Um programa
democrático para as Forças Armadas (parte 1)
Conforme
dizem muitos cientistas sociais, nossos militares, no decorrer da história,
sempre estiveram envolvidos com a política. Afirmam que desde a proclamação da República
até a aplicação do golpe na década de 60 do século passado eles exerceram uma
espécie de poder moderador. No transcurso dos 20 anos da ditadura, assumiram
diretamente o exercício do governo. Encerrado o período autoritário com a
entrega do poder aos civis, recolheram-se aos quartéis e dedicaram-se à
atividade profissional. Embora de maneira bem menos ostensiva do que no
passado, a ação política transcorreu segundo as normas do regime democrático
por meio da prática do voto, candidaturas em eleições, formulação da estratégia
de defesa nacional e fornecimento de colaboração nos períodos eleitorais.
Entretanto,
em 2018 ocorreu o julgamento de Lula no Supremo Tribunal Federal, o qual teve
negado seu pedido de Habeas Corpus. Como é do conhecimento de muitos, essa não
aceitação teve bastante a ver com o tuíte persuasivo emitido pelo general V.
Bôas, movido pelas pressões oriundas dos ativos e inativos da família militar.
Outro general já tinha admitido em entrevista que, caso ocorresse a concessão,
o recurso à reação armada seria inevitável, porquanto constitui um dever
militar restaurar a ordem. A Anistia Internacional, bem como a Ordem dos
Advogados do Brasil, a Associação Nacional dos Procuradores da República e a
Associação de Juízes Federais emitiram notas condenadoras do referido tuíte,
por atentar contra a independência dos Poderes e se revelar como uma afronta ao
Estado Democrático de Direito.
Com
Lula fora do páreo, a candidatura de Bolsonaro teve condições de avançar.
Quanto a ela, vale dizer que foi construída pelos militares adeptos de valores
conservadores e do sentimento antipetista que vislumbraram uma auspiciosa
chance de alcançar o poder pela via democrática. Observe-se que logo após esse
evento, houve um encontro de Bolsonaro com o general V. Bôas juntamente com
integrantes do Alto Comando do Exército, no qual aconteceu o incremento de sua
reabilitação no âmbito da força bem como o ganho de um relevante impulso à sua
caminhada política rumo ao Planalto. O denominado partido da farda, partido
militar ou partido verde-oliva encarregou-se de incentivar os integrantes da
caserna a alinharem-se ao capitão candidato. O poder de sedução da onda
bolsonarista estimulou inúmeros militares da ativa a violarem os regulamentos
castrenses para fazerem campanha nas redes sociais.
Uma
das primeiras medidas tomadas por Bolsonaro após eleito foi nomear milhares de
fardados para ocuparem cargos na esfera do governo. E, tendo em vista estreitar
o máximo possível a relação com eles, concedeu aos mesmos benefícios financeiros,
privilégios e agrados, dentre os quais se destacam verba extra para o
Ministério da Defesa, salário acima do teto constitucional, reestruturação da
carreira e alteração das regras de seguridade social. Essas retribuições não se
mostraram apenas como um gesto de agradecimento, mas também, e principalmente,
como uma tentativa de cooptação para apoio ao seu projeto populista de governo,
o que chegou a entusiasmar uma facção dos fardados.
Após
a recente derrota eleitoral do mito, outras manifestações dos servidores de
uniforme vieram à tona. Emergiu o aguardado relatório das urnas, que, em sua
primeira versão, foi favorável à confiança nas eleições realizadas, porém em
uma segunda versão tal confiança foi contestada. Alguns comandantes de quartéis
se mostraram simpáticos e condescendentes com os lamuriantes patriotas postados
em frente das guaritas vociferando por intervenção federal. Manifesto assinado
por militares da reserva e da ativa contra uma suposta insegurança jurídica e
uma instabilidade social e política no país foi postado como petição na
internet. Um sargento que prestava serviços na administração federal bradou que
Lula não iria subir a rampa. Os comandantes das três Forças, em desrespeito às
normas militares, ameaçaram abandonar os cargos antes da posse do presidente
eleito. E durante os quatro anos de governo a cúpula militar não veio nenhuma
vez a público rechaçar a possibilidade da ocorrência de golpe, deixando pairar
um sentimento de dúvida e de desconfiança na população.
