Eleições de 2024 e o crime organizado: os
centros viraram periferia
As eleições têm se
mostrado, cada vez mais, um espaço tácito para o avanço dos interesses de
grupos criminosos em todo o país. Se até o início deste século as periferias
eram vistas como locais socialmente reservados para que criminosos construíssem
suas carreiras no mundo político, as eleições municipais de 2024 convidam o
mundo a observar as capitais do Brasil como espaços igualmente sujeitos a essa
disputa. Este texto se restringe às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, pois
são locais nos quais transito rotineiramente e observo mais de perto. No
entanto, sem recair em generalizações, apresento traços que podem ser
replicados em outras realidades do Brasil.
No Rio de Janeiro, com
o assassinato de Marielle Franco, expôs-se, mais uma vez, a intrínseca relação
entre capital político e criminoso. Refiro-me aqui "mais uma vez" à
CPI das Milícias, realizada em 2008, pelo então deputado estadual Marcelo Freixo,
que transformou a luta contra as milícias em uma agenda nacional. Foi um fogo
de palha. Como demonstrou a reportagem de Igor Mello, do UOL, por meio do
estudo intitulado “Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, as
milícias cresceram quase 400% em domínio territorial no estado entre 2006 e
2021. A deputada estadual Lucinha, do mesmo partido do prefeito Eduardo Paes,
PSD, foi afastada do cargo por suposta relação com a milícia de Zinho, que
aterroriza a Zona Oeste da cidade.
De acordo com as
investigações do Tribunal de Justiça do Rio, Lucinha seria uma espécie de
representante dos interesses do miliciano na Assembleia Legislativa. No âmbito
federal, o deputado Chiquinho Brazão (hoje sem partido, mas anteriormente
filiado ao União Brasil) pode ter seu mandato cassado por possível associação
com a execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes,
em 2018.
No Rio, a lista de
relações entre milícia e política institucional parece interminável. Porém, não
é apenas a milícia que participa desse jogo. O então deputado estadual TH Joias
(MDB), ao assumir a suplência do partido após a morte do deputado fundamentalista
Otoni de Paula Pai, é investigado pela Polícia Civil por suposta lavagem de
dinheiro para as três maiores facções do Rio: Comando Vermelho, Amigos dos
Amigos e Terceiro Comando Puro.
Em São Paulo, o
estelionatário Pablo Marçal utiliza o algoritmo para tergiversar sobre questões
envolvendo a relação de seu partido com o PCC. Leonardo Avalanche (PRTB),
presidente do partido e figura próxima de Marçal, teve um áudio vazado no qual
afirmava contar com correligionários do Primeiro Comando da Capital. O chefe da
Inteligência da Polícia Militar do Estado de São Paulo deu uma entrevista
recente, na qual afirmou que a atuação do PCC nas eleições é “muito maior do
que ele imaginava”. Os contratos públicos são disputados pela facção como uma
forma de fazer e lavar dinheiro.
O braço econômico de
grupos criminosos atua em simbiose com o braço político. Se, antes, na Baixada
Fluminense, periferia do Rio de Janeiro, estudos foram realizados para
compreender a contravenção e a atuação de grupos de extermínio no território
com o respaldo de prefeitos, deputados e membros do Judiciário, algumas
capitais estão sendo sequestradas pelas brechas do jogo democrático. O ilegal e
o legal não são mais fronteiras distintas, mas duas faces da mesma moeda para
aqueles que compreenderam a fragilidade da burocracia estatal e das regras da
política institucional.
De maneira prática, a
extensão do domínio desses grupos, cada um com suas características próprias,
pode ser compreendida, de forma sintética, como resultante da regulação e
prestação de serviços, da atuação em mercados ilegais de drogas, armas etc., da
atuação em diferentes mercados legais, como o imobiliário e o financeiro, do
controle de fronteiras e da disputa de contratos com o poder público.
No entanto, a compra
de votos já não é suficiente. O que esses grupos buscam é a tomada — às vezes,
a conquista — do próprio Estado para a execução de seus planos. Se as capitais
dos centros urbanos já não conseguem conter o avanço desses grupos e a periferia
deixou de ser o espaço privilegiado para sua atuação, a antítese para essa
problemática ainda está longe de ser encontrada. Em um microscópio social,
torna-se cada vez mais difícil delinear territorialmente as especificidades da
atuação desses grupos, seja na periferia, seja no centro.
