quarta-feira, 26 de abril de 2023

O 'submarino de cocaína' que expõe o problema europeu com a droga

Estou, neste momento, entrando no primeiro "narcossubmarino" apreendido por trazer cocaína da América do Sul para a Europa.

Ele tem 20 metros de comprimento, é feito de fibra de vidro e sua construção é artesanal.

Depois de escalar até o topo, ergo sua tampa deformada e desço para o casco onde três homens sobreviveram por 27 longos dias, atravessando o Oceano Atlântico sob a superfície das ondas.

É apertado, claustrofóbico e incrivelmente primitivo.

Existe um volante de direção, dois mostradores básicos e uma chave enferrujada ainda na ignição.

É fácil entender por que um candidato a comandante deu uma olhada na embarcação e concluiu que era uma armadilha mortal.

O calor e o barulho devem ter sido intensos enquanto o motor na parte de trás do submarino queimava os 20 mil litros de combustível armazenados a bordo.

A tripulação consistia de dois primos equatorianos e um ex-pugilista espanhol, que saíram do Brasil para começar sua viagem, inicialmente pelo rio Amazonas.

Eles carregavam barras energéticas, latas de sardinha e sacos plásticos que usavam como toalete.

Era tudo o que eles tinham. Além, é claro, de três toneladas de cocaína, avaliadas em mais de US$ 150 milhões (cerca de R$ 750 milhões).

O submarino saiu em sua missão secreta no final de 2019, mas não atingiu seu objetivo. A viagem havia sido rastreada pelas forças policiais, incluindo a Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA, na sigla em inglês).

Depois de enfrentarem problemas e submergirem perto da costa da Galícia, na Espanha, os homens foram capturados e levados para a prisão.

A embarcação agora faz parte da história da luta contra o tráfico internacional de drogas. Ela é mantida como um troféu no estacionamento da academia espanhola de polícia em Ávila.

Mas não se trata de uma relíquia de uma batalha vencida. É o símbolo de um fenômeno que vem crescendo em segredo. Tanto é verdade que, no mês passado, outro submarino foi descoberto em águas espanholas – novamente, na região da Galícia.

"Os traficantes vêm usando submarinos há mais de 20 anos para chegar à África e à Europa, mas estes dois são os primeiros que interceptamos", explica Antonio Martínez Duarte, comissário-chefe da Brigada contra o Narcotráfico da Polícia Nacional Espanhola. Ele admite que "é muito difícil detectá-los".

Acredita-se que centenas de submarinos artesanais tenham sido lançados em direção à Europa – o segundo maior mercado de cocaína do mundo, depois dos Estados Unidos.

Comenta-se até que, no meio do Oceano Atlântico (em volta das ilhas Canárias e do arquipélago dos Açores), existe um enorme cemitério de submarinos que transportavam cocaína, deliberadamente afundados depois que a carga foi retirada com sucesso.

Cada missão secreta teria sido um imenso triunfo para as equipes de mecânicos que constroem as embarcações em silêncio, nas profundezas da floresta amazônica, principalmente na Guiana e no Suriname.

Mas, aqui na Espanha, como parte da guerra contra o tráfico global, a polícia anunciou uma grande vitória nos seus escritórios centrais em Madri. As autoridades afirmam terem descoberto o maior laboratório de refino de cocaína já encontrado no continente.

"Esta é uma operação muito importante", afirma o comissário-chefe Duarte. "É a primeira vez na Europa que encontramos uma tonelada e meia de pasta base de cocaína."

Mas a importância não está só no tamanho da descoberta.

"Esta operação também confirma as relações entre os criminosos mexicanos e colombianos, que se uniram às gangues espanholas que trabalham aqui", afirma o comandante-chefe Duarte.

Nitidamente orgulhosos do seu trabalho, os policiais transportaram o conteúdo do laboratório para mostrar aos jornalistas locais em uma entrevista coletiva. O cheiro da pasta de coca bruta – parecido com vinagre – paira na sala.

Foi simulado o processo de fabricação de drogas, usando barris de substâncias, um micro-ondas, uma prensa hidráulica e balanças, ilustrando a transformação da pasta no produto final.

