quarta-feira, 26 de abril de 2023

ONU: Situação no Haiti é comparável à de países em guerra

A insegurança na capital haitiana, Porto Príncipe, atingiu níveis semelhantes aos de países em guerra, afirmou a ONU nesta segunda-feira (24/04), em um relatório no qual destaca o aumento de assassinatos e sequestros no país caribenho e pede o envio de uma força internacional para a ilha.

"O povo haitiano continua enfrentando uma das piores crises de direitos humanos em décadas e uma grande emergência humanitária", destaca o relatório do secretário-geral da ONU, António Guterres.

"Devido ao elevado número de mortos e ao crescente número de áreas controladas por grupos armados, a insegurança na capital atingiu níveis comparáveis com os de países em situação de conflito armado", acrescenta.

O número de homicídios registrados no Haiti aumentou 21% nos últimos meses, passando de 673 no último trimestre de 2022 para 815 entre 1º de janeiro e 31 de março deste ano. Já o número de sequestros cresceu 63% nesse mesmo período de referência, de 391 para 637.

De acordo com o relatório, grupos armados "continuam a competir para expandir o controle territorial em toda a região metropolitana de Porto Príncipe, espalhando-se por bairros até agora poupados". O documento também observa o aumento da violência e da frequência de confrontos " entre gangues e com a polícia, que têm custado a vida de muitos civis.

Como resultado, "a situação de habitantes de áreas controladas por grupos armados continua bastante ruim" e, em áreas recentemente alvo desses grupos, as condições "pioraram significativamente". O relatório destaca em particular a situação catastrófica dos habitantes de Cité Soleil, na região metropolitana da capital, onde franco-atiradores posicionados em telhados atacam pedestres nas ruas.

"Os moradores se sentem sitiados. Não podem mais sair de casa por medo da violência armada e do terror imposto pelas gangues", disse a coordenadora humanitária da ONU para o Haiti, Ulrika Richardson, num comunicado no domingo. 

·         Mais de 70 mortos em seis dias

Entre os dias 14 e 19 de abril, os confrontos entre gangues rivais deixaram quase 70 mortos, incluindo 18 mulheres e pelo menos duas crianças, e 40 feridos.

"Reitero a necessidade urgente do envio de uma força armada internacional especializada", em particular para ajudar a polícia a restabelecer a ordem, defendeu Guterres no relatório.

O secretário-geral da ONU havia retransmitido em outubro um pedido de ajuda do primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, apelando ao Conselho de Segurança pelo envio dessa força. Embora alguns países tenham indicado vontade de participar, nenhum se apresentou para assumir a liderança da missão.

Nos últimos seis meses, ataques armados deixaram mais de 400 mortos no país, segundo um relatório da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), que exige explicações das autoridades diante do aumento dos ataques contra a população civil. Desde novembro do ano passado, ao menos oito ataques contra a população foram promovidos por gangues que disputam territórios na região metropolitana da capital.

Ataques armados esporádicos e massacres contra a população haitiana se intensificaram no país desde o início de 2023. A RNDDH relata que, além dos assassinatos, as gangues promovem estupros coletivos de mulheres e meninas. O relatório da rede destaca ainda que mais de 50 regiões conhecidas antigamente pela tranquilidade sofreram ataques desde o início do ano.

Entre os dias mais sangrentos da atual onda de violência, está a noite de 29 para 30 de novembro, quando 72 pessoas foram mortas e 29 mulheres e meninas foram estupradas em Sous Matela. Centenas de casas foram incendidas.

·         Clima de terror

A RNDDH condenou o clima de terror instaurado no país e acusou a coligação política no poder de proteger os criminosos e dar carta branca às gangues para atacar a população civil. A organização pediu que o governo volte atrás de medidas aplicadas entre fevereiro e outubro de 2022, que teriam levado à intensificação do conflito.

Com o recebimento de equipamentos e veículos da comunidade internacional, principalmente dos EUA, a Polícia Nacional do Haiti decidiu ocupar e controlar territórios para confinar gangues em seus redutos, dificultando a movimentação dos criminosos. Mas "a revogação pelas autoridades estatais desse plano estratégico de controle permitiu às gangues armadas controlar a região metropolitana", destaca a RNDDH.