Tento emular aqui o
que foi dito, com maestria, pela antropóloga e professora da UFRRJ, Carly
Machado, na 34ª Reunião Brasileira de Antropologia, ao afirmar que, dependendo
da perspectiva adotada, está cada vez mais difícil separar a periferia do
centro. De maneira prática, ela afirma: “na verdade, podemos dizer que é tudo
Baixada!”.
¨ ‘Como avaliar o governante’, Por Luiz Marques
A ditadura militar
autoproclama a virtude da “honra”; a ditadura burocrática esgrima a “eficiência”;
a democracia formal propõe a “igualdade”; a democracia socialista celebra a
“solidariedade”. Mas a mídia corporativa analisa a esfera do poder com o valor
da “lealdade”, remanescente da época em que o cetro do soberano concentrava o
Estado e, súditos, deviam ser leais e valorosos à majestade.
O hábito monarquista é
mantido para a catalogação das manifestações de viés político em face da
necroeconomia. Governantes que promovem privatizações a preços de compadre para
a iniciativa privada são vistos como representantes da “modernização”. A Companhia
de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) é apenas um dos exemplos,
em nada edificantes, da Terra brasilis.
Os cargos estatais
servem às investidas contra os interesses públicos e as necessidades do povo, a
vítima das “elites” ao longo da história. A realeza postiça precisa de “homens
sem qualidades”, para reatualizar o título da obra de Robert Musil. O importante
é a lealdade aos dez mandamentos do Consenso de Washington – acima do Brasil e
de Deus. Os mandatários que rezam pela cartilha do neoliberalismo ganham um
salvo conduto dos meios de comunicação para posar de “bons moços”.
Já nos regimes de
pluralismo democrático a virtude exigida é a “tolerância”, que renuncia impedir
alguns males para não suscitar óbices maiores. Vide saídas de fim do ano de
detentos no semiaberto sem crime hediondo. Trata-se de um mal necessário para
facilitar a reinserção social e evitar que as tensões nos presídios transbordem
em atos de terrorismo nas ruas. Antes a condescendência era uma graça dada
pelas autoridades, que podiam retirá-la quando lhes aprouvesse. Agora é um
motivo para chantagear o medo e, indiretamente, chancelar milícias. Conforme se
lê no romance O leopardo, de Tomasi di Lampedusa:“Algo deve mudar
para que tudo fique igual”, nas palavras de um aristocrata diante da
inevitabilidade da revolução burguesa na Itália. Melhor perder uns anéis do que
os dedos.
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Pedras da insatisfação
No alvorecer da Idade
Moderna, John Locke escreve a famosa Carta sobre a tolerância (1685)
para enfatizar o direito de fazer oposição ao governo, abrindo espaço para
reivindicação em outras áreas. Voltaire, no Tratado sobre a tolerância (1763),
argumenta que a intolerância religiosa não encontra abrigo na tradição judaica
e clássica ou na doutrina evangélica. Apela à razão para amparar uma paz entre
os católicos e os protestantes. O racionalismo ceva um otimismo em pleno campo
de batalhas.
Sob o prisma
teológico, tal significa a indulgência com a alteridade. Sob o ângulo político,
é uma possibilidade para a divergência livre de represálias. A tolerância
contém as agressões, favorece a discussão franca no relacionamento
interindividual. Em conjunturas como a brasileira que mescla o fundamentalismo
religioso e o autoritarismo neofascista com o totalitarismo da mercadoria, o
vetor da tolerância chega a sinalizar a porta da utopia – uma sociedade sem
preconceitos e sem estigmas.
Nos idos do século
XIX, o liberalismo incorpora o valor. As críticas feitas à censura apoiam-se no
princípio da tolerância identificada com o exercício da liberdade individual. O
esgotamento dos predicados de sociabilidade acarretam um esvaziamento da civilidade,
o que transmuta a Alemanha no palco dos horrores nazifascistas no século
seguinte, que ensaiam um retorno. Então, o direito ao diálogo aberto e o
pluralismo político são condenados ao ostracismo. A porta abre, mas à barbárie.