Em uma mesa no canto da sala, estão dezenas de pacotes marrons, do tamanho de tijolos, estampados com o símbolo do Super-Homem.

Um policial se aproxima e conta que os importadores pagam 27 mil a 32 mil euros (cerca de R$ 150 mil a 177 mil) por pacote. E ganham, no mínimo, o dobro do dinheiro quando vendem a droga nas ruas.

O único limite para os seus lucros é o quanto eles diluem a droga com agentes de corte, como anestésicos (que imitam as sensações físicas associadas à cocaína, como a boca dormente) até opções mais baratas, como glicose e cafeína.

Mas existem também outras opções, como os vermífugos, normalmente utilizados por veterinários.

A polícia afirma que o laboratório desmontado na cidade de Pontevedra, na região espanhola da Galícia, era capaz de produzir 200 kg de droga por dia, com pureza de 95%.

·         Em expansão

Ao lado dos submarinos, o laboratório é uma amostra do mundo do narcotráfico, que está em rápida expansão.

A agência de combate às drogas das Nações Unidas (UNODC, na sigla em inglês) afirma que a produção de cocaína aumentou em um terço entre 2020 e 2021 – o que representa um recorde de alta e o maior aumento de um ano para outro desde 2016.

Um local que vem presenciando em primeira mão o pico do fornecimento da droga é o porto de Antuérpia, na Bélgica. Em 2022, foram apreendidas 110 toneladas de cocaína.

Esta quantidade é outro recorde – tão grande que não havia incineradores suficientes para destruí-la com rapidez.

Estimativas indicam que são interceptados apenas 10% da cocaína que chega ao porto. O restante da droga vai para a Holanda, onde ela é distribuída para todos os cantos do continente europeu e das ilhas britânicas.

O chefe da alfândega do porto de Antuérpia afirmou à reportagem que, com esse tsunami de coca, eles nunca irão vencer a guerra.

E esta luta já causou um assassinato nas ruas da cidade. Em janeiro, uma menina de 11 anos de idade foi morta em um tiroteio entre gangues relacionadas ao comércio de cocaína na cidade.

O ministro da Justiça da Bélgica, Vincent van Quickenborne, tem se abrigado com frequência em um local secreto no último ano. A polícia descobriu um carro com armas de fogo ao lado da sua casa, em um suposto plano de sequestro organizado por criminosos holandeses.

Para um dos principais juízes investigativos da Bélgica, Michel Claise, a indústria da cocaína saiu de controle. Nós nos encontramos no enorme Palácio da Justiça da capital belga, Bruxelas.

"Ela produz uma imensa fortuna para os que chamamos de narcotraficantes", afirma ele.

Claise afirma que, com sua riqueza e influência, as gangues agora estão superando as forças que buscam a justiça.

"Com a lavagem de dinheiro e a corrupção – que, agora, não tem limites em termos de valores que podem ser oferecidos aos estivadores, policiais e a outras pessoas – como você quer que tenhamos qualquer controle sobre as organizações criminosas? Acabou", conclui ele.

A crise da cocaína na Bélgica é a crise da cocaína da Europa.

As Nações Unidas alertam que gangues internacionais rivais estão trabalhando juntas como nunca aconteceu antes. E, segundo a ONU, depois do sucesso no continente europeu, elas logo estarão se ramificando para a Ásia e a África, na sua busca de riquezas ilimitadas.

 

Ø  O porto na Europa que virou 'paraíso' dos narcotraficantes da América Latina

 

A cidade de Antuérpia, na Bélgica, é muito famosa pelo comércio de diamantes.

Mas existe outro negócio - menos brilhante, mas tão lucrativo ou mais - que vem se apropriando da sua reputação. E é um comércio ilegal.

O porto de Antuérpia é o segundo maior da Europa e, por ele, passam milhões de contêineres todos os anos. Ele acabou se tornando a principal porta de entrada de cocaína do continente europeu.

Antuérpia superou a costa da Galícia, no noroeste da Espanha, por onde era contrabandeada a maior parte da droga até poucos anos atrás.