Embora
se faça necessário destacar e enlevar os fardados por não terem enveredado rumo a uma aventura golpista sob o
comando de Bolsonaro, cabe acentuar que esse conjunto de acontecimentos
emergidos no transcorrer da história revela, no mínimo, que nossos militares ainda
não conseguiram se ajustar adequadamente às exigências do regime democrático.
Ademais, essas ocorrências se mostram como sequelas do modo de pensar e sentir
deles, que agrega o sentimento de superioridade em relação aos paisanos, o
elevado grau de autonomia para tomar decisões e a concepção de que não só podem
como devem exercer a tutela sobre o Estado e a sociedade. Além disso, e tão
importante quanto elas, é o fato de o Brasil se encontrar bem distante das
nações mais desenvolvidas no que diz respeito ao controle democrático das
Forças Armadas.
Com
efeito, desde há muito tempo, governantes, parlamentares do Congresso Nacional,
autoridades dos Poderes constituídos, elites dos vários setores e múltiplas
organizações sociais têm demonstrado notória despreocupação e desinteresse para
com o que ocorre no interior da caserna, apesar dos inúmeros estudos, das
sugestões e das propostas advindos dos pesquisadores integrantes da comunidade
acadêmica. Malgrado a existência deste manifesto descaso, revela-se imprescindível
a exposição de um programa democrático para tornar as Forças Armadas mais
ajustadas à democracia, conforme o que ocorre em outros países por ela regidos.
Papel
Constitucional: Nossa Carta Magna prevê para as Forças Armadas as tarefas de
defesa da Pátria, de garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer um deles, da lei e da ordem. O grande problema desta finalidade se
encontra na garantia da lei e da ordem, uma atividade que os militares exigiram
que fosse mantida na Constituição atual para perpetuar a mesma função prevista
naquelas que a antecederam. Tais dizeres são condizentes com toda estrutura
jurídica de um país que apresenta as denominadas lacunas da lei. Os vazios e
brancos da legislação não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira
provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É
intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria
lei. Essa tarefa possibilita aos militares continuarem exercendo o antidemocrático
poder moderador que veio à tona novamente durante o governo de Bolsonaro em
suas contendas com o Judiciário.
Não
pode ser esquecido que as Forças Armadas de qualquer país do mundo, apesar do
alto grau de autonomia que exibem, encontram-se ideologicamente atreladas aos
segmentos dominantes da sociedade. Quando estes setores não conseguem ser
hegemônicos na sociedade os militares aparecem em seu auxílio. Há, portanto, um
claro apreço pelo ocultamento nestes segmentos porquanto permite a ocorrência
de ações flexibilizadas as quais são muito importantes para a prática da
hegemonia. Os termos ordem e lei permitem a eles utilizar as Forças Armadas em
diversas circunstâncias, até naquelas em que pareça estar sendo violada a
determinação legal. Cabe acrescentar que nos países de democracia consolidada
não existe esta previsão legal. Em Portugal cabe às Forças Armadas a defesa
militar da República e na Alemanha elas têm por funções a defesa do país e a
intervenção nos casos em que a Lei Fundamental autoriza expressamente.
Portanto, é preciso retirar da Constituição esta tarefa ou acrescentar nela seu
explícito e objetivo significado.
Ministério
da Defesa: Durante os governos de Fernando Henrique, Lula da Silva e Dilma
Rousseff a chefia do Ministério da Defesa foi entregue a um civil. Com
Bolsonaro militares assumiram o comando. Pelo que se sabe os ministros civis
apresentaram um bom desempenho em suas funções, embora deva ser lembrado que
nas gestões deles ocorreram atos de resistência e insubordinação por parte dos
fardados resultantes de um legado autoritário segundo estudo feito por Jorge
Zaverucha.
Recorde-se
que nos Estados Unidos da América do Norte os comandantes que ocuparam o
Departamento da Defesa, ou seja, os Secretários da Defesa, foram tanto civis
quanto militares, mas os paisanos predominaram. Talvez o povo estadunidense até
prefira um militar na chefia deste órgão porquanto o prestígio dos fardados
perante a população é muito alto, gira em torno de oitenta por cento. Ademais
os cidadãos norte americanos nutrem uma grande preferência pelas soluções
militares aos vários tipos de problemas que afligem a sociedade. Em nosso país,
ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, os militares, no decorrer da
história, interviram demasiadamente no jogo político e o prestígio das Forças
Armadas recebeu vários arranhões. Para mudar o modo de pensar dos servidores de
uniforme e conseguir a real subordinação deles aos civis eleitos pelo voto é
imprescindível que a chefia do Ministério da Defesa seja endereçada apenas aos
civis.
