Acordo das Pandemias: de volta à negociação
No mês de setembro que
se inicia, serão retomadas as negociações do Acordo das Pandemias.
Originalmente, os países haviam se comprometido a definir o texto do tratado
até a Assembleia Mundial da Saúde que aconteceu em maio de 2024. Contudo, a
ausência de consenso entre os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde
(OMS) e as críticas à condução do processo de discussão resultaram em um
entendimento para estender as conversas até 2025.
Para o especialista
indiano KM Gopakumar, em recente entrevista em vídeo ao People’s Dispatch, a
nova rodada de negociações pode ser uma oportunidade de enfrentar o “legado
colonial” na atual arquitetura da Saúde Global. Apesar da luta insistente dos
países em desenvolvimento, ainda são poucos os mecanismos concretos – e com
suficientes recursos – para promover maior equidade, por exemplo, na resposta a
emergências de saúde pública. O resultado é o que, nos últimos anos, se viu na
desigual resposta às pandemias da covid e da mpox no mundo.
Uma importante
ferramenta para a pressão por um texto mais ousado no Acordo das Pandemias será
o exemplo das alterações conquistadas no Regulamento Sanitário Internacional
(RSI), destacou na mesma entrevista a ativista sul-africana Lauren Paremoer, do
Movimento para a Saúde dos Povos (MSP). As mudanças no RSI estavam sendo
discutidas em paralelo ao novo tratado – mas tiveram mais êxito que este,
especialmente pela maior transparência do órgão negociador, eles frisam.
Para estar à altura do
desafio de conter as futuras pandemias, defendem Gopakumar e Paremoer, o Acordo
deve conter propostas mais firmes, evitando a cilada de ser um tratado
protocolar, como querem as potências do Norte Global. Eles discutiram algumas
dessas propostas, como a criação de mecanismos claros de transferência de
tecnologias e insumos de saúde para os países em desenvolvimento.
O exemplo do RSI
O caso dos avanços no
Regulamento Sanitário Internacional, abordado por Outra Saúde à época, não foi
simples. Eles só ocorreram “depois de muitas idas e vindas entre os países
desenvolvidos e os países em desenvolvimento”, lembraram os convidados.
Antes, nesse tratado
criado em 2005, não havia “nada concreto em relação a questões como a
inequidade no acesso a produtos de saúde” ou “mecanismos financeiros para
apoiar a implementação” de medidas que enfrentem surtos internacionais de
doenças, conta Gopakumar. No jargão da área, “produtos de saúde” são vacinas,
testes, equipamentos e outras ferramentas decisivas para as ações da saúde
pública.
A “transparência” do
órgão que conduziu as discussões entre os países teria sido responsável por
facilitar que se chegasse a consensos. Apesar da resistência das potências do
Norte Global à introdução de cláusulas que exigem que eles contribuam de forma proporcional
à sua maior riqueza, eles foram obrigados a “reconhecer que a equidade e a
solidariedade são essenciais” para o sucesso dos esforços comuns no âmbito
sanitário, diz Lauren Paremoer. Para isso, como explica a OMS, foi criado um
mecanismo de coordenação financeira que identifique e oriente os países e
situações para onde é necessário direcionar recursos da Saúde para conter o
surgimento de novas pandemias.
Para a ativista do
MSP, as mudanças foram “significativas, mesmo que modestas”, e “ajudarão os
Estados-membros da OMS a fazer o básico” para seus cidadãos em momentos de
emergência sanitária. Elas também serviram para “validar o processo
multilateral” de negociação diplomática entre os países, hoje muito
“questionado devido à influência das grandes corporações” nas discussões.
“Em março, já havia
ficado bastante claro que haveria progresso no RSI, precisamente por conta das
propostas que vinham do órgão negociador, que trouxeram confiança ao processo”,
lembra Gopakumar.
• Que Acordo das Pandemias aprovar em
2025?
Como revelou Outra
Saúde em uma série de escritos que acompanharam o processo ao longo de sua
duração, as negociações do Acordo das Pandemias tiveram um andamento
completamente distinto ao do RSI. As críticas se concentram na metodologia do
Birô Intergovernamental de Negociação (INB, na sigla em inglês).
As rodadas de
discussão não foram conduzidas com base em um documento fechado sobre o qual as
representações dos países fizessem emendas de supressão ou mudança. O INB
reservou a si próprio o direito de, em períodos espaçados, redigir e apresentar
rascunhos do tratado inspirados no conteúdo das conversas – o que dificultou a
tarefa de realizar negociações concretas entre os países. Assim, quando o texto
da proposta final de Acordo feita pelo INB chegou à mesa dos países, ela estava
“distante do que a maioria dos Estados-membros gostariam de ver, especialmente
em torno da equidade e do financiamento”, lamenta KM Gopakumar. A insatisfação
inviabilizou a aprovação do Acordo em 2024.
Uma das grandes
ausências foi a falta de um mecanismo robusto de PABS, sigla em inglês para
“Acesso a Patógenos e Compartilhamento de Benefícios”. Em poucas palavras,
seria uma ferramenta para assegurar que as nações (em geral, do Sul Global) que
compartilhassem com os demais países amostras de vírus e bactérias com
potencial para causar novas pandemias seriam beneficiadas a pouco ou nenhum
custo pelos resultados – vacinas, remédios, etc – de pesquisas realizadas com
esses agentes patogênicos. Sob pressão da indústria farmacêutica, as grandes
economias capitalistas vetaram a inclusão de uma cláusula de PABS no Acordo.
O cenário é visto como
grave porque “as pandemias são um tipo de emergência de saúde pública de
interesse global muito mais definido e crítico”, explica o consultor indiano.
“Para lidar com essas situações, são necessários dispositivos muito mais
fortes” do que aqueles incluídos no texto que acabou não indo a voto na
Assembleia Mundial da Saúde deste ano.
Por isso, para os
especialistas e ativistas de movimentos da Saúde Global, os avanços que foram
introduzidos no Regulamento Sanitário Internacional precisam encontrar
ressonância nas novas negociações do Acordo das Pandemias. Em primeiro lugar,
no método: o INB é convocado a conduzir as próximas discussões de forma mais
transparente e com maior abertura para as discussões sobre o texto, assim como
no RSI. Em segundo, na linguagem: não podem ficar de fora cláusulas que
proponham formas concretas de implementar a equidade na resposta a pandemias,
para que “os dois instrumentos possam trabalhar de forma complementar”.
Mecanismos coletivo
para fortalecer o investimento na vigilância de patógenos, nos sistemas de
saúde nacionais e na produção local de insumos de saúde como vacinas e
medicamentos, além de cláusulas obrigatórias de compartilhamento equitativo de
tecnologias, são algumas das medidas que foram consideradas essenciais pelos
debatedores para que o Acordo das Pandemias seja um instrumento realmente útil
na contenção de futuras emergências de saúde.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outras Palavras
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