A tara secreta dos capitalistas digitais
As empresas que
sobreviveram à bolha pontocom [na virada do século] tinham uma coisa em comum:
elas haviam “tornado-se meta“. Tim O’Reilly, editor de livros de
tecnologia, chamou isso de Web 2.0. Ele disse que as empresas da Web 2.0, como
Google e eBay, tratavam a rede como uma plataforma e tiravam proveito a
atividade dos usuários, em vez de gastar dinheiro com seus próprios
funcionários e mercadorias. Ao contrário do Yahoo, o Google não contratou
humanos para criar taxonomias da web; ele usava algoritmos para catalogar os
hiperlinks existentes e depois organizá-los em um banco de dados pesquisável.
Ao contrário das muitas lojas online, o eBay desenvolveu uma plataforma
automatizada que conectava vendedores e compradores. Empresas e projetos da Web
2.0, da Wikipedia e do Blogger à SourceForge e ao iTunes, dependiam da produção
entre pares. Elas eram, por si só, operações meta que simplesmente agregavam
todos os que criavam valor no nível abaixo.
O que tornava um
negócio verdadeiramente digital era o fato de ele ser capaz de subir um nível
acima da concorrência. Cada novo nível representava um salto exponencial, de x
para x ao quadrado, para x ao cubo e assim por diante. Uma plataforma de
viagens (Expedia, Travelocity) torna-se meta diante das
companhias aéreas, agregando os dados de todos os seus sites para mostrar os
melhores preços. Um nível acima disso, um agregador desses agregadores (Kayak,
Orbitz) pode mostrar qual deles está fazendo a agregação com maior eficiência.
Não foque no conteúdo, insistiam especialistas como O’Reilly, mas na plataforma
onde todos postam o conteúdo. E se já houver muitas plataformas, torne-se a
plataforma das plataformas. “O meio é a mensagem” tornou-se o mantra de negócios
para The Mindset — a nova mentalidade do Vale do Silício,
enquanto o próprio Marshall McLuhan conquistou um lugar póstumo na página
editorial da revista Wired como o “santo padroeiro” da
revista.
Segundo Peter Thiel,
qualquer nova ideia de negócio deve ser 10 vezes melhor do que o que já existe
— literalmente, uma ordem de magnitude melhor. Pegando emprestada uma frase de
seu antigo professor de filosofia em Stanford, René Girard, Thiel acredita que
“competição é para perdedores”. Todo mundo está engajado em um jogo simples de
imitação, ou o que Girard chama de “mimese”. Embora seja uma ótima maneira para
crianças aprenderem com seus pais, entre adultos isso cria uma cultura de
competição, onde todos cobiçam o que seus vizinhos têm. Tudo segue assim até
que a competição se torne tão extrema, ou mesmo violenta, que ao fim escolhe-se
um bode expiatório (judeus, imigrantes, homossexuais ou até um indivíduo único)
para receber as culpas pelo seu conflito. A violência então alivia a tensão, e
a competição começa de novo. (Girard e Thiel acreditam que Cristo foi destinado
a acabar com esse ciclo de violência, servindo como o último e definitivo bode
expiatório. A crucificação e a ressurreição do filho de Deus poderiam libertar
a humanidade do ciclo de violência — se as pessoas fossem encorajadas a
acreditar no mito como verdade literal.)
A implicação para os
negócios, no entanto, é evitar competir com todos os outros e, em vez disso,
inovar no próximo nível. Devemos conseguir isso mantendo “fidelidade a um
evento” — a devoção singular a um futuro que os outros ainda não conseguem
enxergar. Thiel viu o salto claramente no Facebook de Mark Zuckerberg. Em vez
de competir para construir o melhor site ou página pessoal, Zuckerberg subiu de
nível para construir a plataforma onde as pessoas e empresas podem fazer isso.
Em vez de imitar, ele transcendeu o jogo. Deu aquele salto exponencial, uma
ordem de magnitude acima dos simples mortais rumo ao reino do sucesso,
autonomia, autodeterminação e salvação.
Agora que o modelo de
negócios do Facebook está sendo questionado, Zuckerberg está fazendo isso de
novo, tornando-se meta na rede ao renomear sua própria empresa
como Meta. Está tentando agregar preventivamente tecnologias de realidade
virtual e aumentada que ainda não foram inventadas em um único “metaverso”,
sobre o qual reinará a partir de um nível superior.
* * *
O estilo pós-moderno
de guerra empresarial, onde as corporações buscam ultrapassar umas às outras em
seus paradigmas, repete-se nos mercados financeiros que as capitalizam. Os
investidores correm para inventar novos derivativos e meta-derivativos capazes
de subsumir ou agregar os que vieram antes.