·         Linchamento público

Diante da violência de grupos armados, uma multidão em Porto Príncipe espancou e ateou fogo nesta segunda-feira 13 supostos membros de gangues até à morte, depois de retirarem esses homens da custódia da polícia, disseram agentes policiais e outras testemunhas.

A Polícia Nacional do Haiti disse, num breve comunicado, que agentes pararam e revistaram um ônibus do transporte público em busca de contrabando e confiscaram armas dos suspeitos antes de estes "serem infelizmente linchados pela população". A declaração não deu mais detalhes sobre como a multidão conseguiu controlar os suspeitos.

Uma testemunha que se identificou como Edner Samuel disse à agência de notícias Associated Press (AP) que a multidão levou os supostos criminosos para longe da polícia e que estes foram espancados, apedrejados, cobertos de gasolina e queimados.

A terrível violência evidencia a raiva da população em relação à situação em Porto Príncipe. Gangues assumiram o controle de 60% da cidade desde o assassinato do então presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021.

·         Grave crise socioeconômica e política

O Haiti vive uma grave crise socioeconômica e política, que se intensificou nos últimos meses. O país sofre com uma espiral de violência e com o reaparecimento da cólera, num surto que já deixou 669 mortos desde outubro.

O primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, pediu ajuda militar internacional para combater as gangues em outubro de 2022, mas ainda não obteve uma resposta.

Max Leroy Mésidor, arcebispo da capital do país, Porto Príncipe, disse nas redes sociais que a situação no país "piora a cada dia" e que o Haiti está "mergulhando no caos absoluto". O arcebispo acusou o governo de "indiferença" para com as vítimas do surto de cólera e dos grupos armados que têm cometido crimes de violência sexual e sequestro.

 O Comitê Internacional da Cruz Vermelha também pediu respeito pela missão médica no país e afirmou que a atividade da organização tem sido dificultada pelas restrições de circulação impostas devido ao risco "de ser apanhado em fogo cruzado", o que limita em grande medida o acesso aos serviços de saúde.

Nos últimos meses, os Estados Unidos e o Canadá aplicaram sanções a vários líderes políticos haitianos pelo envolvimento com o narcotráfico, lavagem de dinheiro e financiamento de algumas dessas gangues.

A crise provocou um aumento da migração do Haiti, através de rotas marítimas perigosas, para os países vizinhos. Um relatório da Anistia Internacional, apresentado no início de abril, aponta que 40% da população do país está em situação de emergência alimentar.

 

Ø  Haiti caminha para a completa anarquia? Por Jan D. Walter

 

Haiti está preso há anos em uma crise política e humanitária permanente. Esta semana, policiais à paisana atacaram a casa do primeiro-ministro interino, Ariel Henry, quando ele voltava da cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Depois, manifestantes, muitos dos quais disfarçados de policiais, invadiram o aeroporto da capital Porto Príncipe para esperar o primeiro-ministro.

De acordo com o sindicato da polícia haitiana, supostos membros de gangues mataram 15 policiais apenas nas últimas duas semanas. Furiosos, os agentes acusam o chefe do governo de não ajudá-los - alguns até especulam que ele esteja aliado às gangues. De acordo com a organização haitiana de direitos humanos RNDDH, 78 agentes de segurança foram mortos desde que Henry assumiu o cargo em julho de 2021.

·         Situação política desoladora

Ariel Henry foi nomeado como primeiro-ministro pelo então presidente Jovenel Moïse. No entanto, apenas dois dias depois, antes mesmo de Henry ser empossado, Moïse foi assassinado. Não há Parlamento que possa confirmar constitucionalmente Henry no cargo - os haitianos não elegem um desde 2015.

As eleições gerais e presidenciais de novembro de 2021 não ocorreram porque Henry dissolveu o comitê eleitoral por alegações de parcialidade. Desde então, manteve-se no cargo. E, por essa razão, é considerado por muitos haitianos como um governante ilegítimo. Muitos suspeitam de maquinações estrangeiras por trás de sua chegada ao poder, bem como por trás do assassinato de Moïse.