Nos últimos cinco anos, as apreensões de cocaína bateram um recorde atrás do outro.

Somente em 2022, as autoridades belgas encontraram quase 110 toneladas do entorpecente - um aumento de 23% sobre o ano anterior, segundo os últimos dados divulgados pelo Serviço de Finanças Públicas da Bélgica, a instituição supervisora da alfândega.

Esse volume representa 40% de toda a cocaína apreendida na Europa. O segundo maior porto de entrada, bem atrás de Antuérpia, é o de Roterdã, na Holanda, onde foram encontradas 52,5 toneladas em 2022.

O volume de contrabando é tão grande que as autoridades belgas alertaram em 2022 que seus incineradores não estavam dando conta de destruir toda a droga sendo interceptada.

Calcula-se que este volume represente apenas 10% de toda a cocaína que chega ao porto de Antuérpia. Os embarques vêm principalmente de Brasil, Equador e Colômbia. E, recentemente, também do Panamá e da Costa Rica.

Mas o que faz do porto de Antuérpia um destino tão cobiçado pelos narcotraficantes? Uma das razões é sua enorme extensão, segundo a porta-voz do Serviço de Finanças Públicas da Bélgica, Florence Angelici. Com 129 km², o porto de Antuérpia é maior do que toda a cidade de Paris, na França.

Em tonelagem, Antuérpia é menor que Roterdã, mas sua superfície supera em muito o porto vizinho. Atualmente, são 160 km de cais, contra 70 do porto holandês.

"Por ele, passam estradas e até cidades que ficaram dentro do porto, que cresceu muito. Isso dificulta muito a sua vigilância", explica Angelici à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

A dificuldade de controle das entradas e saídas na metrópole faz com que ela seja um paraíso para os narcotraficantes, que podem coletar todas as informações necessárias para introduzir e retirar a droga no porto.

Paul Meyer conhece o porto de Antuérpia como a palma da sua mão. Holandês, Meyer foi condenado em 2007 a 12 anos de prisão por contrabandear para a Europa imensas quantidades de droga. Arrependido, ele agora se dedica a chamar a atenção para a "peneira" em que o porto se transformou, na sua opinião.

No passado, ele e seu grupo tentaram passar a droga pelos portos de Hamburgo, na Alemanha, ou de Marselha, na França. Mas ele conta que em Antuérpia sempre foi muito mais simples.

"O porto é aberto", explica Meyer ao correspondente europeu da BBC, Nick Beake. "Você entra e todas as informações necessárias para começar estão ali. Você tem os caminhoneiros, as pessoas que trabalham no porto, você pode ver o nome do navio."

Atualmente, apenas 350 agentes alfandegários supervisionam as mercadorias que chegam. Este número é claramente insuficiente e, segundo a porta-voz do Serviço de Finanças Públicas, será reforçado por mais 108 funcionários, "que se dedicarão exclusivamente ao controle de drogas".

·         Rota das frutas

Além das dificuldades de vigilância, acrescente-se que o porto de Antuérpia é uma "rota histórica de transporte de frutas da América Latina para a Europa", segundo Florence Angelici. "O porto dispõe de terminais refrigerados e todo o necessário para receber essas frutas."

Essas rotas consolidadas movimentam milhões de contêineres através do Oceano Atlântico todos os anos. As redes criminosas se aproveitam das rotas para introduzir nos contêineres a cocaína que será consumida na Europa. Em muitos casos, os exportadores não sabem que sua carga foi interceptada pelos narcotraficantes.

Os contrabandistas são criativos. A alfândega belga já viu todo tipo de estratégia para esconder a droga.

"Eles usam todo tipo de fruta, como bananas, por exemplo, e colocam cocaína no meio das caixas", segundo Angelici. "Ou usam abacaxis, fazem um buraco nas frutas e colocam a droga dentro delas."

Este tipo de contêiner é refrigerado "e, nesse sistema de resfriamento, existe um buraco que também é usado para esconder os pacotes", afirma ela.

