Por que o
neoliberalismo em crise se reproduz?
Em
meio a uma crise sistêmica, da globalização e do hegemon norte-americano, de
sucessivas falências financeiras e de curto circuitos em seu dinamismo
econômico, de instabilidade política e perda de credibilidade de suas razões, o
capitalismo neoliberal tem conseguido sobreviver e se reproduzir no século XXI.
Por que?
Uma
explicação, decerto, diz respeito a uma correlação de forças ainda largamente
desfavorável às classes trabalhadoras no plano internacional, a partir de uma
grande ofensiva capitalista iniciada nos anos oitenta do século passado e que
até hoje ainda não foi invertida. Outra apontaria que ainda não se produziu com
credibilidade, legitimidade e um mínimo de estabilidade uma alternativa ao
capitalismo neoliberal, lembrando que um paradigma em crise permanece enquanto
não for superado e não apenas criticado.
Mas
há uma outra razão, que pesa sobre a própria alteração da correlação de forças
e sobre a produção de alternativas ao neoliberalismo, que diz respeito ao
próprio limite do entendimento do que vem a ser o neoliberalismo. Este limite
tem relação central com a própria gênese dos estudos sobre o neoliberalismo,
que vinha de uma matriz da crítica à economia política neoliberal e dos
seminários dados por Michael Foucault no Collège de France nos anos de 1978 e
1979. Ambos careciam de um conceito político do neoliberalismo, em particular
das profundas mudanças que ele provocou no regime dos Estados liberais.
• Conquistas e limites de Michael Foucault
Os
estudos sobre neoliberalismo devem à razão crítica, livre e selvática, de
Michael Foucault a identificação de uma mutação em curso no interior do próprio
campo liberal, ainda invisível e em processo de expansão para o centro desta
tradição. Ali estava se produzindo uma alteração no próprio conceito de
liberdade, pensado agora como ontológico a própria formação, desenvolvimento e
reprodução da vida mercantil, deslocando o conceito clássico de liberdade no
liberalismo. Agora não se tratava de regular negativamente a expansão do Estado
pelos direitos do homo economicus liberal, delimitando e interditando o seu
espaço de intervenção, mas de criar uma nova razão expansiva que deveria
organizar não apenas o próprio Estado, mas toda a vida social. Esta nova razão
buscava modelar a própria sociedade a partir de uma modalidade empresarial e a
própria personalidade dos indivíduos, sua formação e modos de vida, a partir de
sua compreensão como um capital humano em acumulação.
Outro
grande mérito de Michael Foucault está em historicizar a formação do
ordoliberalismo alemão desde os anos vinte do século passado, a partir das suas
relações com a Escola de Viena, como reação liberal à emergência e aos impasses
da República de Weimar. Esta tradição, criada por economistas e juristas
alemães como Walter Eucken, William Ropke, Alexander Rustow e Franz Bohm, fazia
a crítica do laissez-faire, da concepção de um funcionamento da economia de
mercado sem um Estado forte que a normatizasse, garantisse suas regras e
atuasse sobre suas dinâmicas hostis à concorrência.
Prevalecente
no pós-guerra alemão, ela se constituiria como uma alternativa ao keynesianismo
dominante na época e levaria a uma subordinação do Partido Social-Democrata
alemão a seu paradigma, constituindo um capítulo importante e decisivo para a história
futura da Europa. Seria exatamente esta tradição neoliberal alemã que estaria
no centro do processo de unificação europeia nas décadas seguintes.
Michael
Foucault diferencia, com razão, este ordoliberalismo, associado à Escola de
Freiburg, da emergência do neoliberalismo nos Estados Unidos, onde há uma
tradição menos estatista e onde uma nova razão mercantil pode se desenvolver
mais plenamente como reguladora do Estado e como organizadora da vida social.
O
neoliberalismo norte-americano, se formaria na crítica ao New Deal, e nos anos
cinquenta incorporaria uma visão que atribuía um sentido virtuoso à própria
formação dos monopólios, como fruto de ganhos competitivos em tecnologia e
produtividade. O que Michael Foucault, então, registra é a tensão entre estas
duas tradições que convergem para a necessidade de uma refundação e atualização
da tradição liberal contra o liberalismo social ou keynesiano e as ameaças do
socialismo.
Neste
esforço de produzir um estudo da genealogia das relações entre saber e poder,
podemos identificar uma grave falha conceitual, uma leitura ainda incompleta da
mutação do conceito de liberdade na tradição liberal, a ausência ainda de uma
história de como estas ideias se vincularam à formação de poderes políticos com
dimensões geopolíticas mundiais. E, ainda, a barreira de uma crítica vulgar a
Marx que o impede de ver como o neoliberalismo é orgânico à dinâmica do
capitalismo em sua crise de época e em suas atualizações.