Mesmo antes do assassinato do presidente, a situação política no Haiti era considerada desoladora. Anos atrás, o governo efetivamente perdeu o controle de partes do país para criminosos. Na capital, Porto Príncipe, gangues controlam mais da metade dos distritos. Tendo em vista a situação de segurança catastrófica, observadores também acreditam que eleições democráticas dificilmente seriam viáveis.

·         Tropas estrangeiras vão intervir?

Em outubro de 2022, Henry pediu à Organização das Nações Unidas (ONU) e aos países amigos que enviassem tropas para combater as gangues. No início desta semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, enfatizou a urgência de enviar forças armadas ao país caribenho para proteger a população e garantir caminhos para ajuda humanitária.

Apesar disso, parece que ninguém quer assumir essa responsabilidade. "Os riscos são altos, as chances de sucesso são duvidosas", explica Judith Vorrath, da Fundação de Ciência e Política, da Alemanha.

Mesmo que fosse possível repelir as gangues e garantir infraestruturas críticas como o porto e importantes vias de acesso, isso não seria uma solução permanente. "Ninguém sabe como poderia deixar o país se não houver progresso no processo político", destaca Vorrath.

·         Resistência interna

Além disso, tropas estrangeiras provavelmente teriam que enfrentar uma resistência considerável - não apenas das gangues, observa o International Crisis Group. A oposição política e grande parte da população haitiana rejeitam qualquer nova intervenção. As experiências anteriores com operações da ONU foram péssimas.

Os capacetes azuis da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês), de 2004 a 2017, realizaram ações brutais contra membros da oposição, estupraram moradores e participaram da exploração sexual de menores. Após o devastador terremoto de 2010, trouxeram a cólera - mais de 500 mil pessoas adoeceram e até 10 mil sucumbiram à epidemia.

Na maior parte do tempo, as forças de paz foram comandadas pelo Brasil, com a participação de contingentes de vários outros países.

A missão política da ONU BINUH (Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti), que está no país desde 2019, também sofre com a desconfiança.

"Muitas pessoas, inclusive em outros países onde a ONU opera, não necessariamente diferenciam entre missões de manutenção da paz, presença da ONU e outras missões que são cobertas pelo Conselho de Segurança da ONU", explica Vorrath.

·         Narrativa imperialista

Soma-se a isso a narrativa do imperialismo racista dos EUA, predominante na América Latina, que também mobiliza os haitianos contra intervenções estrangeiras que tenham alguma conexão com a potência mundial do norte. Muitos no Haiti assumem que o assassinato do presidente Moïse foi articulado ou mesmo executado por serviços secretos estrangeiros.

"Essas enormes reservas certamente também são um motivo para a relutância em países que, como o Canadá, poderiam ser considerados para uma missão no Haiti", diz Vorrath.

O governo de Ottawa forneceu ao país uma ajuda de 98 milhões de dólares somente no ano passado - entre outras coisas para fortalecer as forças de segurança e o judiciário. Em meados de janeiro, enviou à polícia haitiana veículos blindados para usar na luta contra as gangues.

·         As gangues controlam a política?

As gangues haitianas realizam crimes típicos deste tipo de grupo: roubo, extorsão, tráfico de drogas etc.

Por essa razão, lutam pela supremacia em territórios relativamente limitados. De acordo com um relatório da ONU, elas também intimidam a população com violência sexual, espalhando terror.

No entanto, muitas das incontáveis ​​gangues estão agora organizadas em duas grandes coalizões. Os confrontos no verão passado mataram cerca de 500 pessoas, a maioria civis. O líder da aliança de gangues "G9", Jimmy "Barbecue" Chérizier, está nas listas de sanções da ONU e de vários Estados-membros.

Agora parece que com a disseminação e organização mais forte das gangues não apenas a violência está aumentando, mas também sua influência.

"As gangues sempre foram usadas politicamente, por exemplo, para manipular eleições ou eliminar adversários políticos", explica Vorrath. "A questão agora é se, à medida que se tornam mais poderosas, elas vão se separar de seus clientes e protegidos na política, mesmo que provavelmente ainda não tenham sua própria agenda política no sentido mais estrito", explica.

O fato de as gangues estarem cada vez mais populares também se deve à pobreza. O Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental. A organização de ajuda International Rescue Committee classifica a crise humanitária lá entre as dez piores do mundo.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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