um eventual segundo turno (deixando o governador de São Paulo pendurado no vazio). Enquanto isso, Bolsonaro e seu clã correm contra o tempo para parir um segundo turno a Ricardo Nunes, e aplicar uma derrota ao candidato do PRTB. Nada está definido, e a disputa pela base votante reacionária de direita em São Paulo segue a todo vapor.

Milei usou e abusou do personagem de salvador da nação mas, ao menos em campanha, não exibia o discurso de alguém “eleito por Deus”, dirigido ao público evangélico. Marçal segue o script do predecessor e aposta na figura eleita por Deus para “com o povo, enfrentar todos eles”, buscando aproximar-se dos evangélicos - embora sua teologia da prosperidade individual não aceite a mediação religiosa, e seja um desafio aos mandarins evangélicos. Diz que “a igreja não tem quatro paredes, tem duas pernas, eu e você somos igreja”, uma ética protestante similar à estudada pelo sociólogo conservador Max Weber. Não à toa, Silas Malafaia, Sóstenes Cavalcante e outras lideranças evangélicas atacam Marçal em defesa de Bolsonaro, adepto do controle tradicional das cúpulas evangélicas sobre os seus fiéis.

Do ponto de vista da estrutura partidária, Milei não provinha de nenhuma das duas coalizões centrais da política argentina (nem do peronismo, nem do macrismo), e teve de criar à queima-roupa um arremedo de partido, La Libertad Avanza. Marçal, embora não venha do métier político, já passou por siglas do Centrão, como o PROS e o Solidariedade, e agora candidata-se pelo PRTB, um dos partidos fisiológicos mais obscurantistas do país, envolvido com o tráfico e com o PCC. Isso já lhe rende títulos de jornais e ataques de adversários dos quais não consegue se desvencilhar, ele, que é já condenado por envolvimento em quadrilha que roubava contas bancárias pela Internet.

Mas a analogia nos interessa porque expressa características genéticas da extrema direita hoje. O ascenso meteórico de Milei e de Marçal foi alcançado estimulando o sentimento da antipolítica nas massas. Efetivamente, o discurso político de Milei na Argentina esteve fundado na “luta contra a casta”, contra o “sistema político”, erguendo a motosserra para “eliminar os privilégios que o povo argentino está cansado de ver”. Uma vez no governo, mostrou que o que entendia por “casta” era a própria massa de milhões de trabalhadores e pobres. Articulou-se com toda a “velha casta política”, oferecendo inúmeros privilégios aos políticos tradicionais, para que fosse aprovado o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que representava um ataque econômico ultraliberal contra o conjunto da população pobre e trabalhadora no país. Fracassada a primeira tentativa no Congresso, vendo derrotado seu projeto pelas mobilizações nas ruas - apesar da colaboração passiva das direções sindicais peronistas - Milei reativou as negociações para a aprovação da Lei de Bases, um projeto semelhante, que foi aprovado mediante entrega de cargos, benesses e todo tipo de artifício fisiológico - com a colaboração da direita, do radicalismo (UCR) e inclusive do peronismo. Passagem express da antipolítica para nababo da casta governante argentina, ainda que cause curto-circuitos na estrutura política mainstream.

Marçal também apresenta o figurino da antipolítica, e ao menos no discurso de campanha, reverbera aquilo que João Cezar de Castro Rocha considera como a destruição da política. Projeta sua figura como aquele que está “sozinho, atacado por todo o sistema”, odiado por aquilo que Milei chamava de “casta”, que anuncia estar preparado para eliminar. “Deixa que eu resolvo” é a fórmula personalista do novo aspirante a líder carismático da direita, que faria aquilo que Bolsonaro não fez. De fato, Marçal tenta no possível explorar a institucionalização da extrema direita levada a cabo por Bolsonaro (Tarcísio de Freitas é o símbolo máximo disso). Diante da supressão de suas redes sociais pela Justiça Eleitoral, Marçal lançou nova campanha como vítima de perseguição “daquilo que está aí”, com o lema “coloca pressão, que o sistema inteiro se assusta”. Os traços messiânicos da mensagem estão inscritos no chamado à população a multiplicar suas aparições nas redes, uma personificação do político que, “junto ao povo, vai acabar com a política” - sorrateiramente piscando ao regime político, chamando um “cessar-fogo” com Lula se eleito.