O
principal déficit conceitual de Michael Foucault, expressivo de sua trajetória
de um estruturalismo a uma concepção da microfísica do poder, é a ausência de
um conceito de Estado, decisivo para a compreensão do que é o neoliberalismo.
Michael Foucault trabalha centralmente com o conceito de governamentalidade, chegando
a definir no seminário de 31 de janeiro de 1979 o Estado como sendo “o efeito
móvel de um regime de governamentalidades múltiplas”. O neoliberalismo seria,
então, para ele um novo regime de governamentalidade.
Ora,
faz falta aqui a distinção clássica da filosofia política entre Estado (que
envolve centralmente a dimensão da soberania e um princípio de legitimação
desta soberania), regime (que diz respeito aos diferentes modos de exercício e
reprodução do poder político, das diversas combinações possíveis entre coerção
e consenso) e governo (que diz respeito ao exercício atualizado do poder no
interior das regras e pactos constituídos por um regime). Certamente o
neoliberalismo é mais do que uma governamentalidade, uma racionalidade de
governo: é uma alteração do próprio regime do Estado liberal, uma mudança nos
padrões de exercício e reprodução do poder político, em particular, uma
alteração regressiva de suas dimensões democráticas e republicanas.
A
leitura incompleta da mutação do conceito de liberdade que está em curso na
gênese do neoliberalismo diz respeito à ausência de uma análise mais detida dos
capítulos iniciais do livro A constituição da liberdade (1960), de Friedrich
Hayek. Se é certo que a identificação da liberdade como somente ontologicamente
possível no mundo mercantil é central para Friedrich Hayek, não é menos
importante a sua desvinculação da noção de autogoverno ou de soberania popular,
que marca o sentido anti-democrático e anti-republicano de raiz do
neoliberalismo. Ainda, se o liberalismo do século XIX já expressava a tensão
entre liberdade e igualdade, em Friedrich Hayek a linguagem liberal já faz o
elogio aberto da desigualdade como intrinsecamente vinculada à aventura da
liberdade no mundo mercantil.
O
passo importante de Michael Foucault em estudar e demonstrar a gênese das
ideias neoliberais e o modo como formou a tradição política da Alemanha no
pós-guerra foi completado de um modo decisivo com o livro The Road from Mont
Pelèrin; The Making of the Neoliberal Thought Collective, editado por Philip
Mirowski & Dieter Plehwe em 2009. Este livro identifica a centralidade de
Friedrich Hayek e da sociedade Mont Pellèrin para construí uma convergência
histórica possível entre o neoliberalismo norte-americano e o ordoliberalismo, na
formação de uma tradição unificada em seu pluralismo. Falta ainda a este livro,
no entanto, uma identificação de como este pensamento coletivo tornou-se
orgânico ao poder político, tendo como epicentro o Estado norte-americano.
Enfim,
o modo vulgar como Michael Foucault se refere ao marxismo no Seminário final de
4 de abril de 1979 não deixa também de marcar o limite deste importante autor.
Pois quem faz crítica vulgar, vulgariza o seu próprio pensamento. Todo um rico
campo de análise da crítica do capital feita por Marx, incontornável para o
estudo do neoliberalismo, fica esterilizado por esta vulgar crítica de
Foucault.
• Um novo regime do Estado liberal
Quando
Joseph Stiglitz em 2008 – na eclosão da grande crise financeira internacional –
prognosticou o fim do neoliberalismo, ele provavelmente partia de um senso
comum que atribuía a ele o sentido de ser uma certa orientação de políticas de
governo. Mas a crise do neoliberalismo foi enfrentada a partir dos modos de
regulação, pelas instituições e novas regras do exercício do poder criadas pelo
próprio neoliberalismo. A crise do capitalismo neoliberal levou, então, a um
aprofundamento do próprio regime neoliberal, do seu sentido anti-democrático e
anti-republicano, como ficou claro nas décadas seguintes.
Quando
Wendy Brown escreveu os seus referenciais Desfazendo o demos. A revolução
discreta do neoliberalismo (2015) e Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da
política autoritária no Ocidente (2019), livros inspirados originalmente por
Foucault e que procuram mapear as macro-dimensões políticas do desenvolvimento
neoliberal, ela ainda carece de um tratamento conceitual do neoliberalismo como
um novo regime de Estado neoliberal. Se é verdade que o neoliberalismo destrói
o demos democrático, ele constrói um novo regime anti-democrático e
anti-republicano. Não são propriamente nas ruínas do neoliberalismo em que se
desenvolvem fenômenos autoritários e protofascistas mas como expressão mesmo de
seu desenvolvimento.
Este
novo regime do Estado liberal, que é o neoliberalismo, é fundamental para
explicar porque ele é resiliente e se reproduz mesmo em sua crise. E poderia
ser assim caracterizado.
