Violência nas
escolas expõe desafio do cuidado em saúde mental
Diante
da recente onda de ataques violentos em escolas do Brasil, a sociedade enfrenta
o desafio de encontrar soluções que evitem o maior tensionamento no ambiente de
ensino, que também é espaço importante para a formação do cidadão. Um dos
caminhos apontados por especialistas é a prevenção dos casos através da
promoção de uma cultura de paz e diálogo na comunidade escolar e familiar das
crianças e adolescentes. A partir desta perspectiva, o cuidado com a saúde
mental deve ser um fator indispensável para o entendimento desse cenário.
Em
entrevista ao Portal A TARDE, a psiquiatra Elisângela Oliveira avalia que a
questão deve ser abordada de forma multidisciplinar tanto do ponto de vista da
saúde mental quanto educacional. A especialista também destaca a importância da
participação da família na formação do indivíduo.
"A
atuação deve ser em conjunto com a escola nesse momento, estar atento aos
discursos, o que eles estão falando sobre isso. Muitas vezes a criança ou o
adolescente podem estar dando sinais que não estão sendo percebidos por
familiares próximos. Talvez os familiares que não tenham muito tempo, mães
solos que tem mais de um filho. Então, é importante disponibilizar um tempo
para cuidar, escutar. A criança, o adolescente precisam ser escutados, antes
até de olhar as redes é poder conversar, saber o que está acontecendo, o que
estão pensando", pontua.
Além
da escuta, a psiquiatra alerta para um olhar mais atento em relação ao conteúdo
consumido pelos pequenos na internet, considerando o risco de acesso a páginas
inadequadas e perigosas.
"É
preciso orientar porque há perigos nas redes sociais, por exemplo, que muitas
vezes eles não conseguem identificar sozinho, até pela imaturidade. Não tem
essa experiência do adulto de perceber que ali há perigo. Então, é importante
passar a orientação, estar disponível para o diálogo para que a criança e o adolescente
se sintam confortáveis para conversar. E a depender da idade, no caso dos mais
novos, ter supervisão mesmo do que está sendo acessado", explica.
Segundo
a especialista, o diálogo contínuo favorece a participação e confiança nas
relações dentro e fora da escola. Ela acredita que a medida é importante para
identificar alterações de comportamento e até a ocorrência de agressões, a
exemplo do bullying. "É preciso estar atento aos sinais, qualquer mudança
de comportamento, humor são pistas que os pais ou responsáveis podem
observar", recomenda.
Com
o objetivo de enriquecer o debate sobre as ameaças e os ataques nas unidades de
ensino, o Portal A TARDE traz até a segunda-feira, 24, a série "Violência
nas Escolas: o que está por trás dos ataques". Em cada matéria, que conta
com produção audiovisual, o especial de quatro reportagens detalha os casos
ocorridos no Brasil e na Bahia e traz uma discussão com especialistas sobre
como prevenir novos episódios.
• Assistência
A
psiquiatra aponta que, ao observar mudanças no comportamento das crianças e dos
adolescentes, a busca por atendimento de profissionais de saúde mental não deve
ser negligenciada.
"Muitas
pessoas podem banalizar que pode melhorar com força de vontade, não reconhecem
que a questão pode estar envolvida com um adoecimento e que precisa de um
suporte de profissionais de saúde. Então, é importante levar a uma psicóloga,
psiquiatra, centros de atenção psicossocial, ambulatório de saúde mental para
passar por uma avaliação adequada", aponta.
Além
do cuidado da saúde mental dos estudantes, a especialista reforça a importância
da assistência voltada aos profissionais de educação. "A equipe também
fica fragilizada, eles precisam de suporte especializado. Precisamos falar
também dos profissionais de educação. Não é o que se espera acontecer na
escola. É um local para formação, brincadeiras e aprendizado. Mas se estamos
com esse problema precisamos falar e combater", pondera.
Sobre
iniciativas voltadas ao cuidado da saúde mental de alunos, pais e comunidade escolar
na capital baiana, as unidades básicas de saúde e de saúde da família promovem
atendimentos especializados através de programas, como o Programa Saúde na
Escola (PSE). Conforme a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a iniciativa tem
como objetivo contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de
ações de promoção, prevenção e atenção à saúde, além do enfrentamento das
vulnerabilidades que comprometem o pleno desenvolvimento de crianças e jovens
da rede pública de ensino.