Conquanto
a história registre que todos os ministros da defesa foram indivíduos do sexo
masculino, inclusive o atual já nomeado, a opção por uma mulher, pesquisadora
de assuntos militares e com bom trânsito na caserna, seria bem-vinda. Veja-se que
as mulheres, desde há muito tempo, estão sendo aceitas nas hostes castrenses em
condições de igualdade com os homens nos diversos ramos da profissão militar.
Elas são consideradas aptas física e mentalmente para exercer todas as funções
destinadas aos fardados masculinos inclusive a de guerreira. Persistem
demonstrando um bom desempenho nas atividades a elas destinadas e muitas vêm
ocupando posições de destaque por meio do alcance do posto de general. Muitas
dezenas de mulheres já ocuparam o cargo de Ministro da Defesa tais como Indira
Gandhi na Índia, Elisabeth Rehn na Finlândia, Kim Kampbell no Canadá, Laura
Miranda na Costa Rica, Kristin Devold na Noruega, Michelle Bachelet no Chile.
Pelo que se sabe, mesmo enfrentado as dificuldades pertinentes todas alcançaram
êxito em suas tarefas no decorrer do mandato. Ressalte-se que a atual ocupante
da pasta na Alemanha é Christine Lambrecht. Ademais constitui uma forma de
aumentar a presença delas em cargos de governo uma vez que a composição
ministerial em nosso tem sido majoritariamente masculina.
Ensino
nas Academias: Com os trabalhos da atual equipe de transição, particularmente
no âmbito da área da defesa, os militares apresentaram quatro pontos que eles
não aceitam que sejam tocados, sendo um deles o ensino nas Academias. Em parte,
eles possuem razão porquanto devem levar em conta que praticamente inexistem
civis entendedores de ensino militar. A favor desta provável suposição
mencione-se que nos cursos de Pedagogia não há especialidade em educação castrense
e nem na área da pós-graduação. Os mesmos exibem atitude semelhante constatada
em colegas estrangeiros, particularmente os da Bulgária, que alegam a falta de
civis competentes neste setor de ensino.
Malgrado
esta suposição seja verdadeira é sabido que em outras nações tem ocorrido algum
controle civil sobre a educação dos fardados. Na Inglaterra e na Alemanha, os
alunos antes de frequentarem as Academias Militares precisam concluir uma
licenciatura ou um bacharelato em universidades relativos a várias áreas do
conhecimento, os quais encurtam a duração do preparo no interior da caserna. O
ensino superior de todos os países integrantes da Comunidade Europeia é regido
pelo alcunhado Processo de Bolonha complementado pela Estratégia de Lisboa e
pela Estratégia Europa o qual visa facilitar o intercâmbio de graduados e
adaptar o conteúdo dos estudos universitários às exigências sociais, melhorando
a sua qualidade e competitividade através de uma maior transparência e uma
aprendizagem baseada no estudante quantificada através dos créditos.
Enquanto
uma modalidade de ensino superior o ensino militar também é obrigado a seguir
esta orientação e os órgãos centrais de educação de cada país têm a incumbência
de monitorar as instituições de ensino castrenses em relação a esta obrigação.
A Finlândia é uma nação que vem empreendendo esforços para seguir tal rumo.
Para tanto as instituições militares de ensino já incluíram no currículo um
conteúdo acadêmico composto de ciências humanas e naturais e instituíram os
graus de bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares dentre outras
mudanças. Na Turquia o ensino superior militar é subordinado ao Ministério da
Educação. Sua organização e seu funcionamento obedecem a Lei do Ensino Superior
e as normas emanadas do Conselho de Ensino Superior. No caso brasileiro as três
Academias Militares poderiam agregar um núcleo básico comum voltado para o
estudo de certos temas tais como o papel das Forças Armadas, a defesa da
democracia e as relações civis militares, o qual seria diretamente
supervisionado pelo Ministério da Educação. É possível ir mais além e seguir os
passos da Argentina que criou uma Universidade Nacional da Defesa subordinada
ao Ministério da Educação e transferiu para ela a tarefa de formar seus
servidores fardados.
Fonte:
Por Antônio Carlos Will Ludwig, na Conjur
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