Esse discurso da antipolítica é atrativo para amplas massas, castigadas pelo flagelo da crise capitalista e desconfiadas de toda a estrutura política baseada na substituição dos partidos enraizados socialmente para formações fisiológicas superestruturalizadas. Milei e Marçal dão a esse discurso o sentido específico do antipartidarismo, ainda que se sirvam da forma partido, e buscam substituí-la pela veneração ao “líder”. Milei criou um semi-partido próprio que considera mero instrumento de seu movimento paleolibertário, e Marçal diz que foi obrigado a contragosto a entrar em partidos para disputar eleições. Em todo caso, seriam veículos para o estrelato do indivíduo. Como vimos com Bolsonaro, muitas vezes esse culto à personalidade da direita se apoia em valores vagos e incoerentes, sintetizados em fórmulas curtas que adquirem a solidez dos ditos populares.

Gramsci estudou esse fenômeno nos Cadernos do Cárcere. Em seu diálogo crítico com a obra do politólogo Robert Michels acerca dos sistemas partidários, reflete a dimensão existente, na extrema direita, entre a organização e o papel da liderança como “intérprete insubstituível” dos objetivos das massas desesperadas. Examina a questão da forma partido em seu sentido lato, o de tendência política específica (como no caso da extrema direita), diz: Mussolini é outro exemplo de líder partidário que tem algo de profeta e crente [...] Com ele, também a noção do axioma: “o partido sou eu” teve o máximo desenvolvimento [...] Além do mais, o chamado “carisma”, no sentido de Michels, coincide sempre no mundo moderno com uma fase primitiva dos partidos de massa, com a fase em que a doutrina se apresenta às massas como algo nebuloso e incoerente, que necessita de um papa infalível para ser interpretada e adaptada às circunstâncias.

Gramsci adverte, ao mesmo tempo, que por trás de toda incoerência há um programa, que necessita ser combatido pela esquerda socialista. “Em certos momentos de ‘anarquia permanente’ devida ao equilíbrio estático das forças em luta, um homem representa a ‘ordem’, isto é, a ruptura por meios excepcionais do equilíbrio mortal, e em torno dele se agrupam os ‘amedrontados’, as ‘ovelhas hidrófobas’ da pequena burguesia: mas há sempre um programa, mesmo que genérico, e genérico exatamente porque tende apenas a readaptar a cobertura política exterior a um conteúdo social”.

Precisamente, há um programa (e uma ideologia) por trás dos discursos vagos e incoerentes sobre “deixa que eu resolvo”, “sou eu e o povo contra todos” e similares. A antipolítica é o correlato ideológico da política neoliberal de eliminar todos os obstáculos possíveis para o livre automatismo do mercado. Como dizem Dardot e Laval em A Nova Razão do Mundo, a antipolítica serve aos interesses de um tipo de governo cuja essência é determinada pela desobstrução de todas as travas para a valorização do capital. Não é segredo que para Milei o mundo se reduz ao indivíduo empreendedor que, pisoteando os demais, cria a riqueza por sua própria força e criatividade. Tanto assim que o DNU e a Lei de Bases, considerados pela extrema direita argentina como o elixir da juventude de uma economia em frangalhos, foram escritos pelos próprios empresários bilionários que se beneficiarão delas (a reforma trabalhista de Milei teve suas cláusulas feitas à medida dos “mega-empreendedores” de Techint, Mercado Livre, Ledesma e diversas patronais da Associação Empresarial Argentina). Marçal é também um sacerdote do empreendedorismo e do fundamentalismo individualista neoliberal, ao ponto de defender em debates eleitorais a construção de “programas para criação de novos empresários nas escolas públicas” como combate à esquerda. Em suas peças publicitárias como “coach” incentiva os jovens a abandonar a CLT e empreender, e em campanha chegou a fazer vídeo insinuando demagogicamente uma carteira de trabalho, a fim de convencer o mundo de que a felicidade está em um emprego com salários de miséria. Tanto para Milei como para Marçal, a ideologia-programa do empreendedorismo tem apenas um significado: precarização e deterioração completa do trabalho.