Mas o verdadeiro salto
ocorreu quando os negociadores se substituíram por algoritmos capazes de
agregar dados de todas as plataformas de negociação e executar negociações de
alta frequência em uma taxa e volume além da capacidade cognitiva de centenas
de seres humanos. Esses mercados de derivativos rapidamente ultrapassaram a
atividade de negociação tradicional nas bolsas de valores. A negociação de
derivativos tornou-se tão dominante que a Bolsa de Valores de Nova York foi
comprada por sua bolsa de derivativos em 2013. O mercado de ações — já uma
abstração do mercado real — foi engolido por sua própria abstração. Enquanto
isso, ainda mais tecnólogos tentam subir de nível repetidamente, vendendo os
algoritmos de negociação, o aprendizado de máquina para desenvolver esses
algoritmos ou as plataformas para suportar o aprendizado de máquina. Cada nível
de abstração gera o próximo.
Ainda assim, todos
eles dependem do enunciado inicial da revolução digital: qualquer coisa que
importe pode ser digitalizada. Assim como os mapas abstraíram terras em
parcelas monetizáveis, os computadores convertem coisas em suas contrapartes
digitais, tornando-as grãos para o moinho exponencial e apoiando a necessidade
subjacente do capitalismo de fazer o dinheiro crescer. Nada tornou isso mais
claro do que o substituto digital para a moeda central — o cripto.
Inicialmente concebido
ao lado do movimento Occupy Wall Street, o protocolo Bitcoin ofereceu uma
maneira para as pessoas autenticarem transações sem envolver bancos, taxas e
intermediários usurários. Mas, assim como os reis por trás da moeda que
cunhavam, os especuladores estavam menos preocupados em facilitar transações do
que em lucrar com elas e aumentar o preço do token Bitcoin. Milhões de
computadores em todo o mundo agora não têm outro propósito senão atestar o
valor do Bitcoin, girando seus ciclos e gastando eletricidade em cálculos sem
propósito — consumindo mais energia que toda a Suécia. Estamos literalmente
queimando o mundo real para atestar o valor dos símbolos digitais — alimentando
a realidade para sua contraparte digital mais multiplicável.
Para os detentores de
“The Mindset”, todo esse poder que desperdiçam é como o primeiro estágio de
foguete que os leva ao próximo nível. Ele gasta muito combustível antes de ser
descartado para que caia de volta ao planeta, enquanto os astronautas continuam
sua jornada. Não olhe para trás, olhe apenas para frente. Claro, o
verdadeiro dinheiro será ganho pelas empresas que se tornam meta nesse
processo. Enquanto os investidores em criptomoedas arriscam investindo, ou
arrancam pequenas margens minerando moedas por conta própria, jogadores mais
espertos procuram tornar-se o cassino e construir as bolsas onde toda essa
negociação acontece. Em abril de 2021, a Coinbase foi a primeira dessas bolsas
a abrir capital, com um lançamento inicial de ações avaliado em cerca de 100
bilhões de dólares. Como se soubessem que alguém havia tornado-se meta sobre
suas participações, os negociadores institucionais de criptomoedas começaram a
sacar seus tokens naquela semana, levando a uma queda nas cotações.
Quando o valor é
gerado no processo de subir na escala “meta”, os dados sobre nosso mundo tendem
a se tornar mais importantes do que o que realmente há no mundo. Os futuros de
barriga de porco são mais fungíveis e multiplicáveis do que as barrigas de porco
reais. Os dados são mais limpos, leves e rápidos do que seus análogos do mundo
real. É melhor converter tudo para digital. Cada um de nós está se tornando
mais valioso como dados do que como consumidores do mundo real, ou até mesmo
humanos. Isso leva a uma desconexão entre benefícios e lucros. As empresas por
trás de nossos rastreadores de atividades físicas e aplicativos de exercícios
ganham mais dinheiro com nossos dados — geralmente anonimizados — do que nos
tornando mais saudáveis. Nossas redes sociais podem lucrar tremendamente com o
perfil de dados de uma adolescente, mesmo que as plataformas tornem essa garota
mais propensa a se autolesionar ou fazer algo pior. A nuvem não se importa. A
adolescente deixou de ser uma garota. Ela tornou-se puro dado abstrato. É o
paraíso digital para aqueles que sabem como ascender, e algo completamente
diferente para aqueles de nós que foram deixados para trás.
Como cúmulo, os
seguidores mais devotos de “The Mindset” buscam ir além de si mesmos,
converter-se em forma digital e migrar para esse reino como robôs,
inteligências artificiais ou clones mentais. Uma vez lá, vivendo no mapa
digital em vez do território físico, eles se isolarão do que não gostam por
simples omissão. Assim como nossos mapas de GPS proprietários não mostram os
restaurantes que se recusam a anunciar na plataforma, a paisagem digital para a
qual migraram estará livre de pobreza, poluição e de tudo o que temos que
enfrentar.