Em
primeiro lugar, a construção de uma meta legalidade não submetida ao controle
democrático, como bancos centrais independentes ou autônomos, regimes de
austeridade fiscal que se impõem aos escrutínios eleitorais, criação de regimes
contratuais regulados por órgãos superiores, insulamento burocrático de órgãos
decisivos de decisão econômica, adesão a tratados ou organismos internacionais
que se impõem às soberanias nacionais.
Este
regime político, como nos propõe Bob Jessop, organiza um novo regime de
acumulação capitalista, centrado na hegemonia dos setores financeiros do
capital, imprimindo uma dimensão global de financeirização aos ciclos
capitalistas.
O
novo regime neoliberal de Estado conduz a um severo encolhimento do direito
público, da esfera pública, dos bens públicos em prol de uma expansão inaudita
do direito privado, da privatização da informação, da formação de opinião e do
debate democrático, além de privatizar a propriedade e gestão dos serviços
públicos. Conduz inevitavelmente a uma crise das dimensões republicanas da
democracia, da própria capacidade das democracias em institucionalizar e
processar os conflitos.
Por
fim, este novo regime neoliberal de Estado expande as suas dimensões
coercitivas e de repressão na mesma proporção que impede o desenvolvimento e
corrói a expansão dos direitos democráticos e sociais.
Quando
candidatos com plataformas antineoliberais vencem eleições é contra este regime
neoliberal de Estado que têm de governar. E o grau em que enfrentam ou são
capazes de transformar, e não se conformar a estes regimes, define a própria
aplicação de seus programas legitimados pelo voto das maiorias e, enfim, a sua
própria identidade e futuro.
União Europeia cria obrigações inéditas
para plataformas
A
União Europeia (UE) publicou nesta terça-feira (25) uma lista de 19 plataformas
digitais com milhões de usuários — incluindo gigantes como o Instagram, TikTok
e Twitter, Amazon, Google e Microsoft — que passarão por uma regulação muito
mais rígida a partir do final de agosto de 2023.
As
regras tocam em pontos sensíveis ao modelo de negócios das plataformas, com uma
série de obrigações inéditas, divulgadas em comunicado da Comissão Europeia:
• Plataformas precisam compartilhar
algoritmos com especialistas da União Europeia, que avaliarão se a plataforma
segue diretrizes para evitar risco;
• Plataformas terão que rotular todos os
anúncios e informar aos usuários quem os está promovendo;
• Comissão também determina que
plataformas terão que "redesenhar seus sistemas" para garantir um
alto nível de privacidade, segurança e proteção de menores;
• Anúncios não poderão se basear em dados
sensíveis do usuário, como etnia, religião e orientação sexual;
• Empresas terão que publicar repositórios
com dados de todos os anúncios que exibem;
• Usuários precisam receber informações
claras sobre o motivo pelo qual são recomendadas determinadas informações e
terão o direito de optar por não participar dos sistemas de recomendação das
redes sociais;
• Publicidade direcionada com base em
perfis para crianças não é mais permitida;
As
empresas que descumprirem a lei depois de 25 de agosto terão que pagar multas
que podem chegar aos 6% do seu faturamento global e estão sujeitas a proibição
temporária de operar no espaço europeu.
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Lista de empresas
A
nova regulamentação coloca as plataformas digitais com mais de 45 milhões de
usuários nos 27 países da UE nesse regime especial. Veja a lista completa
abaixo:
1. Alibaba AliExpress;
2. Amazon Marketplace;
3. Apple (AppStore);
4. Booking.com;
5. Facebook;
6. Google Play;
7. Google Maps;
8. Google Shopping;
9. Instagram;
10. LinkedIn;
11. Pinterest;
12. Snapchat;
13. TikTok;
14. Twitter;
15. Wikipedia;
16. YouTube;
17. Zalando.
E
as maiores plataformas de buscas:
1. Bing;
2. Google Search.
As
novas regras, que serão impostas exclusivamente às plataformas gigantes, se
somam às já previstas para todas as redes sociais, marketplaces e buscadores,
independentemente de seu tamanho, que deverão entrar em vigor em 17 de
fevereiro de 2024.
Elas
incluem a obrigação de remover imediatamente conteúdos ilegais e de denunciar
às autoridades no caso de um "crime grave".
• O que dizem as empresas
Um
porta-voz do TikTok afirmou que a empresa "apoia os objetivos da
regulamentação" e que há vários meses vem trabalhando na implementação das
normas.
Segundo
essa fonte, "mais de 125 milhões de pessoas em toda a UE acessam o TikTok
todo mês".
Por
sua vez, um porta-voz do Google destacou que o gigante digital compartilha o
interesse da legislação "em tornar a internet ainda mais segura,
transparente e responsável".
Fonte:
Por Juarez Guimarães, em A Terra é Redonda/g1
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