O
município conta com dois Centros de Atendimento Psicossocial (CAPSia) voltadas
ao público infanto-juvenil com demandas de transtornos mentais graves e
persistentes que necessitam de intensificação de cuidados. Entre eles estão o
CAPSia Liberdade, unidade localizada na rua Conde de Porto Alegre, no bairro do
IAPI (Telefone: 3611-9011); e CAPSia Luis Meira Lessa, na rua Mangaloeiras, em
Piatã (Telefones: 3202-1692 3611-7913).
Ainda
de acordo com a pasta, as equipes destes CAPS são compostas por psicólogo,
médico psiquiatra, médico clínico, assistente social, terapeuta ocupacional,
enfermeira, educador físico, técnico de enfermagem e farmacêutico.
Já
às demandas relacionadas a transtornos mentais leves e moderados, o atendimento
pode ser oferecido pela Equipe Multidisciplinar de Atenção Especializada à
Saúde Mental (EMAESM) – Multicentro de Saúde Carlos Gomes, na rua Carlos Gomes,
no bairro Dois de Julho (Telefone: 3025-9600). A equipe é integrada por
psicólogo, assistente social, médico psiquiatra, enfermeiro e técnico de enfermagem.
• Acolhimento
O
psicólogo e diretor do Instituto de Assistência Multidisciplinar Especializada
(Iame), Rogério Costa, acredita que o cenário de violência nas escolas deve ser
avaliado de forma mais abrangente para ajudar a 'criar uma sociedade mais justa
e pacífica'. De acordo com ele, que também atua como psicoterapeuta, a questão
traz um fenômeno complexo e multifacetado.
"Como
profissional de saúde mental, minha posição é que devemos tentar entender as
motivações por trás do comportamento violento, ao invés de simplesmente
condenar a pessoa. Isso não significa que devemos desculpar ou minimizar a
violência, mas sim que precisamos de uma abordagem mais compassiva e empática
para lidar com as causas subjacentes do comportamento", aborda.
Para
o psicólogo, a condenação da violência é necessária do ponto de vista legal,
mas não pode ser a única maneira de combater o problema. "A abordagem mais
eficaz para prevenir a violência a longo prazo é abordar as questões sociais e
psicológicas que levam a esse comportamento como: investir em educação, saúde
mental, combater a desigualdade social e econômica, promover a justiça social e
prevenir a radicalização", enfatiza.
O
especialista ainda afirma que "a ocorrência de um ataque em uma comunidade
escolar pode ser uma experiência traumática e dolorosa para todos os
envolvidos, causando uma variedade de emoções, incluindo medo, angústia e
luto". A partir disso, o cuidado deve ser ainda mais cuidadoso e
especializado.
"Para
ajudar a comunidade escolar a lidar com essas emoções, é importante estabelecer
um ambiente seguro e de apoio para que as pessoas se sintam à vontade para
expressar seus sentimentos. Isso pode ser feito através de grupos de apoio,
sessões individuais de aconselhamento ou atividades coletivas que encorajem a
comunicação aberta e a expressão criativa, como arte ou música",
recomenda.
• Cultura de paz
Para
a pedagoga e especialista em psicopedagogia, Camila Rodrigues, pensar na
assistência à saúde mental é um passo para o estímulo e promoção da cultura de
paz e redução do contexto de violência nas escolas. Para isso, a especialista
afirma que a mudança desse cenário também depende de toda sociedade.
"Acredito
que é importante que a gente entenda que quando acontece alguma violência na
escola como as que a gente viu recentemente, toda a comunidade escolar sofre
junto e a gente tem a necessidade de abordar essas questões como a saúde mental
e emocional de professores que ficam abalados, dos estudantes, de toda
comunidade. A gente precisa pensar esses pontos e resgatar precisamos educar
para a cultura de paz. Esse é o caminho para conseguirmos resultados positivos.
A gente precisa extrapolar as nossas salas de aula, é importante envolvermos
mais a comunidade e a sociedade", justifica.