Na virada ao século
XX, Friedrich Nietzsche expõe o ressentimento na cultura cristã-ocidental,
em A genealogia da moral (1887). Denuncia a moralidade na raiz
da questão. Max Scheler, em Sobre o ressentimento e o julgamento moral (1912),
descobre pedras da insatisfação no caminho das classes sociais e dos movimentos
políticos com as promessas não cumpridas pelos ideais do iluminismo. O
igualitarismo republicano entre os desiguais esbarra nas rígidas e
impenetráveis hierarquias – a dura realidade. A exclusão das decisões, a
precarização da sobrevivência e as humilhações renovam os descontentamentos na
consciência de cada um, e cobram alto preço pelo amargor nos ressentidos.
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A tolerância repressiva
A extrema direita
nutre o ódio para objetivos escusos e posiciona a intolerância no pódio. Os
brutos também amam. Em vez de a emancipação, os extremistas adormecem os
impulsos de liberação dos grupos oprimidos, absorvendo as contestações no
âmbito do mercado. A engrenagem capitalista reage com uma “tolerância
repressiva”.
O enquadramento dos
embates eleitorais no estilo pergunta e resposta criminaliza os investimentos,
para reverenciar o dogma liberal do “equilíbrio fiscal”. Há candidatos que
aceitam o guizo, mas simulam bizarrices antissistêmicas para desviar a atenção.
O inocente palhaço, de ontem, é o homem-rato que monetiza a idiotia hoje,
roendo a vendetta e o próprio fígado no subterrâneo
lesa-pátria das negociatas, do rentismo e das emendas milionárias.
O conflito persiste.
Se, para progressistas a tolerância é essencial ao desenvolvimento das artes,
das ciências e do pensamento; para tradicionalistas a tolerância com o “erro”
ajuda na sua propagação. Os valores civilizatórios e a diversidade são desafiados
pelas fake news que maquiam bandidos no coaching, com
total desapego à “verdade”. O desespero alheio se converte em uma fonte de
receitas na rede internética. O canibalismo capitalista engole o corpo social
para metabolizar a acumulação distópica, enquanto algoritmos das Big
Techs selecionam as próximas vítimas para o abatedouro.
A dominação e a
subordinação, a hegemonia e a contra-hegemonia, o sistema de poder e as forças
contrárias à ordem são referências teóricas para a compreensão do caos
climático, socioeconômico e político-cultural no século XXI: um período marcado
pelo sofrimento palestino na Faixa de Gaza. É urgente ressignificar os direitos
humanos e esconjurar os fatores do obscurantismo em expansão no mapa-múndi,
para organizar a nova gramática da fraternidade entre nações. A tolerância
continua sendo uma revolução inacabada, à espera dos sujeitos da transformação
e do tempo das cerejas.
Não há tolerância na
dialética do capital e trabalho ou nas terceirizações para a hiperexploração
das massas. Não há tolerância com povos originários e quilombos, negros e
mulheres, LGBTQIA+ ou MTST. Tampouco há tolerância midiática com o
contraditório, para investigar o entreguismo dos serviços básicos (água, gás,
energia elétrica). Quem se pauta na regulação social está satisfeito. Os que
querem romper a grade da desinformação, insatisfeitos. A democracia iliberal
acolhe a marcha do capitalismo iliberal na superestrutura. A intolerância
negacionista funda o Estado de exceção.
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Os sonhos que me levas
Abordar o poder com o
construto da lealdade, afora não incorporar a dimensão classista dos afetos,
reforça a concepção personalista da política. Avalia-se o governante com base
na valorização da: (i) Igualdade para democratizar relações de gênero e raça,
garantir segurança, educação, cultura, saúde, moradia, prevenção de cataclismos
e o ar que todos respiramos. Vade retro neocolonialistas. (ii)
Solidariedade das instituições para implementar as políticas de
reindustrialização sustentável e a justiça tributária, com a elevação dos
níveis de felicidade e participação. Yuppies são mal-vindos.
Inspirada no Consenso
de Washington, a direita e sua extrema é incapaz de propiciar dignidade ao
conjunto da cidadania – tarefa para a esquerda guardiã do engajamento da
comunidade. Como no poema Cavalgada, de Cecília Meireles: “Ouve, no
tumulto sombrio, / passar a torrente fantástica! E, na luta da luz com as
trevas, / todos os sonhos que me levas, / dize, ao menos, para onde vão”.
Fonte A Terra é
Redonda
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