Essa ideologia-programa de ataque em regra a tudo o que é coletivo se expressa no agudo anticomunismo de ambos. Ironicamente, Marçal buscou competir com o bolsonarismo na capacidade de cada de “eliminar o comunismo”. A Eduardo Bolsonaro, afirmou que teria muito mais eficácia em tirar essa “cambada de comunistas” de São Paulo (em que inclui, comicamente, seres como “Ricardo Nunes, o PMDB e o PSDB”). Em outra oportunidade, disse que não era comunista porque seria um “governalista, ou seja, você cuidar da sua vida primeira para depois cuidar dos outros”. Javier Milei construiu sua campanha ideologicamente contra aquilo que entendia por comunismo, com toda a ignorância da extrema direita sobre o tema. Qualificou o comunismo de “satânico e cancerígeno” e uma “enfermidade da alma”. Efetivamente, no debate presidencial argentino perguntou à candidata da esquerda socialista, Myriam Bregman (dirigente do PTS, ex-deputada federal pela FITU), por que queria “instalar na Argentina o comunismo, que foi um fracasso no terreno econômico, social e cultural, além de ter assassinado 150 milhões de pessoas”. Bregman contestou categoricamente: “Javier Milei, não sei se quem te disse isso foi Macri em um momento de inutilidade de vocês dois, mas na verdade isso que diz é falso, uma fake news de características enormes, que se repete por aí, mas não porque se repete pelas redes sociais passa a ser verdade. Por que vocês repetem essas besteiras? Porque precisam ocultar que defendem um sistema capitalista em que 30% dos alimentos produzidos são jogados fora, enquanto crianças morrem de fome, porque defende um sistema baseado no roubo do trabalho assalariado. Nós pelo contrário - eu sou socialista, Milei - defendemos que todos os recursos da economia possam ser planificados em função das necessidades sociais, e não de um punhado de ricos, que vocês defende”.

Esse anticomunismo é a maneira com que se opõem à verdade de que toda a riqueza humana construída até hoje foi fruto da cooperação do trabalho em íntima relação com a natureza. Como assinalam Emilio Albamonte e Matias Maiello, a potência da cooperação do trabalho é a que permite criar não apenas novas forças materiais, mas novas fases da civilização humana - e para obstar isso, o capitalismo é obrigado a apropriar-se permanentemente do trabalho cooperativo. O único “mérito” - se é que se pode dizer assim - do indivíduo empreendedor é aplicar os artifícios mais eficientes para roubar o produto do trabalho cooperativo, e escravizá-lo como condição para a continuidade da acumulação ampliada do capital. Essa é a razão central de por que apenas uma grande batalha anticapitalista no terreno político, mas também ideológico-cultural, pode enfrentar a extrema direita, adepta sagaz da exploração máxima do trabalho.

•        Uma esquerda que deseja radicalizar a luta contra a extrema direita e o capital

E aqui podemos voltar ao tema da imaturidade das forças progressistas, de que falava Gramsci. No caso de São Paulo, Guilherme Boulos do PSOL é a consubstanciação do oposto do necessário para enfrentar Marçal e a extrema direita. Mesmo do ponto de vista estritamente eleitoral, Boulos omite conscientemente que o empreendedor Marçal tem um programa aberto para que os trabalhadores e a população pobre trabalhe até morrer. Elege não opor-se às bases da exploração capitalista, que Marçal compartilha com Nunes e Tarcísio - distintos tons de bolsonarismo - e que eleva à máxima potência. Ao contrário, Boulos usa mimeticamente os mesmos argumentos aceitos e ditados pela fração da classe dominante que está reunida ao redor da Frente Ampla Lula-Alckmin, beneficiada por ataques neoliberais do governo federal, como o Arcabouço Fiscal e os cortes orçamentários na Saúde e na Educação.

Junto com a liberal Tábata Amaral, Boulos não se cansa de dizer que Marçal é um bandido. Entretanto, deixa intocada a reforma trabalhista - também impulsionada por sua vice, a golpista Marta Suplicy - que Marçal defende em nome da destruição dos direitos laborais no altar da ditadura patronal nas fábricas, empresas e plataformas. Boulos não defende plenos direitos trabalhistas a todos como contraponto ao empreendedorismo neoliberal de Marçal. Recrutou para seu gabinete um coronel da Polícia Militar que era Comandante da Rota na ocasião da chacina de Osasco e Barueri, mimetizando Nunes, que também havia recrutado um comandante da Rota para seu projeto de governo. Dialoga com os empresários e com as cúpulas evangélicas, assegurando que não problematizará a privatização da Sabesp feita por Tarcísio. Eliminou do seu programa a defesa da legalização das drogas, pareando-se com o sentimento conservador imposto pela perseguição policial à juventude negra. Quer “cuidar de São Paulo” e “combater desigualdades” sem tocar no trabalho organizado pela agenda do golpe institucional. Uma consciente direitização a fim de ser aceito como “um igual” pelos verdadeiros dirigentes econômicos da cidade que pretende governar.