A
especialista também aponta que a cultura de paz pode ser trabalhada por meio de
intervenções pedagógicas e psicopedagógicas que envolvam a comunidade escolar,
além da discussão voltadas ao combate do racismo e da violência em paralelo ao
trabalho multidisciplinar de outros profissionais, como assistentes sociais e
pesquisadores na área de educação.
“O
caminho para mudar a realidade de violência nas escolas deve envolver ações e
intervenções pedagógicas e psicopedagógicas que envolvam toda a comunidade
escolar, que abordam temas como o racismo, mediação de conflitos envolvendo
estudos de caso, entre outros aspectos que podem ser contemplados. Também é
importante que tenhamos nas escolas mais acolhimento, uma escuta ativa, uma
equipe multidisciplinar de atuação com psicopedagogos, psicólogos, assistentes
sociais, pesquisadores na área de educação que podem contribuir muito para além
da gestão e dos professores”, sugere.
O
professor e doutor em Educação e Contemporaneidade, Romilson Sousa, ressalta
que para o enfrentamento da violência nas escolas também é importante repensar
o atual modelo educacional. De acordo com ele, a escola não deve ser pensada
apenas como um centro de ensino, mas sim de formação de cidadãos a partir do
respeito das subjetividades das crianças e dos adolescentes.
“Uma
solução é repensar esse planejamento escolar, o modelo educacional, a política
educacional tanto no estado quanto no país, mas também na unidade escolar. A
primeira questão é essa, introduzir esse projeto dimensões socioemocionais,
socioafetivas, essa possibilidade de ensinar aos alunos mediar os conflitos, é
um trabalho em equipe. É importante trabalhar essa necessidade de respeitar a
diversidade, algumas características que são fundamentais”, afirma.
Além
do destaque para os aspectos socioemocionais, o docente diz que a escola é um
lugar para refletir sobre a cultura e realidade que estamos inseridos, como a
discussão de temáticas culturais e sociais. Além disso, a redução de riscos de
casos de violência pode ser desenvolvida a partir da orientação direcionada aos
integrantes do ambiente escolar.
“É
preciso que se pense e repense, mas é preciso também mudar a cultura social, a
violência não é por acaso, ela é resultante de uma cultura do ódio, cultura
armamentista, cultura da intolerância, da guerra que está presente no Brasil e
no mundo. E que, principalmente nos últimos anos, no período eleitoral se
agravou, se intensificou. Outro aspecto se refere às relações na comunidade
escolar não só com os alunos, funcionários, professores, gestores, mas com toda
aquela comunidade que que interage com a escola, além dos familiares e
responsáveis. Nesse momento é importante também escutar essas pessoas e
dialogar, orientar essas pessoas a saber como lidar com essas situações. Por
exemplo, como um funcionário pode lidar com uma situação que pode gerar
violência naquele ambiente? Como pode se antecipar, prevenir. É assim que se
cria a cultura de paz”, complementa.
• Estrutura
Mesmo
com a relevância do cuidado com a saúde mental, o professor e mestrando em Educação,
Iago Gomes, ressalta a necessidade de melhores condições de trabalho para os
profissionais da rede pública de ensino na Bahia e em todo o Brasil. O
educador, que leciona em turmas do ensino médio, considera o cenário delicado e
aponta também o adoecimento dos professores diante dos ataques pelo país.
“As
iniciativas voltadas ao cuidado da saúde mental tem que estar alinhada a
melhores condições de trabalho e estudo. Isso gera uma exaustão muito grande em
ter que ficar atento o tempo todo à possíveis ataques. E isso não se resolve só
com psicólogos, porque vai ser mais um profissional que vai ser acarretado com
mais responsabilidade. As responsabilidades com a saúde mental dos
profissionais também devem partir da garantia de estrutura, de acesso”, argumenta.
O
professor estende a preocupação para o acolhimento familiar em decorrência dos
ataques no ambiente escolar. Para ele, a escola não pode ser considerada uma
‘ilha isolada’ e precisa da participação de todos em prol do combate à
violência e discursos de ódio. Em contrapartida, o educador também chama a
atenção para casos onde a violência é presente no ambiente doméstico.