Como sempre, a
narrativa termina em alguma forma de fuga para aqueles que são ricos,
inteligentes ou singularmente determinados para dar o salto. Mortais comuns não
devem se candidatar. Tive uma discussão acalorada sobre isso com o
transhumanista Ray Kurzweil. Em uma entrevista para um programa de TV, Ray e eu
acabamos de compartilhar nossas visões mais otimistas sobre as maneiras como a
tecnologia redefiniria o que significa ser humano.
Para mim, era algo
relacionado a conectividade aprimorada, e talvez um novo apreço pela estranheza
não tecnológica e sagrada da existência corporal. Para ele, era transcender a
mera mortalidade e fundir-se com as máquinas como dados puros. Ele explicou que,
dentro de apenas algumas décadas (e ele vem dizendo isso há algumas décadas),
os seres humanos alcançarão a imortalidade ao fazer o upload de
suas mentes para a nuvem e transferi-las para novos hardwares. Tudo
sobre nós que pode ser convertido em dados será preservado. O que não pode —
bem, isso não é real, de qualquer maneira…
Fiz um apelo
apaixonado por aspectos da experiência humana que não podem ser transferidos
para a nuvem. “E o que dizer das coisas macias e suaves?” provoquei. Os seres
humanos podem abraçar e sustentar paradoxos, em suas vidas. Nem tudo a respeito
de nós pode se resolver em um ou zero.
Kurzweil chamou isso
de “ruído”. Explicou que minha perspectiva era muito centrada no ser humano. A
informação é realmente quem está no comando, tendo evoluído desde a formação do
universo para estados cada vez mais elevados de complexidade. Uma vez que os
computadores possam suportar maior complexidade do que o cérebro humano, a
informação inevitavelmente migrará de nossos processadores biológicos para os
digitais superiores. Presume-se que eles estejam sendo agora projetados pela
equipe do Google, onde Kurzweil hoje atua como tecnólogo sênior. Depois disso,
os seres humanos serão importantes apenas na medida em que formos necessários
para servir às máquinas. Devemos aprender a aceitar nossa obsolescência. Se
quisermos fazer parte do futuro de alguma forma, precisamos avançar com uma
visão singular em direção à “singularidade” e oferecer tudo sobre nós que pode
ser convertido em dados puros.
A visão de Kurzweil é
uma compreensão agnóstica da plataforma sobre a vida, a mente e a informação.
Segundo ela, os dados que contemos — o
software que executamos — estão tão bem abrigado em um
chip de silício como na “umidade” dos cérebros. Segundo
sustenta o cofundador do Google, Larry Page, o DNA humano é apenas “600 megabytes comprimidos, menor do que qualquer sistema
operacional moderno… Seus algoritmos de
programa provavelmente não são tão complicados.” Esse modelo de biologia humana é tão redutor quanto a
afirmação de Dawkins de que “a vida é apenas bytes e bytes e bytes de
informação digital.” Assim como Francis Bacon e os primeiros cientistas
empíricos negaram qualquer aspecto da natureza que não pudesse ser
quantificado, os reducionistas digitais de hoje nos tentam negar qualquer
aspecto da experiência humana que não possa ser quantificado como código. Tudo
pode ser representado como símbolos. Tudo é apenas informação. Nada estranho,
úmido ou verdadeiramente selvagem. A religião nerd definitiva.
Ao se recusar a
reconhecer qualquer coisa que não possa ser quantizada em um ou zero, essa
análise perde tudo que está no meio. Ela descreve uma realidade autotunada,
onde cada nota deve ser ajustada para cima ou para baixo para a sintonia
quantizada mais próxima. As sutilezas da interpretação de um vocalista — o que os verdadeiros apreciadores de música mais escutam — são desconsideradas como “ruído.” A ênfase na vida como uma forma de código também ignora o contexto e a cultura na qual essa vida está se desenrolando. Cientistas mais refinados
reconhecem que o DNA é importante, mas não é nem metade da história de como um
organismo expressa a si mesmo. O DNA é um conjunto de potenciais totalmente
dependentes da sopa de proteínas na qual se encontra. Nossos corpos e mentes
são menos um instrumento para a preservação do DNA do que o DNA é um andaime
para a expressão da vida humana e de outras formas de vida.
A redução da realidade
à informação e dos humanos a genótipos encaixa-se muito convenientemente com o
imperativo do capitalismo de converter tudo em uma forma adequada para o
mercado. Tudo é dado, tudo tem um preço, tudo pode ser multiplicado. O objeto descrito
e codificado é tudo o que importa; qualquer outra coisa torna-se DNA inútil,
espécies inferiores ou a maioria dos seres humanos. O tecnólogo rico se
transfere para a nuvem, enquanto as massas ficam para trás competindo entre si
no reino da matéria. Como Cristo ou qualquer outra figura salvadora, apenas o
indivíduo totalmente codificado pode ser transubstanciado para o próximo nível.
Assim caminha a
escatologia ateísta de “The Mindset”.
Fonte: Por Douglas
Rushkoff | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras
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