Gramsci advertia que “na luta política, não se pode imitar os métodos de luta das classes dominantes, sem cair em emboscadas fáceis”. De fato, tais métodos colaboram com a emboscada dos experimentos de radicalização da extrema direita. Com Lula, Alckmin e Marta Suplicy, Boulos assumiu o compromisso de preservar a ordem do capitalismo asselvajado no Brasil pós-golpe institucional, que para solucionar suas constantes crises produz em série Bolsonaros, Tarcísios, Marçais.

Contra Javier Milei na Argentina, a esquerda atua de maneira bem distinta. O comportamento político do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), que encabeça a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores, é de choque programático e ideológico frontal contra a extrema direita mileísta. Enquanto o peronismo em suas diversas faces, incluindo o kirchnerismo, colabora através dos sindicatos e da superestrutura estatal para preservar o equilíbrio do governo Milei, a esquerda argentina aposta na mobilização nas ruas e na luta de classes. Inclusive com uma presença histórica no Congresso Nacional, utiliza suas bancadas para impulsionar a luta extraparlamentar, convocando no próprio parlamento as mobilizações contra o DNU e a Lei de Bases, contra a proposta de corte orçamentário na educação pública, em defesa dos aposentados e contra as demissões. Levanta um programa anticapitalista de 10 pontos para unir os trabalhadores, as mulheres e a juventude contra o empreendedorismo ultraliberal de Milei, na defesa do aumento salarial automático indexado à inflação; dos serviços públicos de qualidade administrados pelos trabalhadores; do meio ambiente com o fim do extrativismo capitalista; da redução da jornada de trabalho a 30h semanais, sem redução salarial, para por fim ao desemprego; do fim da submissão ao FMI, com a abolição do pagamento da fraudulenta dívida pública e o monopolío do comércio exterior; entre outros.

Ademais, na Argentina vemos uma esquerda que elabora teoricamente, que produz ideologicamente de forma constante em defesa do marxismo e das ideias socialistas, com elaborações teóricas virtuais e a publicação impressa de livros e brochuras, a fim de recriar na nova geração de jovens e trabalhadores o imaginário do comunismo em diálogo com as atuais tendências de pensamento.

Uma esquerda que está disposta a radicalizar programática e ideologicamente o enfrentamento contra a extrema direita, o Judiciário e toda a ordem capitalista está ganhando prestígio, tem apelo em segmentos influenciados pelo peronismo e cresce como nunca na Argentina. Prepara o futuro. Trata-se de um exemplo para a esquerda brasileira. No Brasil, um enfrentamento dessa natureza exige um compromisso com a força da mobilização e da luta dos trabalhadores, dos negros, das mulheres, dos LGBTs, dos indígenas e todos os setores oprimidos, com um programa que ataque os fundamentos da dependência e do atraso capitalistas que produzem mosntruosidades como Marçal. Um combate integral, que se proponha a revogação imediata de todas as reformas: reforma trabalhista, reforma da previdência, novo ensino médio, lei da terceirização irrestrita; a revogação do arcabouço fiscal; a abolição de quaisquer privilégios do agronegócio que destrói o meio ambiente, como o Plano Safra; o atendimento imediato das reivindicações das greves em curso; o fim da terceirização e da uberização do trabalho, pela efetivação dos terceirizados e por plenos direitos laborais a todos; nenhum corte na educação e na saúde, mais verbas para as universidades federais e estaduais, seguindo o exemplo da luta da UERJ.

O grande desafio é construir uma força de esquerda socialista no Brasil e na América Latina que saiba o que quer, e vá além dos limites permitidos pela ordem no enfrentamento contra a extrema direita e o capital. Só assim pode-se interferir decisivamente no eterno retorno das novas faces do trumpismo que seguirão surgindo no curso da crise capitalista.

 

Fonte: Esquerda Diário

 

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