“Infelizmente,
muitos alunos vêm de um contexto de violência familiar e a gente não vai
conseguir resolver apenas na escola. Isso requer melhores condições de
trabalho, de estudo, porque um professor que não é valorizado, não é bem
remunerado, ele vai adoecer e não vai conseguir dar conta. Temos professores
com uma carga de planejamento muito alta. Então, como vamos conseguir discutir
e identificar os elementos que podem causar violência e estragos na educação?”,
questiona.
"Tem
um provérbio africano que diz: ‘É preciso de uma aldeia inteira para educar uma
criança”. E trazendo isso para a nossa realidade eu digo que a gente precisa de
uma comunidade inteira para cuidar da escola. Não adianta a gente tratar a
escola como uma ilha isolada porque ela é reflexo de tudo que a sociedade impõe
e todas as contradições que estamos vivenciando. Se na sociedade estamos sendo
submetidos ao uso irresponsável e desenfreado da tecnologia e o avanço de
discursos de ódio é preciso pensarmos sobre isso na escola também. A escola
pode contribuir de forma a pensar na humanização dos sujeitos sobre essa
própria sociedade. Essa é a característica da escola e precisamos ter condições
de trabalho para isso”, acrescenta.
• Segurança
Após
a onda de ataques a diversas escolas no país, incluindo a Bahia, algumas
medidas vêm sendo desenvolvidas a fim de coibir a violência e ameaças no
estado. Entre elas está a criação do Comitê Intersetorial de Segurança nas
escolas e espaços educacionais pelo governo baiano. A iniciativa visa
intensificar a segurança e favorecer a atuação voltada para a construção de
ambientes sem quaisquer tipo de ameaças aos professores e estudantes.
O
Comitê envolve diversos entes e organizações do poder público e da sociedade
civil, para uma atuação colaborativa de políticas de segurança em unidades
escolares. O grupo conta com a participação dos secretários de Estado e
representantes de órgãos estaduais e das forças da segurança pública da Bahia.
Além
da criação do comitê especializado, dois Projetos de Leis estão em trâmite na
Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) e Câmara Municipal de Salvador (CMS).
Com objetivos semelhantes, as propostas preveem a instalação de detectores de
metais nas instituições de ensino público do município e do estado.
Para
o professor Iago Gomes, as medidas podem ser importantes para garantir a
segurança da comunidade escolar neste momento mais conturbado em relação ao
aumento dos casos. Entretanto, ele reitera que é necessário um olhar sensível
tendo em vista diferentes realidades e condições nas escolas da Bahia.
“É
uma questão delicada que pode funcionar de forma momentânea para conter essa
onda de ataques, mas não vejo como algo que deva ser efetivado de forma
permanente porque a partir do momento você cria uma outra lógica de, por
exemplo, naturalizar a revista de mochila de crianças e adolescentes. Isso pode
gerar um outro problema que é o autoritarismo. Acredito que funcionaria como
uma medida emergencial, mas poderia ser uma proposta provisória para que a
gente consiga lidar com o problema e ganhe tempo para desenvolver outras
medidas de prevenção a longo prazo”, diz.
O
educador ainda fala do caráter emergencial da atuação da polícia em relação à
ronda escolar e ao atendimento de denúncias causadas por possíveis ataques e
ameaças. A partir disso, ele alerta para o cuidado em não criminalizar os
estudantes no ambiente escolar.
“Sobre
a polícia, em relação à ronda escolar, aos chamados de denúncia, é o trabalho
dela e que tem a ver com a segurança pública, mas isso não pode ser um trabalho
permanente dentro das escolas. A escola não é lugar de polícia, é importante
falar de prevenção. Precisamos pensar como a polícia vai atuar nesse espaço,
como vamos pensar a permanência de crianças, adolescentes periféricos. Então,
são questões que precisam ser discutidas na sociedade para que a escola não
seja essa redoma. A polícia deve garantir a segurança. E também pensar se essa
medida pode ter um efeito reverso do que a gente espera que aconteça. O
problema não está somente na presença de mais ou menos polícia, mas na origem
do discurso de ódio A gente precisa ter a garantia de estrutura para prevenir
os ataques e não somente punir”, completa.
Fonte:
A Tarde
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