Já foram encontrados pacotes de droga no interior de troncos de madeira. Angelici recorda que já houve até um caso de "roupas impregnadas com cocaína líquida. Quando os agentes da alfândega abriam as caixas, só viam roupas, mas, com um exame mais detalhado, eles perceberam que a droga estava no tecido".

Com todas as dificuldades para vigiar o porto, um dos métodos mais empregados para contrabandear a cocaína, muito mais direto, é o chamado "rip on/rip off", ou "gancho cego".

O método consiste em introduzir os pacotes de cocaína por cima da mercadoria normal nos contêineres, sem escondê-los. Muitas vezes, eles ficam em malas esportivas que podem ser facilmente transportadas.

"Quando chegam ao porto, existem pessoas dentro dos terminais que retiram as bolsas rapidamente dos contêineres", segundo Angelici. "Pode haver 100 ou 200 kg, mas são muito flexíveis."

Às vezes, essas pessoas não retiram a droga do porto, mas sim a transferem para outros contêineres que elas sabem que não serão inspecionados, seja porque já foram verificados ou porque não exigem inspeção, como os que transportam produtos de um país para outro, dentro da União Europeia.

De Antuérpia é muito fácil chegar a outros países, como a França ou a Alemanha, onde a droga será consumida.

Mas, segundo a Europol (a Agência da União Europeia para a Cooperação Policial), grande parte da droga é transportada para a Holanda e, de lá, os grupos criminosos a distribuem pela Europa.

·         Aumento do consumo

Mesmo com o recorde de apreensões, a droga segue fluindo. As instituições europeias sabem da situação porque o preço da cocaína na rua não aumentou e, em alguns casos, chegou até a diminuir.

"Observamos que, na América Latina, os métodos de colheita foram modificados. Agora, eles têm plantas geneticamente modificadas e conseguem duas a três colheitas por ano, em vez de uma só", afirma Angelici. Produzindo mais, é possível fornecer mais.

"E, quanto mais nós apreendemos, mais eles perdem. Por isso, eles precisam gerar mais lucros para compensar esse prejuízo", segundo ela. "Esta é outra razão por que mais cocaína está chegando."

A cocaína é uma das drogas mais consumidas na Europa. Seu uso aumentou significativamente nos últimos anos, em parte, devido à redução do preço, segundo o último relatório sobre o mercado da cocaína do Observatório Europeu de Drogas e Dependência, elaborado em conjunto com a Europol.

Nas redes de venda, os consumidores encontram frequentemente ofertas e promoções de 2 por 1, como as que se vê nos supermercados. Em muitos casos, não é mais preciso ir até um beco escuro. Basta uma mensagem por aplicativos como o WhatsApp e a cocaína é entregue em domicílio.

O relatório estima que o negócio da cocaína na Europa superou US$ 11,3 bilhões (cerca de R$ 57,6 bilhões) em 2020, o que representa um terço de todo o tráfico de drogas.

E, quando há movimento de dinheiro em grande escala, também aumenta o crime organizado.

Antuérpia era uma cidade relativamente tranquila até pouco tempo atrás. Mas os últimos anos trouxeram uma explosão de violência, diretamente relacionada aos diferentes grupos de narcotraficantes, com tiroteios e até explosões que aterrorizaram seus habitantes.

Sua primeira vítima fatal foi uma menina de 11 anos de idade, que morreu em um tiroteio no dia 9 de janeiro. Nos últimos anos, foram registrados até 200 incidentes violentos. Era algo comum na vizinha Holanda, mas não em Antuérpia.

Entre os grupos narcoterroristas que dominam o mercado, encontra-se o conhecido como Mocro Maffia. Originário da Holanda, o grupo é responsável por diversos assassinatos, como o do jornalista investigativo holandês Peter R. de Vries e do advogado Derk Wiersum, que representava uma pessoa que iria testemunhar contra o grupo. Os dois crimes ocorreram na capital holandesa, Amsterdã.

O próprio ministro da Justiça da Bélgica, Vincent Van Quickenborne, foi obrigado a reforçar sua segurança, depois que foram detidos quatro suspeitos holandeses que aparentemente planejavam sequestrá-lo.

 

Fonte: Por Nick Beake, correspondente da BBC News na Europa

 

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